Uma empresa ligada ao desmatamento e à produção ilegal de gado em terras indígenas pode ser considerada sustentável? E uma que faz mil malabarismos para não pagar impostos, ou que não dá condições de trabalho dignas a seus funcionários? Para o mercado financeiro, todas podem. A bolsa de valores brasileira divulgou a lista das 61 corporações que estarão na próxima carteira do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE B3), válida para 2023.
O índice seleciona, a partir de um questionário respondido pelas empresas, aquelas que são “referência” no compromisso com a sustentabilidade, “apoiando os investidores na tomada de decisão de investimento e induzindo as empresas a adotarem as melhores práticas”, informa o site oficial. Na prática, é uma sinalização que influencia não só as movimentações no tabuleiro do mercado, mas a opinião pública como um todo. Algo que a indústria explora em seus relatórios, falas públicas, campanhas de marketing. Um ganho econômico e de imagem.
Dentre as integrantes da carteira de 2023 estão duas gigantes da indústria da carne, Marfrig e BRF; a rede atacadista Assaí; a Rumo S.A, envolvida na construção de uma ferrovia que favorece o agronegócio e atropela terras indígenas; a Cosan, que tem negócios no ramo do açúcar e um dono que doou milhões a candidaturas de direita nas eleições; a fabricante de cerveja (e de “filiais-fantasma”), Ambev; e uma representante de peso da indústria brasileira de ultraprocessados: a M. Dias Branco, que carrega mais de três mil processos trabalhistas nas costas.
Você pode até não reconhecê-la pelo nome, mas certamente a conhece pelos produtos, porque a M. Dias Branco é dona de marcas como Piraquê, Vitarella, Estrela, Treloso, Richester e Fit Food. Do biscoito modernoso ao macarrão popular, o portfólio da M. Dias Branco é gigante. Só entre 2019 e 2021 foram lançados 243 novos produtos. As atividades da empresa tiveram início nos anos 60, em Fortaleza, como um pequeno empreendimento de Manuel Dias Branco.
No entanto, o negócio mudou de rumo quando o filho entrou na sociedade. O primeiro passo foi substituir as técnicas artesanais pela produção em larga escala. Depois, a empresa começou a comprar e incorporar concorrentes – Adria, Vitarella, Pilar, Estrela, Moinho Santa Lúcia, Piraquê, Latinex e, recentemente, a uruguaia Las Acacias. Além de verticalizar a produção, expandir a distribuição dos produtos pelo país e exportar. Hoje, a M. Dias Branco é um megazord da indústria, líder da produção nacional de biscoitos e massas, cuja receita líquida chegou a quase R$ 8 bilhões no ano passado. É como já dissemos aqui no Joio: do gourmet ao baratex, a indústria divide para conquistar.
A empresa não divulga o rastro de processos que a história de sucesso da família deixou em nenhum relatório de sustentabilidade ou nos formulários de referência anualmente entregues à Comissão de Valores Imobiliários (CVM) – algo que é de praxe nesse tipo de documento. A equipe do Joio teve de buscar os Tribunais Regionais do Trabalho (TRT) de todos os 18 estados onde há unidades da empresa para encontrar essa informação. Os processos versam, em geral, sobre o não pagamento de horas extras; acidente de trabalho e doença ocupacional; adicional de insalubridade ou periculosidade; desvio ou acúmulo de função; e reconhecimento de vínculo empregatício.
Em 2013, a M. Dias Branco criou sua primeira “Agenda Estratégica de Sustentabilidade”. Coincidentemente ou não, um ano depois de uma explosão em uma de suas fábricas de gorduras e margarinas, localizada em Fortaleza (CE), deixar quatro funcionários gravemente feridos e outros quatro mortos. O fato é digno de nota porque é uma estratégia clássica do modus operandi da indústria para gerir crises através de promessas falsas ou vazias, como aponta o relatório Talking Trash.
Na época, um Relatório de Análise de Acidente do Trabalho Fatal, feito pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE), identificou que, na ocasião da explosão, os funcionários já trabalhavam mais horas do que deveriam e sem o descanso obrigatório entre um dia de trabalho e o outro. A SRTE ainda identificou outras infrações, como a falta de registro dos horários de entrada e saída de funcionários.
O Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizou, então, uma Ação Civil Pública, pedindo uma indenização de R$ 20 milhões por danos morais coletivos. No texto, o MPT afirma que “o acidente ocorreu, efetivamente, por culpa da empresa, face ao descumprimento das normas de segurança e medicina do trabalho e dos procedimentos operacionais internos, visando maior produtividade em detrimento da saúde e da vida dos trabalhadores”.
A M. Dias Branco foi condenada e a notícia se espalhou principalmente pelos jornais nordestinos. Mas não demorou para a empresa contestar a decisão judicial. Primeiro tentando se eximir de responsabilidade e culpando os trabalhadores pela explosão; depois, tentando reduzir o valor da indenização para R$ 10 milhões (e, por fim, para R$ 3 milhões). Depois de 2 anos parado, o processo foi desarquivado no mês passado. Na plataforma de consulta processual do TRT da região não há documentos relativos aos últimos andamentos do caso.
Vale registrar que seis integrantes da família Dias Branco estão entre os dez maiores bilionários do setor alimentício no Brasil, de acordo com ranking da Forbes. Juntos, eles somam um patrimônio de mais de R$ 12 bilhões.
Nos mais de três mil processos encontrados pelo Joio, identificamos os mesmos problemas apontados pela SRTE há quase 10 anos. Inclusive em casos recentes.
Desrespeito ao intervalo intrajornada e falta de controle da jornada de trabalho, para “exigir livremente uma produtividade que não pode ser cumprida numa jornada normal de trabalho” – é o que diz uma sentença da 4ª Vara do Trabalho de São Gonçalo (RJ), publicada há dois meses.
Casos de funcionários que trabalhavam em ambiente insalubre ou periculoso (o que foi comprovado por perícias no local) sem receber os devidos adicionais. A exemplo de um trabalhador contratado como auxiliar de mecânico, que exercia, na prática, a função de mecânico, e ainda trabalhava em uma área com risco de explosão. Além de não receber o salário que deveria, ele não ganhava o adicional de periculosidade. Um auxiliar de mecânico recebe em torno de R$ 1.390 e um mecânico recebe R$ 2.300, de acordo com os autos do processo.
Também há casos de pagamentos “por fora”; não reconhecimento de horas trabalhadas fora das dependências da empresa; e tentativas de fugir da responsabilidade com a saúde e a segurança de trabalhadores terceirizados.
Enquanto confrontava o MPT no tribunal, em 2014, a M. Dias Branco lançava o primeiro relatório no qual constam mais informações sobre a tal Agenda Estratégica de Sustentabilidade. Sua pretensão era de implementar, até 2019, práticas relacionadas aos seguintes eixos:
- nutrição e saudabilidade;
- embalagens;
- resíduos;
- águas e efluentes;
- energia e emissões;
- investimento social e comunidades;
- transparência e diálogo;
- insumos.
O texto, no entanto, não estabelece metas claras. Fala em “direcionadores” e “linhas de ação” que têm promessas como a redução dos níveis de açúcar, sódio e gorduras trans dos produtos; implantação da logística reversa das embalagens pós-consumo; reuso de água; redução do uso de combustíveis fósseis; investimento em qualidade de vida e fomento à cultura de sustentabilidade na empresa.
É importante destacar que parte dessas promessas já eram obrigação da empresa bem antes de a Agenda existir. Desde 2010, quando a Política Nacional de Resíduos Sólidos foi criada, ações sobre destinação adequada de resíduos são responsabilidade de todo o setor empresarial. Assim como a preocupação com um design sustentável e o uso de matérias-primas renováveis ou recicladas.
O problema é que muito do que diz a lei virou letra morta. As empresas colocam em circulação toneladas de embalagens, dos mais variados materiais, não se responsabilizam pela coleta e destinação dos resíduos, e quem paga o pato são os catadores de materiais recicláveis que, quase sempre sem apoio nenhum, são a linha de frente na batalha contra a montanha de lixo que avança sobre nós.
Em entrevista ao Joio, no especial “Dieta do Lixo”, o ambientalista e ex-deputado federal, que participou da criação da PNRS, Fábio Feldmann, afirma que ela “era uma lei que vislumbrava uma mudança radical na maneira de encarar, implementar e trazer uma nova abordagem em relação aos resíduos, e ela não trouxe”.
Em um relatório de 2015, a M. Dias Branco apresentou os primeiros resultados de sua empreitada “sustentável”. Apesar das metas abstratas e da falta de padrão na divulgação das informações, tentamos comparar o dito e o feito pela empresa, utilizando os dados de 2015 e de 2020, ano em que foi encerrado o período de implementação da tal Agenda. Em alguns casos, foi impossível comparar os resultados, pois os indicadores utilizados em cada ano são diferentes – a exemplo do eixo de energia e emissões.
No ano passado, quando a M. Dias Branco estreou na carteira do ISE B3, afirmou, em um relatório: “Desde 2013, adotamos uma Agenda de Sustentabilidade, impulsionando práticas sustentáveis em toda a cadeia de valor da nossa empresa. Como fruto desta jornada de mais de oito anos de avanços, destacamos a inclusão da M. Dias Branco na 16ª Carteira do ISE.”
Colocando os resultados apresentados pela empresa lado a lado, no entanto, fica óbvio que ela encerrou o período de implementação de sua Agenda sem atingir boa parte das frágeis metas. Na verdade, a maior parte desses indicadores mostram que quase nada mudou nesses cinco anos – e que ainda houve retrocessos. Mesmo assim, ela continua na carteira do Índice no ano que vem.
Além dos processos trabalhistas nos quais a empresa está envolvida, que chamam atenção pelo volume e pelo conteúdo, há outros indicadores de sustentabilidade nos quais a M. Dias Branco está longe de ser referência. Especialmente no que diz respeito à sustentabilidade social e corporativa.
Por exemplo, a empresa mantém uma estrutura de poder majoritariamente formada por homens brancos. De acordo com informações do último formulário de referência entregue à CVM pela empresa, sua diretoria, composta por oito pessoas, tem apenas duas mulheres. Ambas integrantes da família Dias Branco. No Comitê de Sustentabilidade, que tem quatro pessoas, só uma é mulher. No de ESG, que também trata de questões avaliadas pelo ISE B3, só há uma mulher entre os três membros. Não há informações sobre o perfil étnico-racial dessas lideranças. Nas fotos abaixo, estão os membros da diretoria.
Em seus relatórios, é quase impossível achar uma foto de toda a Diretoria reunida. Por outro lado, ações em instituições filantrópicas e a doação de produtos da empresa são registradas com fotos e destaque. O que pode parecer muito solidário, mas também é uma estratégia clássica de socialwashing – quando as corporações tentam “limpar” sua imagem através de ações que vendem para o consumidor e o mercado a ideia de que elas estão comprometidas com a responsabilidade social.
A questão da composição e da qualidade dos produtos também entra na roda quando falamos sobre sustentabilidade social. Afinal, estamos aludindo a uma lista sem-fim de produtos ultraprocessados. Formulações industriais frequentemente à base de commodities agrícolas, como a soja, cuja produção está associada a inúmeros problemas ambientais e sociais, e ao uso intensivo de agrotóxicos; que contêm aditivos sobre os quais ainda não se sabe o potencial impacto à saúde humana; associadas à epidemia de obesidade e doenças crônicas não transmissíveis (DCNT). O setor ainda está entre os maiores poluidores do mundo.
O que nos leva de volta às perguntas que iniciam esse texto. A indústria de ultraprocessados pode ser sustentável? Levamos essa questão quase filosófica para o ambientalista Fábio Feldmann e para a pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas e diretora de mercado de capitais ESG da PwC, Melissa Schleich.
Para ela, a comparação de indicadores é de fato uma questão controversa do ESG – sigla em inglês que vem substituindo o termo “sustentabilidade” nos relatórios e discursos das corporações. “O ESG tem essa questão controversa da comparabilidade de indicadores que são muito diferentes. Você pode ter uma empresa que teve um acidente ambiental grave e tem indicadores sociais excelentes. O que você faz com isso?”, indagou.
“Exclui [a empresa] de tudo porque ela teve um acidente ambiental? Você pode ter uma companhia com indicadores ambientais excelentes, com um plano de zerar carbono até 2030 muito bem estruturado, mas com indicadores sociais não tão bons. E aí, como você compara uma companhia com outra companhia? E um indicador com outro indicador? O que é mais importante? O que é mais relevante? Em geral, a gente fala de materialidade, que é um conceito em sustentabilidade que quer dizer ‘o que é mais relevante dentro do negócio daquele business específico’, mas a comparabilidade realmente é discutível. Especificamente porque hoje também não existe uma normativa apropriada para isso.”
Já para Feldmann, “você tem algumas indústrias que são limite. O tabaco é uma delas. Tanto que você tem fundos de investidores que não investem em armas, tabaco, eventualmente álcool, e agora tem essa discussão de fundos que não investem em combustíveis fósseis”. Parece que a discussão está atrasada quando o assunto são os ultraprocessados.
A assessoria do ISE B3 foi procurada pela reportagem, em mais de uma ocasião, mas se negou a dar entrevistas.
Fonte: O Joio e o Trigo
Texto: Mylena Melo
Data original da publicação: 16/12/2022
Parabéns pela reportagem.