Entrando em consenso: democracia e dignidade para a erradicação da pobreza

Pesquisadores investigam o que brasileiros pensam ser necessário para uma vida digna.

Flávia Uchôa de Oliveira, Shailen Nandy, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz Assis e Luís Renato Vedovato

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 22/10/2021

O dia 17 de outubro marca a luta mundial pela erradicação da pobreza. Luta essa que encabeça os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. São 17 objetivos no total, e o primeiro deles, a ser contemplado até 2030, trata da erradicação da pobreza em todas as suas dimensões. Várias são as metas incluídas neste ODS 1. Entre elas destacam-se a redução da pobreza entre homens, mulheres e crianças, e a adequada adoção de medidas e sistemas de proteção social voltados aos mais vulneráveis. Para que o objetivo e suas metas sejam alcançados, a criação de marcos políticos internacionais, regionais e nacionais, e de programas voltados à identificação e eliminação de condições de vulnerabilidade é condição elementar.

A fim de contribuir para o alcance do ODS 1, pesquisadoras e pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade de Cardiff (Reino Unido) – com recursos provenientes do Global Challenges Research Fund (GCRF) e do Ministério Público do Trabalho (MPT) – estão investigando o que brasileiras e brasileiros pensam ser necessário para que se tenha um padrão de vida digno. Esse grupo de pesquisadores procura estabelecer um consenso em nível nacional sobre o que se considera imprescindível para que todas e todos tenham uma vida digna no Brasil de hoje.

Sustentado pela teoria das privações relativas do sociólogo britânico Peter Townsend e pelo consolidado método da Abordagem Consensual, estabelecido por Joanna Mack e Stewart Lansley, a pesquisa possibilita a criação de espaços coletivos de discussão sobre o que são condições de vida dignas, considerando o local e o tempo em que se vive. Parcelas representativas da população brasileira são convidadas a debater e estabelecer quais itens, atividades e serviços devem ser considerados necessários para que seja garantida dignidade a todos. É pela democratização do debate sobre o padrão de vida digno que se estabelece precisamente o que é pobreza: estar privada(o) de bens, atividades sociais e serviços percebidos como necessidades pelo consenso da população. A busca pelo consenso sobre esse padrão abrange o debate sobre as experiências de privação econômica, mas, especialmente, sobre a exclusão social e a escassez de serviços básicos, superando uma perspectiva exclusivamente monetária. A linha da pobreza passa a ser estabelecida por outras dimensões que não somente a quantia com a qual as pessoas vivem por dia.

Ao longo de 2019, a pesquisa tomou forma com a aplicação de grupos focais, realizados em Campinas. Mulheres, homens e adolescentes de diferentes classes, etnias e níveis de escolaridade debateram e estabeleceram em consenso, a partir de uma lista com diversos itens categorizados para adultos e para crianças, quais deles eram considerados necessários para uma vida digna. Os itens incluíam desde alimentação e condições de moradia, passando pelo acesso à educação, trabalho e renda, até a participação em atividades sociais simbólicas como celebrar aniversários. Aos participantes foi pedido que discutissem, por exemplo, se poder comer três refeições por dia e ter acesso à internet em casa eram itens percebidos por eles como necessidades ou não para uma vida digna no Brasil de hoje. Além disso, o debate incluiu as diferenças entre o que é percebido como necessidade para gerações distintas.

A pobreza infantil foi um dos temas de maior engajamento dos participantes nos debates, em especial, no consenso sobre a necessidade de erradicação do trabalho infantil e no suporte às famílias com crianças. Para M., mulher parda, a definição de pobreza passava por “não ter o que dar quando o filho pequeno pede algo”. Ainda, os participantes enfatizaram a importância do combate ao racismo estrutural para a erradicação da pobreza em todas as suas dimensões. De acordo com a participante L, uma jovem negra, “pobreza é racismo”. A adoção de políticas públicas de garantia de direitos fundamentais e a eliminação das disparidades entre as classes sociais foram outros aspectos discutidos entre os participantes. Ao final dos grupos focais, foi possível estabelecer uma lista das necessidades percebidas como imprescindíveis para uma vida digna e, a partir dela, explorar o consenso entre mais grupos da população.

Em 2020, o projeto foi levado adiante mesmo com as restrições impostas pela pandemia. Junto a atividades essenciais, desenvolvidas pelo Ministério Público do Trabalho e pelas associações de bairro, foi realizada mais uma etapa, em três comunidades de São Paulo: Brasilândia, Paraisópolis e Vila Vietnã. Um questionário que continha a lista de necessidades estabelecida pelos grupos focais foi aplicado por meio de uma plataforma virtual de fácil acesso por telefone celular. O questionário apresentava cada item e a opção de considerá-lo como necessário ou não e, adicionalmente, perguntava se o participante tinha acesso a ele. Caso não tivesse, era perguntado sobre o porquê de não o ter, cujas opções de resposta eram: por não poder pagar, por não querer ou por qualquer outro motivo. Essa pergunta adicional identificava, para além do consenso, os participantes que estavam privados de um padrão de vida digno.

Essa etapa da pesquisa serviu como o piloto para as demais e tornou-se uma oportunidade para utilizar, pela primeira vez no Brasil, métodos que abordam a pobreza em sua multidimensionalidade e para avaliar os impactos da pandemia. Os resultados demostraram amplo consenso entre as comunidades sobre as necessidades para uma vida digna: alimentação em quantidade e qualidade adequadas; acesso à saúde e a possibilidade de manter a higiene pessoal; acesso a recursos para permanência das crianças nas escolas; serviços de saneamento básico, eletricidade e transporte público; e uma moradia confortável. Foram demonstradas também a alta insegurança alimentar e a severa privação econômica a que as comunidades estavam sujeitas. Mais da metade dos participantes estava privada de comer vegetais e proteína animal diariamente, bem como de comprar medicamentos quando necessário. Nas comunidades, essas privações tiveram maior impacto na vida das famílias com crianças.

Entre junho e setembro deste ano, uma nova etapa da pesquisa foi desenvolvida com a aplicação do questionário em uma amostra de mais 2.300 domicílios, representativa da população da cidade de São Paulo. Os resultados parciais mostram consenso quase universal (nove em cada dez dos participantes) em relação a necessidade de todas e todos terem condições de comer três refeições diárias; comprar vestimentas, calçados e artigos de cama, mesa e banho; ter acesso à creche para crianças; ter dinheiro suficiente para reparos imprevistos ou de manutenção de suas casas; e poder comprar medicamentos quando necessário. Sete em cada dez participantes consideram necessário ter uma alimentação variada com o consumo de proteínas, vegetais e carboidratos; uma casa mobiliada; e a possibilidade de ter uma poupança. Há igualmente amplo consenso sobre a necessidade de realizar atividades sociais, com particular atenção às crianças. Oito em cada dez participantes consideram que é importante que crianças possam convidar colegas para brincar e comer um lanche em suas casas.

Sobre um tratamento mais refinado acerca desses últimos dados coletados, o grupo de pesquisadores pretendem publicar nos próximos meses análises mais detalhadas da última etapa realizada.

É importante ressaltar que a pesquisa segue as recomendações do IBGE registradas no compêndio de melhores práticas de mensuração da pobreza, publicado em 2006, no qual há o estímulo ao desenvolvimento de medidas que levem em consideração as várias dimensões da pobreza. Apesar do pioneirismo do projeto no Brasil, experiências que buscam essa abordagem multidimensional têm sido empreendidas em diversos países ao redor do globo e, mais recentemente, na América Latina. Como exemplos, podemos citar pesquisadores da Universidad Nacional General Sarmiento, na Argentina, e da Universidad Nacional Autónoma de México, que estabeleceram análises importantes em seus países e colaboram com o grupo brasileiro de pesquisadores desde 2019. Além do intercâmbio dessas experiências, o contato com agências internacionais, como a Unicef, possibilita maior visibilidade e suporte para o desenvolvimento de medidas e ações voltadas à pobreza infantil e à vulnerabilidade de famílias com crianças. O conselheiro sênior em estatísticas para pobreza infantil na sede da Unicef em Nova York, Enrique Delamónica, reforça que: “É sabido que as crianças experienciam a pobreza de forma diferente dos adultos. Suas necessidades, suas privações e seus sonhos são diferentes. Uma característica importante da Abordagem Consensual é permitir estabelecer diretamente os mínimos sociais para crianças e adolescentes de acordo com a percepção da maioria da população no contexto particular de cada país. Baseados nessa informação é então possível mensurar adequadamente a extensão e as características da pobreza infantil”.

Nessa direção, o projeto procura contribuir para o debate das políticas públicas em nosso país. Em especial, os resultados obtidos servem de fonte para a formulação de políticas que garantam os direitos humanos e constitucionais. Estabelecer um consenso sobre o que é uma vida digna no nosso país é ter a medida para assegurar aquilo que todas as pessoas devem ter acesso, o que inclui direitos básicos encontrados no nosso ordenamento jurídico. Definir ações coletivas para levar ao Judiciário é também um trabalho conjunto, que exige saber quais são os instrumentos mais efetivos para a garantia de direitos. Com base nas privações identificadas, torna-se possível ter elementos para a decisão sobre que tipo de ferramenta processual utilizar e que matéria levar a juízo. Em muitos casos, em especial naqueles voltados para a educação de crianças e adolescentes, a pesquisa já identificou relação entre o resultado da abordagem consensual e os temas que são individualmente e coletivamente levados ao Judiciário, como por exemplo a necessidade de transportes público escolares. Assim, os resultados podem se configurar em importante subsídio para construção de políticas públicas pelo Poder Executivo, além do fortalecimento do arcabouço normativo garantidor dos direitos pelo Legislativo.

No momento de crise sanitária causada pela pandemia, a pesquisa pode ser fonte de orientação para alocação de recursos e para a construção da resiliência entre as comunidades mais sujeitas a privações. Por isso, nos próximos anos, esse grupo de pesquisadoras e pesquisadores buscará expandir o projeto para outras cidades brasileiras, tendo em vista as diferenças regionais e, em médio prazo, estabelecer uma perspectiva nacional.

Para os desafios colocados no presente e no futuro da sociedade brasileira, será necessário que entremos em consenso. Nossa intenção é a de que esse consenso seja construído de forma democrática, em um amplo debate, e que tenha por horizonte a construção de uma vida digna para todas e todos, com a consequente erradicação da pobreza.

Para mais informações sobre o projeto, entre em contato pelo e-mail poverty@unicamp.br.

Flávia Manuella Uchôa de Oliveira é doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, com estudos de pós-doutorado pela Universidade de Cardiff no Projeto Brazil Wastewater Surveillance Hub; e docente no curso de graduação em Psicologia da Universidade Nove de Julho (São Paulo, SP, Brasil).

Shailen Nandy é professor de Política Social na Escola de Ciências Sociais da Universidade de Cardiff, Reino Unido. Pesquisa pobreza e desenvolvimento internacional, tendo colaborado com agências da ONU, como a Unicef, por mais de vinte anos. Atualmente, pesquisa a relação entre a medição da pobreza multidimensional e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, em colaboração com pesquisadores no Brasil, Índia, Uganda e no Pacífico Sul, incluindo o Reino de Tonga e Fiji.

Ana Elisa Spaolonzi Queiroz Assis é jurista, pedagoga, mestre, doutora e pós-doutora em Educação, é professora da graduação e da pós-graduação da Faculdade de Direito do Sul de Minas e da Faculdade de Educação da Unicamp e pesquisadora e líder do Laboratório de Políticas Públicas e Direitos Fundamentais (LabDirF/FDSM), bem como pesquisadora e vice-líder do Laboratório de Políticas Públicas e Planejamento Educacional (LaPPlanE) da Faculdade de Educação.

Luis Renato Vedovato é pesquisador associado do Observatório das Migrações em São Paulo; doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP; professor de Direito Internacional Público da PUC de Campinas; professor do Programa de Mestrado/Doutorado e membro do Laboratório de Políticas Públicas e Planejamento Educacional (LaPPlanE) da Faculdade de Educação da Unicamp; e membro do Academic Advisory Group of the Global Center for Legal Innovation on Food Environments (“Global Center”) do O’Neill Institute for National and Global Health Law (Georgetown University).

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