Entre a ciência e a economia, o verdadeiro drama da pandemia

É hora de desenvolver uma nova política de justiça afetiva e solidária, que refute a narrativa da política puramente egoísta.

Eduardo Camín 

Fonte: Carta Maior, com CLAE
Tradução: Victor Farinelli
Data original da publicação: 05/01/2022

A paleontologia, a história da vida através do estudo dos fósseis, mostra que o destino final mais provável de todas as espécies é o seu desaparecimento. Algumas espécies simplesmente se extinguem, deixando como único indício de sua passagem pelo planeta um traço nas rochas em forma de fósseis, o que nos leva a questionar até que ponto o ser humano está destinado a seguir o mesmo caminho que qualquer outro organismo.

A pandemia de covid-19 revelou a complexa relação entre a natureza e a sociedade, assim como entre a ciência, a tecnologia e a política. Tentemos relembrar algumas das muitas questões éticas, morais e políticas que, eloquentemente, a pandemia colocou sobre a mesa, produto de uma era, a nossa era, caracterizada pela acelerada globalização das relações sociais e econômicas, e uma destruição derivada da lógica produtivista do capitalismo.

Sem a destruição das fronteiras dos habitats selvagens, sem as enormes dimensões das concentrações humanas nos espaços de lazer e nas transações econômicas, sem a frequência acelerada das viagens transoceânicas… sem fazer futurologia, talvez a gênese da pandemia não seria não teria sido explosiva, nem sua propagação tão global e exponencial.

Nas últimas décadas, presumia-se que o progresso técnico-científico havia gerado “transições epidemiológicas” que libertaram as sociedades desenvolvidas da ameaça das doenças infecciosas, consideradas que estas eram produzidas pelas condições nada higiênicas dos países pobres.

Em meio à consolidação da hegemonia desse pensamento, a indústria farmacêutica parou – há muito tempo – de investir no desenvolvimento de vacinas, e passou a se concentrar em doenças essencialmente associadas ao aumento da expectativa de vida, como câncer, doenças cardiovasculares ou alzheimer. No entanto, a pandemia de covid-19 desmascarou a pretensão ilusória de circunscrever geopoliticamente as doenças, entre países ricos e pobres, entre desenvolvidos e subdesenvolvidos.

Vulnerabilidade diferencial: não somos todos iguais diante da pandemia

Como acontece com todas as doenças, a forma como a covid nos afeta em cada uma das suas fases (a própria probabilidade de adoecer, de apresentar um curso grave e de ter acesso a cuidados médicos de qualidade) também depende do contexto social. Essa questão não é alheia à própria epidemiologia, onde tem havido um grande debate a respeito.

Desde a década de 1980, a chamada epidemiologia dos fatores de risco, centrada nos aspectos biológicos e comportamentais que explicam a doença, tem sido questionada, a partir de abordagens críticas que buscam compreender a saúde levando em consideração o contexto social, econômico, cultural, social, histórico e político das populações.

Por esse motivo, o ponto de partida foi a Conferência da Organização Mundial da Saúde, realiza há 44 anos, na cidade de Alma-Ata (então União Soviética, atual Cazaquistão), se enfocou no tema da APS (Atenção Básica à Saúde), conceito que foi destruído posteriormente pelas paixões egoístas dos países mais desenvolvidos.

Explorar as múltiplas dimensões de cada uma das fases da covid-19 e sua propagação exigiria vários artigos. Nos limitaremos a destacar, de forma muito sucinta, como a vulnerabilidade à doença depende não apenas de fatores supostamente naturais, como idade ou sexo, mas também de como essas diferenças são socialmente construídas.

Apesar do mantra, repetido à exaustão, sobre o caráter democrático e não discriminatório do vírus, a variabilidade das taxas de incidência e letalidade da covid-19 por países, cidades e distritos revelou a complexa relação entre saúde e social classe, tecnologia e política. A forma como a saúde e a doença traduzem posições múltiplas e entrecruzadas de subordinação social tem se revelado com particular dramatismo no caso de raça e sexo/gênero.

Ciência e capitalismo em tempos de pandemia

O capitalismo neoliberal incentiva os indivíduos a serem altamente competitivos, seja em relação à segurança, ao emprego, às riquezas materiais, status social, relacionamentos pessoais ou valores morais. Nesse cenário, o valor do cuidado é secundário, acessório.

O dinheiro é a medida de sucesso mais amplamente usada e o principal indicador de competência e valor – o grande denominador comum pelo qual todas as coisas são comparadas e medidas. Se a pandemia é global e se manifesta de forma diferenciada, que traduz as desigualdades sociais, a ciência que a comanda também reproduz as relações econômicas do capitalismo atual.

No século passado, a ciência se consolidou como uma empresa global que transcende as fronteiras dos laboratórios e dos próprios Estados, dando origem a redes científicas transnacionais que, sob um projeto comum, envolvem um grande número de pesquisadores de diferentes especialidades.

Há décadas, a sociedade vem abandonando a imagem iluminada da ciência como ação desinteressada, praticada por mentes superiores que testam suas hipóteses aplicando o método científico. Em vez disso, as comunidades científicas passaram a ser concebidas como redes extensas que vão além dos limites dos laboratórios e também incluem fatores políticos e empresariais.

As ciências durante a pandemia, e em particular a empresa internacional que lançou o desenvolvimento de vacinas contra a covid, traçam uma nova configuração de ciência trans estatal, governada não por governos e sim por oligopólios empresariais, entre os quais podemos citar os acordos supranacionais, como o projeto COVAX, impulsionado pela OMS, que tem se mostrado incapaz de resolver o dilema gerado pela falta de vacinas em grande parte das sociedades menos desenvolvidas

Nos últimos anos, alguns especialistas alertaram que a crescente dependência da ciência, não apenas de laboratórios de pesquisa, mas, sobretudo, de empresas e fundações privadas, tem desencadeado uma reflexão crítica sobre a suposta independência do conhecimento científico.

Os interesses privados não determinam apenas a própria escolha dos fatos a serem investigados. Desde que a pesquisa científica passou a estar voltada à comercialização de seus produtos, a própria maquinária de produção do conhecimento científico – em particular, a precariedade da força de trabalho para pesquisas – tem sido profundamente afetada.

Por outro lado, nas últimas décadas, o saber científico, vítima do neoliberalismo reinante, tem sido objeto de um crescente processo de privatização, tanto em termos de sua própria expressão em artigos acadêmicos, quanto em sua aplicação em produtos técnico-científicos.

A indústria editorial lucra com a administração da publicação e com o acesso aos resultados de uma ciência financiada principalmente com recursos públicos, da mesma forma que a indústria farmacêutica rege o desenvolvimento e a distribuição de vacinas e medicamentos.

No caso das vacinas, embora o código de ética esteja bem estabelecido para a fase de desenvolvimento no que diz respeito aos ensaios clínicos, existe uma lacuna total em relação à sua distribuição, como pudemos constatar ao assistir o desenrolar da guerra das vacinas, como resultado da competição entre os países ricos por sua aquisição antecipada.

O acelerado processo de apropriação do conhecimento científico se traduz no crescente patenteamento dos produtos da ciência em todos os processos que são utilizados para o seu desenvolvimento – e na apropriação intelectual da própria vida, por empresas da chamada biologia sintética. A evolução do direito internacional de patentes, como a do mercado editorial, tem gerado um cenário de preços exorbitantes, oligopólios empresariais e desigualdade de acesso.

A reação social à ciência durante a pandemia

Outra questão que acelerou a crise da covid-19 tem a ver com a transformação das fontes de autoridade científica, que tradicionalmente emanam de mecanismos e instituições como a revisão por pares ou os reconhecimentos concedidos por academias científicas.

Por um lado, o esvaziamento de autoridade desses mecanismos e instituições herdados está ocorrendo em decorrência da tendência crescente, interna à própria ciência, de ir diretamente ao público promover diferentes programas de pesquisa, em meio à concorrência por conseguir financiamento.

Por sua vez, a acessibilidade aos resultados da ciência, somada à crise dos mecanismos tradicionais de legitimação, ampliou as fontes consideradas legítimas, ao agregar novos atores que geram opinião científica nas redes sociais.

Por outro lado, a legitimidade do conhecimento acumulado por mecanismos tradicionais de autoridade também é abalada pelos ataques externos do movimento anticientífico, que experimentou uma nova reencarnação graças às teorias conspiratórias e negativas surgidas durante a pandemia, e promovidas através das próprias redes.

Vimos como o movimento anticientífico condensa a dimensão sociopolítica da ciência em agentes políticos ou empresariais concretos (Bill Gates, tecnologia 5G), quando ninguém mais parece querer denunciar publicamente os efeitos devastadores da mercantilização da ciência e da tecnologia.

Uma reflexão necessária: ciência ou capitalismo

Na era pré-covid, poucos imaginavam que uma crise de saúde poderia desencadear a paralisia quase total da máquina produtiva do capitalismo global, o sistema político-econômico dominante em nosso tempo. Em sua forma neoliberal, este sistema se enfoca na prioridade às leis de mercado para a organização da vida social.

O capitalismo neoliberal não é apenas um arcabouço analítico para a organização econômica, é também normativo, apresentando ideias claras sobre como a sociedade deve ser organizada, com o mercado proporcionando o contexto ético primordial, que se apoia em um individualismo empresarial que é egoísta e contrário aos conceitos de cuidado de forma ampla e profunda, considerando que todas essas características são naturais e desejáveis.

É verdade que o capitalismo não é destituído de moralidade, mas, por ser governado pelo espírito de fazer dinheiro, não só permite a violência e a matança na guerra organizada para o lucro, como também permite que as pessoas morram por abandono, por pobreza, por falta de moradia e/ou falta de atendimento médico.

A solução política para esta pandemia e para as que ainda virão não pode ser baseada em um otimismo tecnológico de curto prazo, que coloca as vacinas como a panaceia exclusiva. Requer uma reflexão radical sobre as condições de vida e a ciência que se desenvolve em um mundo profundamente desigual e ecologicamente devastado. A pandemia mostrou que os cuidados não são um extra opcional: eles fazem a diferença entre a vida e a morte

É hora de desenvolver uma nova política de justiça afetiva e solidária, que refute a narrativa da política puramente egoísta. Isso é necessário não apenas pela importância predominante do cuidado como ética política, mas porque as pessoas precisam de um caminho intelectual e político que se contraponha aos discursos de medo, ódio e exaltação, que regem um mundo pautado pela moral capitalista.

Eduardo Camín é jornalista uruguaio credenciado na sede da ONU em Genebra, e analista associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)

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