Empresas-plataforma: enfim, direitos aos trabalhadores?

Centenas de pesquisadores assinam manifesto para que governo Lula enfrente a precarização.

Pesquisadores sobre a plataformização do trabalho

Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 07/02/2023

Dois fatos novos voltaram a sacudir, nas últimas 24 horas, o debate sobre a regulação do trabalho em empresas-plataforma no Brasil. O primeiro veio hoje, dos grupos de pesquisa sobre o tema, que têm forte tradição de engajamento em favor dos direitos sociais. Dezenas de centros de pesquisa, associações, fóruns e estudiosos em caráter pessoal assinaram um manifesto sintético, porém incisivo, sobre as mudanças que esperam. O documento pode ser lido abaixo (ou neste link), e apoia-se em dois eixos.

Primeiro, a defesa da regulação das relações trabalhistas pelo Estado. É inconcebível, sustenta o texto, permitir que a base do relacionamento entre as partes seja estabelecida por meio da “livre” negociação. Os poderes são totalmente desiguais: de um lado, corporações transnacionais bilionárias; de outro, trabalhadores precarizados lutando, quase a qualquer custo, pela própria sobrevivência. Políticas públicas precisam estabelecer regras. Entre elas estão o reconhecimento do vínculo de trabalho; a noção de que ele precisa estabelecer direitos de cumprimento obrigatório; a garantia de prerrogativas que já beneficiam os trabalhadores com registro em carteira (como salário, jornada máxima, férias, 13º etc) e a proteção de dados.

A segunda base é o estímulo a plataformas alternativas – construídas pelo poder público ou por cooperativas. Os trabalhadores e a população não podem ficar à mercê de empresas cujo objetivo central é o lucro máximo. Como em diversas partes do mundo, precisam surgir iniciativas que tiram proveito da tecnologia para estabelecer relações não-capitalistas.

Outro fato destacado foram as declarações do ministro do Trabalho, Rogério Marinho, ao Valor. Indignado sobre o que ocorreria se as empresas-plataforma ameaçassem deixar o país (como fizeram na Espanha), Marinho foi taxativo: “Problema do Uber. Cria outro. Aplicativo há aos montes no mercado”.

* * *

Depois de anos em que o Estado se omitiu diante da precarização, algumas peças começaram a se mover no início do governo Lula. Em 17 de janeiro, uma comissão de entregadores por aplicativos reuniu-se com o secretário de Economia Solidária do Ministério do Trabalho, Gilberto de Carvalho para estabelecer diálogo. Estavam presentes representantes de diversos grupos que articulam a categoria, com destaque para a Aliança de Entregadores de Aplicativos, que programara uma greve para dias depois (o movimento foi suspenso). O resultado principal foi a decisão, tomada por Marinho dois dias depois, de abrir debate sobre o tema, com prazos claros. Até o próximo dia 13, as entidades interessadas apresentarão suas propostas de regulamentação. Em seguida, haverá uma reunião entre todos os que tiverem se manifestado, para tentar chegar a pontos de vista comuns. Estes serão trabalhados por uma comissão, que buscará transformar os consensos em propostas de lei.

O manifesto dos pesquisadores busca inserir-se neste processo. Ana Cláudia Moreira Cardoso, uma das articuladoras do documento, explica que novas iniciativas virão. O grupo prepara, para as próximas semanas, material didático para dialogar com os precarizados sobre a regulamentação. Busca enfrentar o desconhecimento e os preconceitos que levam alguns a rejeitar a ação do Estado – por temerem, por exemplo, não poder trabalhar simultaneamente para duas empresas-plataforma, ou julgarem que serão obrigados a regimes de 8 horas de trabalho ininterruptas.

Comum nas fases de ascenso das lutas sociais que se estendeu dos anos 1970 até a Constituinte, a articulação entre o ativismo e pesquisa científica refluiu depois. Foi engolida pela introdução, nas instituições universitárias, de critérios de “produtividade” alienantes, e pela burocratização dos sindicatos e outros movimentos. A retomada desta tradição é uma saudável novidade. (Antonio Martins)

Manifesto sobre a Regulação do Trabalho Controlado por “Plataformas Digitais”: pela garantia de direitos dos trabalhadores e trabalhadoras no Brasil

Nós, pesquisadores e pesquisadoras abaixo identificados/as, estudamos o fenômeno do trabalho explorado por empresas que usam as chamadas plataformas digitais e nos reunimos em um fórum de debates para discutir a regulação do trabalho, tendo em vista as movimentações do Governo Lula sobre o tema. Vimos, por meio deste documento, nos manifestar com o objetivo de contribuir e de participar nesse debate público tão importante para o futuro do trabalho em nosso país.

Considerando que o mundo do trabalho vem passando por transformações nos últimos anos, as quais têm fragilizado a garantia de direitos e o sistema de proteção social, a exemplo das medidas implementadas pela reforma trabalhista de 2017, que acentuou a precarização do trabalho; e considerando a necessidade de afirmar a proteção de todos e todas que trabalham;

Considerando que diversas empresas têm utilizado tecnologias da informação e da comunicação, passando, com isso, a se autointitular como plataformas digitais, apresentando-se como intermediárias neutras, o que camufla as relações de trabalho que desenvolvem;

Considerando que compartilhamos de preocupações com as condições de vida dos/as trabalhadores/as, especialmente com a intensificação da exploração do trabalho e a deterioração da sua dignidade, sobretudo em face dos novos usos de tecnologias no contexto atual;

Considerando que o modelo de negócio das empresas-plataformas tem implicado em salários insuficientes e continuamente rebaixados, jornadas exaustivas, graves acidentes de trabalho, falta de recolhimentos previdenciários e tributários e fragmentação das organizações coletivas dos trabalhadores, impondo a absoluta ausência de proteção e segurança social;

Considerando que tais empresas aplicam estratégias que visam desestruturar vínculos de solidariedade, invisibilizar o poder que detêm de controlar os/as trabalhadores/as e os/as clientes, criando narrativas que falseiam o trabalho como “autônomo” e “autogerenciado” ou “sem patrões”;

Considerando que a difusão do uso de plataformas digitais é expressão de uma nova reconfiguração do mundo do trabalho e, por isso mesmo, alcança diferentes atividades e ocupações (bancários, professores, comunicadores, cuidadores, entre outros);

Considerando que tais empresas operam em mercados globais, por meio de grandes conglomerados econômicos que se apresentam com atuação em diferentes países, ignorando a soberania nacional e regulando unilateralmente os termos de troca da força de trabalho e a concorrência entre os/as próprios/as trabalhadores/as; e considerando ainda a necessidade de olhar esse cenário desde as particularidades do Brasil e de outros países do Sul global, marcados por  especificidades históricas que determinam o desemprego e a informalidade como elementos centrais de sua inserção nessa dinâmica global;

Considerando, sobretudo, a necessidade de proteção dos trabalhadores/as, vimos a público contribuir para o estabelecimento de balizas para o debate sobre o tema, apresentando as seguintes questões:

1 – Proteção para toda a classe trabalhadora

O trabalho controlado por meio de empresas-plataformas digitais diz respeito ao futuro do trabalho, para todos os setores da economia. Assim, regular os direitos de trabalhadores/as que prestam serviços por meio de plataformas digitais é um ponto de partida para um debate mais amplo sobre a regulação do trabalho nessa nova fase do capitalismo. Para proteger todas as categorias profissionais, não podemos conceder a institucionalização da flexibilização de direitos e o aprofundamento das condições precárias de trabalho. A ampliação do debate para toda a classe trabalhadora, com seus representantes legítimos, e a atenção à amplitude da questão é, portanto, fundamental.

2 – Reconhecimento do vínculo de emprego como ponto de partida

As/os trabalhadoras/os contratadas/os por empresas-plataformas não são autônomas/os. O trabalho autônomo, autogestionado e por conta própria não é compatível com conglomerados econômicos organizados que possuem poderes diretivos sobre a organização do trabalho e sobre o modo de realização das tarefas. Ao agregar trabalhadores e trabalhadoras em suas cadeias de valor, impondo unilateralmente regras e punições, entre as quais destacam-se o estabelecimento de preços, a distribuição de trabalho, as avaliações opacas e os bloqueios punitivos, a prática das empresas condiciona a forma da exploração do trabalho e as descaracteriza enquanto tomadoras de trabalho autônomo.

3 – Regulação pública como forma de atenuar a desigualdade de poder

A intervenção do Estado, por meio de uma regulação pública e obrigatória, é fundamental para atenuar a desigualdade de poder entre empresas e trabalhadoras/es e para estabelecer marcos mínimos para uma contratação condizente com os direitos hoje assegurados na Constituição Federal e em outras normas que regem o assalariamento. Proposições jurídicas que pregam liberdade ampla de escolha para empresas e trabalhadoras/es sobre o enquadramento jurídico adequado implicam, em verdade, o arbítrio do poder privado sobre as/os trabalhadoras/es. Isso porque as empresas-plataformas digitais estão em posição de poder e controle em relação às/aos trabalhadoras/es envolvidas/os em sua atividade econômica.

4 – Garantia de direitos trabalhistas como salário, jornada máxima de 8h, intervalos, férias e 13º salário

As/os trabalhadoras/es contratadas/es por empresas que se utilizam de plataformas são também assalariados, ainda que a relação salarial seja camuflada. Como tal, é necessário, em qualquer proposta que se coloque, respeitar a Constituição Federal de 1988 e, particularmente, o seu art. 7º, que prevê direitos como jornada diária limitada em, no máximo, 8 horas, correspondente ao salário mínimo nacional; intervalos para repouso, férias remuneradas; 13º salário; garantia do descanso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; normas de saúde e segurança; proteção contra acidentes de trabalho; inserção previdenciária; organização sindical, negociação coletiva, greve; entre outros direitos que devem ser garantidos a trabalhadores e trabalhadoras assalariadas. É falacioso o discurso de que a relação de emprego traz amarras e prejuízos às/aos trabalhadoras/es, visto que a contratação por horários de trabalho rígidos ou por meio de tipos contratuais específicos não são pressupostos do vínculo empregatício. As soluções para a questão do trabalho por meio de plataformas precisam ser construídas democraticamente, em diálogo e respeitando a luta dos atores sociais – trabalhadores e trabalhadoras – e devem ter em vista a correlação entre poder e responsabilidade que rege as relações jurídicas, bem como a necessidade de afirmação de direitos para quem trabalha.

5 – Proteção de dados pessoais e transparência de sistemas automatizados

As soluções a serem construídas devem incluir medidas que garantam a proteção de dados pessoais dos/as trabalhadores/as e de todos aqueles entes envolvidos nas interações digitais com as plataformas. Ainda, deve-se considerar que os dados capturados nessas interações permitem a organização algorítmica do trabalho e a monetização do negócio das empresas que oferecem serviços por plataformas digitais, muitas vezes em prejuízo dos trabalhadores e clientes, que não têm acesso ou sequer a possibilidade de questionar a programação. Deve-se, assim, considerar a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais brasileira para assegurar respeito aos direitos das pessoas envolvidas, quer sejam direta ou indiretamente afetados pelos termos da programação digital. Por isso mesmo, são necessárias medidas que permitam transparência e negociação sobre os termos de gestão do trabalho, em especial aqueles operados com o uso de sistemas automatizados, como os algoritmos.

6 – Proteção social e tributação condizentes com as operações das empresas no Brasil

Muitas das empresas-plataformas digitais são multinacionais que atuam em diversos países, o que tem levado Estados atentos e sensíveis às demandas sociais por proteção social e por regulação desse modelo de negócios a pensarem formas de reconhecer direitos aos trabalhadores/as bem como de tributação, evitando burlas fiscais. A fim de viabilizar uma inserção altiva da sociedade brasileira no cenário internacional, é necessário considerar essas experiências externas e implementar medidas que evitem patamares rebaixados de direitos para as suas trabalhadoras e os seus trabalhadores e que levem à distribuição da riqueza.

7 – Incentivo ao desenvolvimento de plataformas públicas e de cooperativas

A fim de fomentar outras relações sociais mediadas pelas tecnologias e evitar que o trabalho e os serviços sejam remodelados unilateralmente pela iniciativa privada, o poder público deve atuar no sentido de desenvolver plataformas para a prestação de serviços hoje monopolizados por empresas privadas. É fundamental estimular cooperativas e outras formas de trabalho associado, em que trabalhadores/as sejam proprietários/as das tecnologias e plataformas que venham a ser utilizadas – evidentemente impedindo o uso fraudulento dessas por empresas privadas. Essa é uma resposta importante para as legítimas demandas por trabalho genuinamente autônomo e, assim, se poderia assegurar que as tecnologias fossem utilizadas em benefício da população, garantindo também que o Estado atue no planejamento e na oferta de serviços.

Por fim, vale reforçar que nosso interesse como cientistas e pesquisadores/as é compartilhar o conhecimento acumulado, para contribuir com as discussões entre todos os entes envolvidos. Nossa contribuição é democrática e, por isso mesmo, indissociável do compromisso com condições de vida e trabalho dignas para trabalhadores/as brasileiros/as.

Confira aqui os grupos que elaboraram o manifesto e quem o assina.

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