Há um conjunto de reformas necessárias, dada a desigualdade no Brasil, que impede a retomada do crescimento econômico e fragiliza a democracia.
Rosa Angela Chieza
Fonte: IJF, com Anfip
Data original da publicação: 05/04/2023
Podemos dizer que há entraves de curto e de médio prazos. De curto prazo, eu postulo o tema da política monetária e da taxa de juros básica, a Selic, no contexto de discussão sobre o Banco Central “independente”, aprovado em 2021. O debate seria, e eu concordo com o economista André Lara Rezende, sobre a autonomia do Banco Central (e não, independência), garantindo previsibilidade aos agentes econômicos. Ora, o Banco Central não pode ser independente do Estado brasileiro (dos Poderes) e, em última instância, da sociedade brasileira. Neste sentido pergunto: do ponto de vista político, conceder o poder de controlar a política monetária (que influencia o emprego e o crescimento do PIB) a um grupo livre de qualquer tipo de controle político é compatível com a ideia de democracia?
Parece que “alguma coisa está fora da ordem”, conforme música do Caetano Veloso.
Outro entrave a ser enfrentado é no campo tributário. Uma reforma precisa incorporar, ao mesmo tempo, redução das iniquidades/injustiças e a simplificação. Deve contemplar a redução e simplificação dos impostos sobre consumo e a ampliação dos impostos que incidem sobre renda e propriedade. A redução dos impostos sobre consumo possibilitará o aumento da competividade das empresas e ao mesmo tempo desonerará os contribuintes mais pobres, pois hoje eles destinam quase a totalidade da renda ao consumo, fazendo com que tenham uma carga tributária1 de quase 50%. Esta medida contribui para a retomada do crescimento econômico, pois estimula as empresas e ao mesmo tempo amplia a demanda agregada. De outo lado, a redução dos impostos sobre o consumo, para impedir o desfinanciamento das políticas sociais, deve vir acompanhada pela ampliação dos tributos sobre renda e propriedade, pois, no Brasil, as rendas mais altas são historicamente subtributadas.
Sobre a renda, os dados abertos do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (IRPF) divulgados pela RFB mostram que contribuintes que recebem entre 5 e 7 Salários Mínimos (SM) pagam uma alíquota efetiva maior do que um contribuinte que ganha mais de 320 SM ao mês. Isso não é aceitável. Os cidadãos que mais pagam desconhecem este quadro e são enganados com informações divulgadas por aqueles que pagam proporcionalmente menos tributos. Assim, o IRPF, que é o tributo mais importante para fazer justiça fiscal, segundo a teoria de tributação equitativa, no Brasil, vai na contramão da teoria e da experiência dos países desenvolvidos, e, assim, a tributação sobre renda e propriedade amplia as desigualdades. E a desigualdade é nociva do ponto de vista econômico e político. Econômico, porque o tributo deixa de desempenhar a função de ampliar a demanda agregada, e, do ponto de vista político, a desigualdade fragiliza a democracia. Por isso, é muito importante que a cidadania incorpore na sua agenda a luta por uma reforma tributária justa, do contrário, os que menos pagam tributos seguirão exercendo seu poder e impondo, via normas, maior carga tributária aos que ganham menos. O Brasil é um paraíso dos muito ricos do ponto de vista tributário, e isso tem nos “ajudado” a ficar no topo da desigualdade em termos mundiais. Precisamos avançar.
Vencidos estes dois entraves, há outros, e para ser sintética, diria que é a retomada dos investimentos em ciência e tecnologia e educação para podermos pensar no futuro do país, do contrário, ampliaremos o fosso já existente entre Brasil e os países desenvolvidos. Veja o caso do Estado alemão, que tomou a decisão, recentemente, de que será o maior exportador de chips e semicondutores para o resto do mundo. E nós, no Brasil, “ousamos” no mesmo contexto mundial, privatizar o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec). Isso é exemplo paradigmático do nosso atraso enquanto nação. Por fim, a superação destes entraves passa pela reconstrução institucional do Estado brasileiro pois o governo anterior destruiu várias instituições de Estado, nas áreas de saúde, educação, meio ambiente, áreas de transparência, dentre outras. Esta reconstrução é urgente e imprescindível.
Medidas para conter a inflação
A inflação no Brasil não decorre do excesso de demanda, pois se fosse, não teríamos 33 milhões de brasileiros que não fazem 3 refeições por dia e um contingente de 10 milhões de mão de obra desempregada. A inflação decorre de um conjunto de variáveis, como a crise sanitária, a guerra na Ucrânia que impactou na estrutura de custos. Assim, inflação é um problema de todas as economias mundiais. E se olharmos para os países desenvolvidos, todos estão com taxas de juros reais negativas, e o Brasil, com uma taxa de juros nominal de 13,75% e uma taxa real em torno de 8,5 %, que é mais do que o dobro da taxa de juros real dos países em desenvolvimento. O Banco Central se equivoca no diagnóstico da “doença” (a inflação) e, por consequência, erra na dosagem do remédio, adotando taxa Selic elevada em demasia. A alternativa é redução da taxa Selic.
Esta concepção de que é preciso elevar a taxa de juros para combater a inflação está relacionada com o processo de financeirização da economia, que, no Brasil, passa pela gestão da dívida pública interna. Quanto maior for a taxa básica de juros da economia, maiores serão os ganhos dos rentistas (e isso não é um termo pejorativo), cujos ganhos na forma de juros são despesas de juros do orçamento público do governo federal, com duas consequências, menores serão os recursos do orçamento da União para áreas sociais, como em saúde, educação e investimentos públicos, e também, em tese, a opção por ganhos na forma de juros pelos setor privado, exclui ganhos na forma de lucros, ou seja, decorrentes de investimento produtivo postergando a retomada do crescimento econômico. Mudanças são necessárias e envolvem economia e política. Aliás, economia e política nunca estiveram dissociadas.
Reformas necessárias
Há um conjunto de reformas necessárias, no entanto, dada a desigualdade no Brasil, que impede a retomada do crescimento econômico e fragiliza a democracia, considero a reforma tributária a mais importante. Por isso, irei centrar-me neste tema. Conforme referi na questão anterior, é preciso uma reforma que incorpore justiça fiscal, além da simplificação. Além da proposta de reforma dos impostos indiretos, o que visa a simplificação, é também urgente que haja uma redução destes impostos que incidem sobre o consumo e, de outro lado, é preciso frisar que esta reforma é necessária, porém insuficiente, necessitando incorporar também a reforma sobre os impostos diretos, começando com o IRPF, levando em conta a capacidade de pagamento do contribuinte. A isenção de rendas advindas de lucros e dividendos, vigente no Brasil desde 1995 (veja todos os países do mundo que isentaram lucros e dividendos já voltaram a cobrar, exceto apenas 2 países, dentre os quais o Brasil), e a falta da atualização da tabela do IRPF desde 2015 contribui para ampliar as desigualdades, pois, segundo dados abertos do IRPF, divulgados pela Receita Federal, à medida que a renda do contribuinte se eleva até 40 SM, a alíquota paga de IRPF vai subindo com o aumento da renda, no entanto, o oposto ocorre com os contribuintes que recebem mais de 40 SM, ou seja, quanto mais ganham, menos IRPF pagam. Esta situação, na qual contribuintes com rendas menores pagam proporcionalmente mais IRPF que contribuintes com rendas mais elevadas, precisa urgentemente ser alterada.
Além isso, na área tributária, o artigo 11 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) estabelece que “constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação” e, até hoje, quase 23 anos após a vigência da LRF, a União não instituiu imposto de sua competência, conforme estabelece o inciso VII do artigo 154 da CF/1988, ou seja, o Imposto sobre Grandes Fortunas. Novamente, questiono, neste caso, o cometimento de crime de Responsabilidade Fiscal é tolerável?
Por fim, também na área tributária, o tema da renúncia de receita é de grande relevância, pois a renúncia fiscal da União é de R$ 450 bilhões ao ano, representando mais do que o dobro do déficit primário previsto para 2023. Não sou contra a concessão de renúncias fiscais, no entanto, elas devem ser concedidas nas condições previstas no ordenamento jurídico brasileiro. E, após quase 23 anos de vigência da Lei de Responsabilidade Fiscal, constata-se que não há aderência entre a lei e a renúncia de receita da União, em especial ao artigo 14.
Rosa Angela Chieza é professora da faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS e diretora do Instituto Justiça Fiscal (IJF)