Os dados mais recentes da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – FAO sobre o aumento da fome na América Latina indicam que mais de 59,7 milhões de pessoas passaram fome no ano passado, 9,1% da população da região, 30% a mais do que em 2019. No Brasil, 55% dos habitantes se encontram nessa condição, totalizando aproximadamente 19 milhões de pessoas.
Quando se trata de encontrar modos de enfrentar essa realidade, “devemos partir do princípio de que a fome envolve uma questão ética”, diz Francisco Menezes, ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Consea. “Na proporção em que ela já está, sequer dá para esperar que as eleições de 2022 resolvam o problema. Por outro lado, não temos nenhuma perspectiva de que o atual governo enfrente a questão da fome de forma tal a poder deter esse crescimento e atender tantas milhões de pessoas que estão nessa situação”, disse ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. E acrescenta: “O processo eleitoral será central no ano de 2022, mas será de muitos riscos e exigirá acertos nas decisões de quem está olhando para um projeto de país”.
Na entrevista a seguir, concedida via Zoom, ele e Sílvio Porto, ex-diretor da Companhia Nacional de Abastecimento – Conab, que participou da criação e implementação do Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, comentam a Medida Provisória – MP 1601, que cria o Programa Auxílio Brasil em substituição ao Programa Bolsa Família e o Programa Alimenta Brasil em substituição ao PAA. No desenho atual, adverte Porto, “o Alimenta Brasil esvazia a Conab enquanto executora do programa e joga isso para os estados e municípios na perspectiva de fortalecer a relação desses entes federativos”.
Para Menezes, “a motivação da MP 1601 foi exclusivamente eleitoreira por parte do presidente da República”. Na avaliação de Porto, a proposta “é típica de quem desconhece a máquina pública e os processos de gestão para fazer uma avaliação e tomar uma decisão dessa natureza, e olha mais o impacto do anúncio do que está preocupado com o resultado para a sociedade. Nesse sentido, o governo poderia ser aplaudido e ganhar politicamente se fizesse a aposta em alocar recursos e fortalecer a Conab muito mais do que estados e municípios”.
A MP, aprovada por unanimidade na Câmara dos Deputados recentemente, está tramitando no Senado e possivelmente será votada até 07-12-2021.
Francisco Menezes é graduado em Economia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ e pós-graduado em Desenvolvimento Agrícola pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ. Atualmente é assessor da ActionAid.
Sílvio Porto é graduado em Agronomia pela Universidade Federal de Pelotas – UFPel, mestre em Agroecologia pelas Universidades Internacional da Andaluzia, de Córdoba e UPO, com diploma revalidado no Brasil pelo Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural – PGDR da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutorando em Meio Ambiente e Sociedade pela Universidade Pablo de Olavide – UPO, em Sevilha. Atualmente é professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB.
Confira a entrevista.
IHU – Na quinta-feira, 25-11-2021, a Câmara dos Deputados aprovou a MP 1601, que cria o Programa Auxílio Brasil em substituição ao Programa Bolsa Família. Qual é o significado dessa aprovação neste momento, considerando o histórico de desenvolvimento das políticas públicas no país?
Francisco Menezes – A motivação da MP 1601 foi exclusivamente eleitoreira por parte do presidente da República. Ele já afirmava há bastante tempo a disposição de extinguir o Programa Bolsa Família e isso orientou a construção da MP, que extingue também o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA. Ele queria criar uma marca própria, um programa para chamar de seu e fazer apagar a memória de programas anteriores que tinham sido marcos na política, seja em relação à proteção social, seja em relação à própria política de segurança alimentar e nutricional, nas quais esses programas tiveram um impacto muito forte.
Auxílio Brasil
O Auxílio Brasil foi construído entre quatro paredes. Não houve sequer um processo de consulta dentro do próprio governo entre os quadros que lá ainda existem e têm conhecimento sobre programas de transferência de renda. Não houve também consultas a organizações da sociedade que pesquisam e estudam esses processos, inclusive na própria academia, onde se concentraram estudos e teses que contribuíram para o aperfeiçoamento do Bolsa Família e do PAA ao longo dos últimos anos. Também não houve consultas nos municípios e estados. A proposta foi elaborada sem essas preocupações.
Nós, que discutimos transferência de renda, defendíamos que o Programa Bolsa Família precisava ser revisto porque a linha [de pobreza] que se colocava já não condizia mais com a realidade e precisava ser atualizada. Como a pandemia engrossou a pobreza, muito mais pessoas precisavam receber a transferência de renda. Tínhamos evidências de que uma parcela grande dos que estavam recebendo o Auxílio Emergencial não tinha qualquer outra renda e não estava contemplada no Bolsa Família. Formavam-se, ao mesmo tempo, filas de pessoas para ingressar no programa. Além disso, o valor a ser transferido também precisava ser revisto. Não há dúvida de que precisava ser feita uma revisão nessa direção. Mas não precisávamos ter a apresentação de uma MP para isso, a qual é muito mal construída e cheia de problemas.
IHU – Como avalia a reformulação desse programa de transferência de renda à luz da discussão sobre a instituição de uma renda básica universal que possa ser garantida constitucionalmente, que também está sendo feita no Congresso e em outros setores da sociedade civil? O país precisa de dois tipos de programas ou seria o momento de avançar de modo mais urgente na instituição de uma renda básica universal, por conta das transformações do mundo do trabalho, das consequências sociais e econômicas da pandemia e do aumento do desemprego, da pobreza e da fome?
Francisco Menezes – Essa pergunta é muito importante. Desde que começou a pandemia, a discussão sobre renda básica ganhou uma importância grande. O próprio Auxílio Emergencial nasceu de uma articulação da sociedade, que trouxe para o Congresso Nacional a necessidade de se fixar uma renda a ser transferida maior do que a do Bolsa Família e para mais pessoas. O Congresso percebeu a necessidade de fazer isso com urgência e por isso o Auxílio foi aprovado no final de março de 2021 – e o governo, que propunha uma transferência de 200 reais, acabou transferindo 600 e 1200 reais para mães solo. Isso foi possível por causa da articulação de organizações da sociedade, engajadas no movimento “A Renda Básica que Queremos”. Foram essas organizações que trouxeram a proposta do Auxílio para o Congresso.
Auxílio Brasil
A transferência do Auxílio Emergencial teve efeitos importantes – não que ela tenha chegado a todos que precisavam, por causa dos problemas gerados pelo mecanismo do aplicativo, especialmente no interior do país, onde há dificuldades de acesso à internet. A partir de setembro do ano passado, o Auxílio foi reduzido à metade do valor e se viu o impacto, sobretudo, em relação à questão da fome porque aqueles que o estavam recebendo encontraram muita dificuldade de garantir elementos essenciais, como habitação e alimentação. E passaram a viver em uma situação ainda pior quando o valor do benefício foi reduzido ou suspenso, entre janeiro e o final de março deste ano. Provavelmente, um dos fatores que levou ao agravamento dos efeitos da Covid-19 foi esse, porque as pessoas tiveram que sair para a rua para buscar formas de sobrevivência. Depois se instituiu um Auxílio mais reduzido, de 150 a 375 reais, em período de inflação de alimentos muito grave.
Renda Básica
Mas nós nunca abandonamos a ideia de uma renda básica universal permanente. Imaginamos que isso seria um instrumento de garantia de algum grau de cidadania. Sempre levantamos a questão de que o trabalhador que tivesse que negociar um emprego e tivesse a garantia de uma renda básica não precisaria se submeter a qualquer proposta que fosse apresentada. Isso teria um efeito positivo em relação ao mercado de trabalho e renda. Ao lado disso, foi bastante comprovado que, sobretudo em 2020, o que segurou o PIB, para que não tivesse uma queda muito maior, foram as transferências de 600 e 1200 reais, ou seja, a renda básica tem um impacto econômico também. Nós acreditávamos que o aperfeiçoamento do Bolsa Família e o fortalecimento na transferência de renda estaria dando um passo a mais para a construção da renda básica no Brasil. Mas agora estamos preocupados com a instituição do programa Auxílio Brasil, o qual vemos, no mínimo, como muito confuso.
IHU – Por quais vias seria possível discutir o financiamento e financiar uma renda básica permanente como gasto do Tesouro com valores como, por exemplo, o transferido para mães solo nos primeiros meses do Auxílio Emergencial?
Francisco Menezes – O teto de gastos é uma impossibilidade [para isso] e é inconstitucional porque contraria uma série de direitos que estão garantidos pela Constituição. A instituição do teto de gastos foi um erro profundo e não resolveu o problema fiscal; ele deveria ser revogado. Estamos assistindo a tentativas de burlar as regras que eles [parlamentares] mesmos criaram ao instituir o teto de gastos para poder, entre outras coisas, garantir o valor do benefício prometido para o Auxílio Brasil. Vemos um estado de nervosismo em função da barreira que criaram.
Financiamento da renda básica
É importante dizer que existem formas de levantar recursos, como através da proposta de reforma tributária que está no Congresso, chamada Reforma Tributária Justa e Solidária, que tem uma preocupação com a taxação mínima dos super ricos. Avalia-se que a partir disso se levantariam recursos suficientes para garantir uma renda básica. A questão passa pela incapacidade política de o país compreender a necessidade de tornar de fato a tributação progressiva. Ao lado disso, a necessidade de revisão das diversas isenções, muitas delas absurdas, haja vista que no campo da segurança alimentar e nutricional há políticas de isenção para agrotóxicos e bebidas açucaradas. Elas precisavam ser urgentemente revistas.
IHU – A MP 1601 também cria o Programa Alimenta Brasil em substituição ao PAA. O que muda e qual o impacto dessa alteração nos programas, tendo em visto o atual cenário de retorno da forme no país?
Sílvio Porto – Antes de responder, vou fazer alguns comentários complementares aos do Francisco.
É crucial o teto de gastos ser debatido porque tem teto de gastos para a saúde e a educação, mas não para a remuneração de juros e pagamento da dívida pública. Por esses dois parâmetros, vemos como é absurda a estruturação do teto de gastos. Se a remuneração dos bancos e do sistema financeiro também fizesse parte disso, possivelmente não teríamos cerca de 0,5 trilhão de reais utilizados, todos os anos, para o pagamento de juros. Esse é um elemento fundamental no debate.
Outra questão diz respeito às denúncias feitas pela Auditoria Cidadã da Dívida acerca das ilegalidades feitas não por este governo, mas que têm sido feitas por muitos governos, de modo estrutural há anos, como a remuneração de recursos de compulsórios que ficam nos bancos. Os bancos, sem fazer absolutamente nada, são remunerados por esses recursos que não são deles, mas da população. São elementos dessa natureza, como questões de renúncia fiscal, que precisam ser alterados. Podemos mencionar a Lei Kandir, que é um absurdo. Com a Lei Kandir estamos transferindo empregos para fora, sobretudo com a exportação de soja em grão, porque 80% da soja brasileira é exportada em grão, especialmente para a China, para ser esmagada lá. Independentemente de ser grão, óleo ou farelo, a taxação é zero e o que se comercializa no mercado interno é penalizado porque sobre os produtos incidem ICMS, PIS e COFINS. Essa matriz tributária vinculada ao modelo agroexportador precisa ser revista. Recentemente, em um debate, o representante do Ministério da Fazenda disse que o pagamento do tributo é feito no final, na ponta, porque do contrário haveria uma bitributação. Mas a questão é que o país fica com todo o prejuízo ambiental e social porque destina 40 milhões de hectares para soja, cerca de 220 para a pastagem e boa parte disso vai para o exterior.
Outro elemento apontado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – Dieese é que, em função da elevação do preço dos alimentos, o valor de 400 reais – se for aprovado – corresponde a 60% de uma cesta básica que é insuficiente no sentido de pensar a alimentação saudável, porque é uma cesta carregada de carboidratos, gorduras e açúcar, que é a base dos produtos ultraprocessados e tem sido bastante questionada. Ou seja, ela é muito pobre em termos nutricionais: praticamente não tem produtos frescos, frutas, verduras e legumes. Em São Paulo, por exemplo, a cesta básica está custando em torno de 670 reais. Com 400 reais seria possível comprar 60% dela. Um salário mínimo decente para cobrir toda as despesas de uma família de quatro pessoas com dignidade do ponto de vista da justiça social, teria que ser 5,5 vezes o valor do atual, ou seja, teria que ser um salário de aproximadamente 5.500 reais. Esses dados mostram o quanto é dramático o que estamos vivendo.
PAA
Há duas questões envolvidas na MP 1601. De um lado, o PAA está sendo substituído pelo Alimenta Brasil, que não sabemos o que será porque foi feito um “Control + C, Control + V” da estrutura de gestão e das modalidades do PAA, deixando de fora a modalidade de sementes crioulas – e eu não vejo isso como um problema porque particularmente acho que a modalidade de sementes crioulas do PAA, da forma como foi constituída a partir de 2015, é muito mais problemática do que a forma como era operacionalizada antes. Mas sem entrar em detalhes, a temática sementes crioulas ficou secundarizada no debate do novo programa, o que é um problema a mais no sentido das incertezas.
Não sabemos quanto de recursos haverá para o Alimenta Brasil e como o programa será regulamentado, porque estão dispostas as nomenclaturas, mas não a arquitetura dessa institucionalidade. Não sabemos como serão realizadas as compras com doações simultâneas e aí poderá, de fato, ter mudanças muito significativas. O programa foi muito mal pensado, malfeito e não há nenhuma justificativa plausível para ter sido criado em detrimento do PAA.
O PAA precisava ser revisto, sim, porque depois da criminalização que ele sofreu a partir de 2013, teve muitos retrocessos no sentido normativo. Ao invés de avançar na perspectiva de fomento e valorização de processos de controle social, foi implementada uma série de exigências documentais e outras que pioraram o funcionamento do programa. Nesse sentido, a revisão do PAA passa por retornar às diretrizes do programa elaboradas em 2003 e aperfeiçoadas até 2005. Nessa época, o PAA funcionou muito bem – até 2013.
Penduricalhos
Outra questão que está em debate – e isso está vinculado ao Auxílio Brasil – são os penduricalhos prometidos nos auxílios. Isso gera um enorme problema de gestão, uma dispersão de recursos e de atuação do Estado, de públicos, de formas de ingresso ao programa. Nesse caso, especificamente, terá o Auxílio Produtivo Urbano e o Auxílio Produtivo Rural, que também têm muitos problemas. Dentre eles, a exigência de que, para ter acesso ao Auxílio Produtivo Urbano, a pessoa tenha que ter um emprego formal. É exatamente o inverso do que se precisa: conceder o auxílio para quem precisa, quem está na informalidade.
Também há uma contradição entre os dois auxílios: o rural tem um tempo de duração de 36 meses, e há uma exigência de pagamento dos alimentos, ou seja, pagar parte daquilo que recebe, mas não se sabe que percentual será pago, se é 1%, 10% ou a totalidade. Isso também é um problema porque se a atuação do programa visa a inclusão produtiva, ou seja, trazer pessoas que possam ser incluídas econômica e socialmente, como é possível pensar que as pessoas terão que pagar por esses produtos, mesmo que na forma de alimentos? São questões dessa natureza que mostram o quanto a proposta foi mal elaborada. Além disso, não houve diálogo, discussão nem consulta às pessoas e à própria referência institucional que existia.
Por fim, no ano passado, a mobilização de mais de 800 organizações conseguiu, via Congresso Nacional, um recurso adicional de 500 milhões de reais para o PAA, dos quais 220 foram operados pela Companhia Nacional de Abastecimento – Conab ainda no ano passado. Os outros 280 foram repassados para estados e municípios e parte desses recursos ainda estão sendo executados até hoje. E pior: no desenho atual, o Alimenta Brasil claramente esvazia a Conab enquanto executora do programa e joga isso para os estados e municípios na perspectiva de fortalecer a relação desses entes federativos. Mas, dos entes executores, o município é o que tem a menor capacidade. É um equívoco atrás do outro.
A proposta não passa de uma ação eleitoreira. Da forma como foi pensada, dificilmente terá um resultado sobre as compras públicas até o ano eleitoral porque ainda precisa ser regulamentada. Imaginar que municípios terão capacidade institucional de resposta até 2022 é um problema; 2022 já terá passado, assim como as eleições e quem vai ficar no prejuízo será a população tanto da agricultura familiar camponesa quanto a urbana, que nem poderão comercializar seus alimentos nem receberão os alimentos.
IHU – O senhor participou da criação e implementação do PAA. Qual foi a importância social desse programa e sua especificidade para enfrentar o problema da fome e da insegurança alimentar?
Sílvio Porto – Tanto o PAA quanto o Bolsa Família são frutos de uma marca, de uma decisão política que se chamava Fome Zero. Essa iniciativa maior que orientava as decisões do governo nesse sentido deu peso aos debates sobre o tema. A modalidade que iniciamos em 2003, deixou de existir em 2004 por um equívoco e disputas políticas internas no governo. O programa não morreu, ao contrário, se fortaleceu, mas isso porque o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Consea e os movimentos sociais atuaram conjuntamente e foram fundamentais para que tivesse um ritmo de debate político e de decisão no sentido de alocação de recursos e de avançar institucionalmente com essa pauta para que fosse possível responder à realidade das famílias que estavam no campo da agricultura familiar camponesa.
Avaliação do PAA
É verdade que não avançamos muito com relação às comunidades tradicionais. Se avançou pouco em relação às comunidades indígenas no sentido de trazê-las para a institucionalidade da comercialização de alimentos, mas diria que só o PAA não resolve isso. Ele é um elemento importante, mas precisa estar casado com outras iniciativas que não vieram juntas. Mas se olharmos do ponto de vista de referencial e de histórico, no ano de maior execução do programa, chegou-se a 140 mil famílias agricultoras fornecendo alimentos, com mais de 380 itens de alimentos. Isso mostra a riqueza e diversidade que estavam contempladas a partir das diferenças regionais e da valorização dos hábitos alimentares regionais, da produção regional que vai de marisqueira a quilombola, da reforma agrária a mulheres organizadas.
Entre 2003 e 2010, foram realizados três grandes seminários de avaliação do PAA em parceria com o Consea, nos quais se reuniam organizações de produção, organizações consumidoras, representantes dos governos estaduais e municipais e órgãos do governo federal, para debater politicamente o PAA, apontar críticas, ou seja, fazer uma construção coletiva do programa, considerando as diferenças regionais. Penso que foi isso que deu legitimidade ao programa a ponto de ele ser tão valorizado nacional e internacionalmente.
Por isso mesmo, ele não tem pai ou mãe. Ele é múltiplo, feito a muitas mãos, com participação social, fruto da construção que o Consea foi capaz de estabelecer e dar ritmo. O Consea teve um peso fundamental não só no PAA, mas no Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE, no Programa Cisternas e em muitas pautas que se complementam e foram fruto desse espaço de debate político.
Francisco Menezes – O que o Consea conseguiu realizar foi fruto desse trabalho coletivo, inclusive de saber trabalhar opiniões diversas em uma perspectiva de construção. O fato de o Consea ser um conselho que tinha acesso direto ao presidente da República lhe dava um peso político considerável.
IHU – Quais são os pontos positivos e negativos dos novos programas em comparação aos anteriores?
Francisco Menezes – O Auxílio Brasil gera uma enorme insegurança porque a MP não se referiu à fonte de recursos e isso ainda não está resolvido com a questão dos precatórios. Foram ensaiadas várias possibilidades, mas não se tem coragem de enfrentar de cara a questão do teto de gastos. Existem outros fatores complicados, como o aspecto do aplicativo, que mencionei anteriormente. Estamos no primeiro mês em que o Bolsa Família foi extinto, e assistimos a manifestações de inúmeras famílias que tinham acesso a ele e não estão entendendo por que não foram incluídas no novo programa. Vi uma contabilização de 300 mil casos. Claro que isso é pequeno se pensarmos em termos de 14 milhões de famílias. Mas essa é uma questão que está sendo registrada. Já era esperado esse processo muito turvo.
Outro aspecto é o conjunto disforme de bônus e benefícios que serão distribuídos, os quais, de alguma maneira, geram um sentimento de concorrência entre aqueles que serão beneficiados, o que é muito perverso. Fiz uma pesquisa sobre o programa Bolsa Família entre 2007 e 2008 e verifiquei que é importante as titulares das famílias que recebem o benefício entenderem o programa. Ele não pode gerar dúvidas e desconfianças. Havia dificuldades de entendimento acerca do benefício, com questões como: por que meu vizinho recebe mais do que eu recebo? O que se propõe agora é de uma dificuldade enorme de compreensão. Quem lê atentamente a MP vai perceber que inclusive existem vários aspectos dúbios na proposta.
Problemas
Poderia citar vários exemplos de problemas, mas gostaria de mencionar mais dois. Um deles é a questão de embutir crédito consignado na proposta. Isso é até criminoso e sem dúvida alguma atende aos interesses do sistema financeiro e joga para adiante um problema de possível endividamento das famílias, o que já é grave entre as mais vulneráveis. Outra questão que saltou aos olhos e já tinha aparecido na discussão do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb é a disposição do governo de favorecer empresas privadas de educação. A abertura que a proposta dá em um determinado aspecto do programa para creches privadas é um enorme problema. Não se fala em um programa de oferta de creche pública, mas se dá abertura para creches privadas.
Então, é difícil encontrar os pontos positivos. Se o benefício chegar ao valor de 400 reais, isso não vai ser suficiente para atender as necessidades de famílias que estão muito vulneráveis. Defendíamos que a Câmara dos Deputados rejeitasse a MP, mas sabíamos que isso seria difícil. Houve algumas emendas, sobretudo apresentadas pelo relator, que tornaram o programa permanente – e esse era outro problema, porque o programa teria vigência somente até o final de 2022. Além disso, flexibilizou-se o acesso ao benefício que inicialmente se dava exclusivamente através do aplicativo, via internet, mas de qualquer maneira a proposta é confusa e irá gerar enorme insegurança no seu prosseguimento.
Sílvio Porto – O governo é tão equivocado nas suas iniciativas que ele não precisaria desconstruir os programas para se fortalecer politicamente. Ao contrário, poderia, utilizando a institucionalidade que existe, aprimorá-los e alocar, sobretudo, recursos, porque é isso que dá a marca de um governo. Até porque pelo tempo de governo que lhe resta, é muito pouco para fazer tudo isso. A MP é típica de quem desconhece a máquina pública e os processos de gestão para fazer uma avaliação e tomar uma decisão dessa natureza, e olha mais o impacto do anúncio do que está preocupado com o resultado para a sociedade. Nesse sentido, o governo poderia ser aplaudido e ganhar politicamente se fizesse a aposta em alocar recursos e fortalecer a Conab muito mais do que estados e municípios. Mas mesmo que fosse pelo caminho de fortalecimento dos estados e municípios, não era preciso esvaziar a Conab, que é quem tem o melhor know-how e a melhor capacidade.
O problema é que no caso da Conab, não é só o PAA e a agricultura familiar que perderam importância. Antes, havia sido criada uma superintendência para gerir esse programa e a articulação com todas as regionais em nível nacional. Hoje, isso deixou de existir e a Conab é uma mera gerência. Esse quadro está casado com o esvaziamento da política dos estoques públicos, da utilização da política de garantia de preços mínimos como instrumento de apoio aos produtos básicos e intervenção no mercado no sentido do abastecimento. É a demonstração mais clara de que o governo está atuando como um mero espectador.
Em relação à educação, por exemplo, fortalece-se cada vez mais o setor privado e toda a revisão nacional da base curricular demonstra isso nas diversas armadilhas e mudanças que estão sendo feitas de modo silencioso. Diria que na educação, guardadas as devidas proporções, está acontecendo algo muito semelhante ao que aconteceu na área ambiental: há uma enorme desconstrução de procedimentos e normativas que mexem naquilo que foi proposto na Constituição de 88 com relação ao que foi pensado no sentido de instituir uma educação ampla, universalizante, de qualidade para toda a população brasileira. Podem até existir as escolas privadas, mas o privado precisa ser uma opção para quem quer utilizar esse serviço; o ideal é que persistíssemos no caminho de que essa não fosse uma necessidade, ou seja, de que as escolas públicas fossem tão boas quanto são as universidades públicas federais, que pudéssemos prescindir das escolas privadas e mesmo assim teríamos qualidade na educação.
O mesmo deveria ocorrer na saúde e na política alimentar. Ao invés de estarmos discutindo e debatendo uma política alimentar da qual o PAA fosse parte integrante, estamos debatendo a desconstrução do pouco que existiu. O próprio Consea foi uma das primeiras instituições que desapareceu no âmbito deste governo, mas é hilário ver que no âmbito do programa Alimenta Brasil, o conselho aparece como a instância de controle social. É uma demonstração clara de que quem fez aquilo desconhece até o que o próprio governo vem fazendo.
IHU – Qual é a expectativa com a tramitação da MP no Senado?
Francisco Menezes – Temos a expectativa de que a MP será votada nesta semana, porque o prazo é curto. O destino da MP precisa ser decidido até 07/12, então, é provável que ela seja colocada em pauta e votada ainda nesta semana. Tenho a expectativa de que será aprovada no Senado. Já está se montando todo o quadro e, ao mesmo tempo, existe uma chantagem sobre os parlamentares: se não votarem, se voltará à situação anterior e os 400 reais prometidos não serão mais destinados. O presidente do Senado também dá indícios de que vai colocar a MP em pauta e ela será aprovada sem alterações ou com emendas passageiras.
Sílvio Porto – Aposto na mesma linha. Fica claro que talvez o relator vá fazer de tudo para que não tenha nenhuma emenda a fim de evitar que o texto volte para a Câmara. Talvez, o problema maior no governo não seja em relação a essa MP neste momento, mas sim em relação à questão dos precatórios. Essas questões estão casadas, porque é dos precatórios que sairão os recursos. Mas, possivelmente, a PEC dos precatórios não será aprovada, conforme assisti ao senador [Paulo] Paim comentando hoje [29/11/2021]. Ele disse, com convicção – e confio muito no tino político dele neste tipo de debate – que como está, a PEC não será aprovada. Isso abre uma questão sobre como será resolvida a fonte de recursos para a MP 1061. Ela possivelmente será aprovada sem problemas porque o governo tem unidade para isso, exatamente porque está jogando no colo da oposição qualquer problema relativo à não aprovação da MP para assegurar os 400 reais.
Francisco Menezes – Concordo plenamente. O nó é a questão dos precatórios.
IHU – Quais são os desafios e como enfrentá-los a partir de políticas públicas diante dos dados apresentados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional – Rede Penssan de que há 19 milhões de famintos no Brasil e 55% dos brasileiros estão em situação de insegurança alimentar?
Francisco Menezes – Particularmente, estou muito preocupado porque devemos partir do princípio de que a fome envolve uma questão ética. Na proporção em que ela já está, sequer dá para esperar que as eleições de 2022 resolvam o problema. Por outro lado, não temos nenhuma perspectiva de que o atual governo enfrente a questão da fome de forma tal a poder deter esse crescimento e atender tantas milhões de pessoas que estão nessa situação. Tudo que discutimos aqui mostra isso.
Nesse sentido, tenho que afirmar que sou pessimista em relação ao enfrentamento efetivo nos próximos meses. A sociedade se mobiliza, mas já há indícios de que as doações também estão sendo reduzidas na medida em que a capacidade de enfrentamento da sociedade é insuficiente dadas as proporções da fome. Em segundo lugar, aqueles que fazem doações sentem o impacto da crise econômica, já que está havendo um empobrecimento geral do país. Por isso, a capacidade de enfrentamento é menor.
A questão da inflação dos alimentos é igualmente preocupante e tem um impacto muito grande na questão da fome. O grau de destruição é de tal ordem – destruição institucional e do que havia se construído com muito esforço e lutas – que também nos preocupa a capacidade e o tempo de reconstrução do que teremos pela frente.
Medidas urgentes
Respondendo rapidamente: se fosse colocar medidas urgentes, dada a emergência da questão da fome, uma política de transferência de renda efetiva seria chave. Também é preciso de políticas próprias voltadas para populações específicas, seja em situação de rua, sejam comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, que vivem acentuadamente esse problema. Por fim, é preciso pensar em políticas estruturantes que precisarão ser retomadas.
A reforma agrária também precisa ser implementada, assim como uma política ambiental e o enfrentamento das mudanças climáticas, porque elas têm grande impacto (sobretudo para aqueles que produzem. Ou seja, há muito o que fazer diante do aumento da fome.
Sílvio Porto – Primeiro, é importante garantir acesso ao alimento, que passa pela transferência de uma renda digna que seja capaz de assegurar efetivamente que as pessoas possam ter uma alimentação mínima para garantir sua necessidade nutricional básica, sobretudo não comprometendo o futuro das crianças. Esse é um problema que estamos vivendo hoje. Já sabemos deste dado de 19 milhões, mas certamente o número de pessoas nessa situação é maior. Alguns levantamentos indicam que uma a cada três crianças estão com problemas de desnutrição. Isso é gravíssimo no sentido de comprometer as capacidades motoras e intelectuais das crianças que passam essas privações. Esse é um elemento sério e dramático que precisa ser enfrentado.
Resolvida a questão emergencial no sentido de garantir que as pessoas saiam da fila do osso e do lixo e possam realmente comer, temos que pensar em que tipo de comida está sendo ingerida. É preciso repensar nosso padrão de produção e consumo, a reforma agrária e o enfoque agroexportador. Temos que enfrentar as corporações e as grandes empresas que estão ocupando boa parte do território agropecuário do país e, junto com isso, a própria concentração dos supermercados. Esse é outro tema fundamental que precisa ser atacado.
É preciso pegar a referência do Guia Alimentar para a População Brasileira e fazer dele a bíblia que seguiremos para pensar a alimentação saudável, as estruturas de produção vinculadas à base ecológica e fazer uma mudança brutal em termos de revisão da estrutura agrária, resolvendo a questão agrária e a concentração, garantindo que os povos tradicionais e indígenas possam ter efetivamente suas terras e territórios reconhecidos, e que a agricultura familiar e camponesa, sobretudo a juventude rural, possa ter a perspectiva de seguir na atividade de fazer uma agricultura com gente, uma agricultura biodiversa, que seja promotora de saúde e de uma alimentação diversificada e de qualidade. A agroecologia é a base para isso.
IHU – Qual é a expectativa para a disputa eleitoral no próximo ano diante do atual cenário social, considerando que, no momento, não há mobilização social por causa da inflação, do desemprego, do agravamento da fome e da perda de renda?
Sílvio Porto – Sabemos como as eleições começam, mas não sabemos como terminam. Uma coisa é o desejo de mudança e a outra é a efetivação dessa mudança. Nesse momento, falo a partir do que as pesquisas mostram, com um cenário relativamente consolidado. Mas diria que é muito cedo e não sabemos qual será a consequência do efeito Moro na entrada desse jogo. Possivelmente, tanto os “Faria Limers” quanto o sistema financeiro e a mídia vão apostar nesse caminho como uma renovação do velho. Vi uma charge no final de semana em que Moro seria a mutação de Bolsonaro. Isso dá uma síntese do que essa candidatura representa.
Por outro lado, há o que ouvimos diariamente: a terceira via. Eles estão desesperados querendo criar a terceira via porque sabem que o candidato atual deles tem grande chance de não ter êxito no próximo processo eleitoral e, evidentemente, farão de tudo para que o campo de centro-esquerda não seja vencedor desse processo. Nesse campo é difícil que Lula não esteja no segundo turno. Só uma hecatombe poderá tirar essa possibilidade. Mas o que teremos no segundo turno é uma nova eleição, porque sempre é algo complexo e difícil.
Letargia
Não consigo entender como nós, servidores públicos, estamos reagindo de forma tão pífia em relação à PEC 32, que propõe uma mudança brutal na forma de estruturar as carreiras do serviço público. Ela praticamente destruirá o serviço público no país se for aprovada. Mas os servidores têm todas as condições de ir para a rua e reagir, e não o estão fazendo, mesmo tendo clareza de que a PEC poderá colocar em xeque até a sua própria continuidade enquanto servidores públicos. É impressionante. Estamos vivendo um processo de letargia que é difícil de explicar.
Mas quero acreditar que, à medida que entrarmos no ano eleitoral e no processo eleitoral, teremos uma reação e, sem sombra de dúvidas, as forças populares – assim como foram fundamentais em 2014 e mobilizaram muito em 2018 – estarão aí para que talvez nem tenhamos segundo turno e tenhamos uma vitória que seja um marco e dê capacidade para quem vencer a eleição ter um empoderamento político de colocar esse país, pelo menos, na perspectiva de uma condição civilizatória, porque estamos muito longe disso.
Francisco Menezes – Começaria dizendo que a situação em que o país se encontra é catástrófica e ela não foi um acidente de percurso. Houve um processo que levou a ela: o enfraquecimento das instituições democráticas, a manipulação destas instituições, um reino de desinformação, mentiras e informações falsas. Tudo isso levou a esse quadro em que hoje nos encontramos. Ao pensar nas eleições de 2022, a democracia se coloca como uma primeira questão. Queremos que esse processo eleitoral não repita o que foi em 2018, ou seja, que atinja os padrões mínimos de democracia que um processo eleitoral exige.
Nesse sentido, o cenário que Sílvio descreveu se desenha como possibilidade, mas penso que no segundo turno terá que se construir uma frente de defesa da democracia. Dado o grau de destruição em que estamos colocados, será preciso construir o que chamaríamos de um programa mínimo de compromissos para a população, que terá que ser contemplado no próximo governo. Alguns dos pontos que comentamos, o da fome e de uma revisão progressiva desse modelo danoso, precisam ser colocados em discussão.
Temos um grande desafio. Não vejo um cenário fácil e não acredito que o atual presidente seja favas contadas. Ele tem a caneta e não existe nenhum prurido nas ações desse grupo que está no poder. As elites brasileiras mostraram que se dirigem – com a força que têm, porque elas têm dinheiro – para quem atender seus interesses e não aos interesses do país. O processo eleitoral será central no ano de 2022, mas será de muitos riscos e exigirá acertos nas decisões de quem está olhando para um projeto de país.
Fonte: IHU
Texto: Patricia Fachin
Data original da publicação: 03/12/2021