Enfermagem no Covid-19: o martírio é o nosso destino dentro da necropolítica do Estado?

Socialmente, é exigido que, mesmo sem condições de trabalho, os profissionais de enfermagem estejam prontos para atender. Logo, chegamos à exigência social de martírio dessa profissão.

Junara Ferreira

Fonte: Sul21
Data original da publicação: 01/04/2020

Este artigo propõe uma reflexão voltada ao martírio social da Enfermagem no Brasil. Para isso, articulo a experiência do cotidiano laboral como Enfermeira de uma Instituição pública de saúde, as principais decisões políticas governamentais no momento da pandemia e o referencial teórico proposto por Michael Foucault e Achille Mbembe.

Segundo a pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil, realizada pelo COFEN (Conselho Federal de Enfermagem) no ano de 2013, a enfermagem brasileira é constituída de 1.804.535 de Enfermeiras/os, técnicas/os e auxiliares de enfermagem. Destes, cerca de 85% são do gênero feminino e em torno de 52% se auto declaram como negros. Esse grupo profissional equivale a mais de 50% da força de trabalho na área da saúde no país.

A enfermagem, intitulada como ciência do cuidado, o concebe conforme Pinheiro e Lima (2008) como, “em um modo de agir que é produzido como experiência de um modo de vida específico e delineado por aspectos políticos, sociais, culturais e históricos, que se traduzem em “práticas” de “espaço” e na “ação” de “cidadãos” sobre os “outros” em uma dada sociedade. Daí o “cuidado como ato” resulta na “prática do cuidar”, que, ao ser exercida por um cidadão, um sujeito, reveste-se de novos sentidos imprimindo uma identidade ou domínio próprio sobre um conjunto de conhecimentos voltados para o “outro”.

O outro é o lugar do “cuidado”. O outro tem no seu olhar o caminho para construção do seu “cuidado”, cujo sujeito que se responsabiliza por praticá-lo tem a tarefa de garantir-lhe a autonomia acerca do modo de andar de sua própria vida” (p. 111).

Além do desconhecimento sobre os preceitos teóricos que orientam a enfermagem, como o do cuidado, socialmente, há desconhecimento sobre a atuação da equipe de enfermagem nos serviços de saúde. Muitos nos consideram ajudantes da equipe médica. Desconhecem nossa formação humanística voltada ao cuidado, desconhecem a ciência e o conhecimento por trás da assistência que prestamos.

Socialmente, é exigido que, mesmo sem condições de trabalho, estejamos prontos para atender. Logo, chegamos à exigência social de martírio dessa profissão. Conforme a Wikipédia, um “mártir (em grego: μάρτυς, mártys, “testemunha”) é uma pessoa que sofre perseguição e morte por defender, renunciar ou por recusar a renunciar, ou ainda por recusar a defender uma causa exigida por uma força externa. Em muitos casos, o termo é atribuído a alguém que morre (seja em batalha ou por execução) em nome de um ideal social ou político. A enfermagem está a se constituir como mártir da pandemia de COVID-19. Proponho, a partir daqui elementos para compreender essa constituição.

Desde o início da pandemia de coronavírus, o país demonstra a agudização de algo que é crônico no país, a precarização das condições trabalho na área da saúde. A enfermagem há décadas vivencia a falta de valorização da profissão: menores salários dentre os profissionais de saúde, carga horária não regulamentada, excesso de trabalho, falta de dimensionamento de pessoal.

A pandemia escancara algo alarmante: a falta de condições de trabalho vivenciado cotidianamente pela categoria. Instituições de saúde, na sua grande maioria, não possuem ambiência adequada para isolamento respiratório, não possuem equipamentos (ventiladores, etc.) suficientes, não disponibilizam insumos (seringas, gazes, medicamentos, etc.), não fornecem equipamentos de proteção individual (EPIs) adequados a suas demandas.

Também, a pandemia revela a falta de educação permanente aos profissionais da saúde. A falta de capacitação para atuar em lócus nos cuidados/na assistência a pessoas com COVID-19 é a realidade de muitos serviços de saúde nos seus diferentes níveis hierárquicos de complexidade.

Este contexto de precárias condições, foi amplamente discutido quando da proposta do teto de gasto governamentais, ainda no “governo” Michel Temer. A Emenda constitucional número 95, do ano de 2016, institui um novo regime fiscal limita o crescimento dos gastos pelo governo brasileiro durante 20 anos. O significado na área da saúde são o subfinanciamento, fechamento de serviços de saúde, diminuição de leitos, diminuição dos atendimentos, dos insumos em saúde. E sobretudo, se restringe o direito a saúde, garantido pela Constituição Brasileira de 1988, no artigo 196.

No contexto da pandemia, ainda agravando a situação dos profissionais da enfermagem, o Presidente Jair Bolsonaro promulgou a medida provisória (MP) 927/2020. Dentre as medidas a serem instituídas pela MP destaca-se: aumento da jornada de trabalho dos profissionais da área da saúde – permite que os trabalhadores realizem jornadas sem limites de horas, com descanso reduzido a 12 horas interjornadas. A medida tem como consequência direta aos profissionais da enfermagem o cansaço físico, mental e psíquico, aumentando os riscos de erros e iatrogenias, assim como aumento da exposição ao risco de infecção/contaminação pelo coronavírus.

Outra medida a ser destacada, foi a proposta de Bolsonaro, divulgada por meio de pronunciamento, divulgado pelas principais emissoras de televisão no dia 24 de março de 2020, de fim do isolamento social. O presidente propôs a retomada das atividades laborais e a volta as aulas no país. Também, sugeriu que o isolamento se limitasse ao isolamento vertical – esse isolamento se limitaria ao isolamento de idosos e de pessoas com comorbidades crônicas. Pois, considerou que o coronavírus, na maioria da população, seria só um “resfriadinho”, só uma “gripezinha”. Dessa maneira, o Presidente transgride as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), as evidências científicas indicadas pelos pesquisadores das áreas médicas e ignora a experiências de países como China, Itália e agora Estados Unidos.

Junto ao posicionamento de Bolsonaro, tivemos também o do Ministro da Saúde. Um dia depois do pronunciamento, o Ministro Luiz Henrique Mandetta mudou o tom de seu discurso (que até então posicionava-se a reforçar as medidas de isolamento horizontal – áreas não essenciais ficam em quarentena). Criticou os governadores de Estados pelos decretos de quarentena, considerou a ação como precipitada. Além disso, criticou o lock-down, ou seja, a parada de tudo. Coloca que se instituída as quarentenas generalizadas provocariam problemas, citando como exemplo, o transporte de vacinas, “porque não tem mais o avião”, e na produção de ventiladores hospitalares, “porque o funcionário não chega na firma”. Desde o dia 29 de março, o Ministro tem retomado a sua posição inicial de defender o isolamento social, propondo alinhamento das ações de Estados e União, através do Ministério da Saúde. Nisto tudo, fica evidente a falta de ética e o caráter flutuante do Ministro.

Michel Foucault, em seu livro intitulado “Genealogia do Racismo”, propõe uma discussão teórica sobre o gerenciamento da vida realizado pelos Estados Nacionais Modernos. Ele traz à cena o conceito de biopolítica. Inicia sua discussão propondo que nestes Estados há um deslocamento do poder do soberano de fazer morrer e deixar viver para um poder que estatal que faz morrer e deixa viver. Nos Estados modernos a biopolítica volta-se para garantir a produtividade (econômica e política) dos cidadãos e foca-se em processos como a “proporção de nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução a fecundidade” (FOUCAULT, 1999, p. 290).

Achille Mbembe, filósofo camaronês, realizando uma releitura do conceito foucaultiano de biopolítica voltando-se aos países pós-coloniais (países colonizados pela Europa), apresenta o conceito de necropolítica. A necropolítica é concebida como o uso do poder e da política para condicionar a existência humana, elegendo quem pode viver e quem deve morrer. O deixar morrer nas sociedades modernas têm sido colocados em cena pelos movimentos sociais, principalmente em discussões que trazem a classe social, a raça e o gênero/sexualidade para debater a morbimortalidade em determinados grupos sociais. O aparato estatal na necropolítica é meio para se executar os não desejáveis. Assim, Mbembe considera que “projeto central [dos Estados Nacionais pós coloniais] não é a luta por autonomia, mas a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de [alguns] corpos humanos e populações” (MBEMBE, 2018, p.10).

Com isso, é possível refletir, conforme sugere Mbembe, “sobre quais condições práticas se exerce o poder de matar, deixar viver ou expor a morte? Quem é o sujeito dessa lei? O que a implementação de tal direito nos diz sobre a pessoa que é, portanto, condenada a morte e sobre a relação que opõe essa pessoa a seu assassino/a”?

A reflexão proposta por esse texto é que a população inteira é colocada em risco pelo soberano da nação, ou seja, pelo presidente. Há uma política de morte articulada à pandemia.

Profissionais de saúde infectados, doentes (tanto física, quanto psiquicamente), diminuem as possibilidades de prevenção, tratamento e reabilitação, tantos das pessoas com Covid-19, quanto de pessoas com outras patologias que necessitarão de assistência em saúde. Há uma neutralização deste contingente.

Logo, a Enfermagem faz parte desta política de morte. A exposição, traduzida na falta de condições de trabalho, dos profissionais não é sem razão. Somos indesejáveis! Pois existe potência na atuação da Enfermagem no combate à pandemia. Mesmo diante da falta de condições, e dos princípios éticos envolvidos no exercício da profissão, não nos cabe o martírio! O martírio, não se restringe somente à morte do corpo, mas também se refere à morte política pelo ideal do cuidado.

A luta dos profissionais de enfermagem, assim como a da sociedade neste momento, deve ser no sentido de exigir junto aos governantes condições de trabalho que deem conta da complexidade assistencial em tempos de pandemia.

Resistir à necropolítica do Estado Brasileiro é o centro das ações e reivindicações da Enfermagem. Segundo Foucault, a resistência não é essência, assim, não é anterior ao poder que ela enfrenta, sendo a ele coextensiva e absolutamente contemporânea. “Para resistir”, afirma Foucault, “é preciso que a resistência seja como o poder”, “tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele”, e “que, como ele, venha de ‘baixo’ e se distribua estrategicamente.

Por consequência, é preciso ter explícito que o fortalecimento da enfermagem é central no combate à política de morte instituída pelo governo em tempos de pandemia. Valorizar a vida, a autonomia dos sujeitos é luta permanentemente da enfermagem.

Algumas medidas a serem exigidas aos governos são:

  • contratar mais profissionais de enfermagem com intuito de possibilitar um maior revezamento.
  • garantir EPIs para os profissionais de saúde a fim de garantir minimizar os riscos de infecção/contaminação.
  • disponibilizar recursos materiais e insumos em saúde possibilitando assistência de qualidade para pessoas doentes (não só com COVID)
  • piso salarial para enfermagem, viabilizando remunerações mais adequadas a complexidade do trabalho em enfermagem.
  • readequação da carga horária para 30 horas semanais.
  • Educação permanente voltada a enfermagem.
  • recursos para a pesquisa em enfermagem.

Estas medidas possibilitariam que os profissionais de Enfermagem exerçam seu trabalho de forma técnica e científica, sem sobrecarga de jornadas de trabalho, concentrados e com menor risco de exposição ao agente patológico. E principalmente, voltados para autonomia dos sujeitos assistidos.

Por fim, para conhecimento e lembrança, o papel da enfermagem é cuidar o mundo, não ser seu mártir!

Referências:

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N1, 2019.

Junara Ferreira é  enfermeira, sanitarista, mestra e doutoranda em Sociologia pela UFRGS.

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