Recuperar a característica de progressividade do Imposto de Renda é, nos dias hoje, a pedra angular para a justiça tributária e a redução das desigualdades sociais.
Márcio Pochmann, Dão Real Pereira dos Santos, Marcelo Lettieri e Paulo Gil Hölck Introíni
Fonte: IJF, com GGN
Data original da publicação: 21/06/2022
Um conhecido jornal da grande mídia corporativa publicou, no dia 31 de maio último, um artigo de Everardo Maciel, Jorge Rachid e Marcos Cintra, em defesa da manutenção do atual regime de desoneração dos lucros e dividendos distribuídos aos sócios e acionistas. A tributação dos dividendos, segundo os autores, traz riscos à arrecadação do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas, em desfavor, inclusive, dos Estados e Municípios, pode descapitalizar empresas e afastar investimentos, além de dificultar a fiscalização, aumentar os litígios tributários e reduzir a segurança jurídica dos contribuintes. Em suma, o artigo busca passar a ideia de que a tributação de dividendos seria uma insanidade fiscal e levaria o País à ruína econômica.
Fossem reais os riscos alardeados, a primeira questão a levantar é se os demais países, principalmente os de capitalismo avançado, não compreenderam os perigos que estão correndo há muitas décadas, pois, ressalvadas raríssimas exceções, tributam tanto os lucros das empresas, por meio da taxação corporativa, quanto os rendimentos recebidos pelas pessoas físicas dos sócios e acionistas.
Parece-nos, com a devida vênia, que os argumentos dos ex-secretários da Receita Federal foram apresentados com evidente exagero, quando não, com o sinal trocado. Na realidade, os mencionados mecanismos de desoneração de lucros e dividendos recebidos pelos sócios e acionistas, estes, sim: i) promovem uma renúncia fiscal gigantesca, não computada nos relatórios oficiais, com reflexos negativos nas transferências aos Estados e Municípios; ii) são o exemplo mais bem-acabado de indução à distribuição de resultados e, portanto, são o avesso dos incentivos à capitalização; e iii) favorecem o entesouramento, alimentam o rentismo financeiro, concentram renda e enfraquecem o mercado interno de consumo.
É verdadeiro que a tributação dos mais ricos provoca aumento dos litígios tributários, mas, qual é a solução para este problema, deixar de tributá-los ou fortalecer o aparelho fiscal como faz o governo Biden, nos Estados Unidos? E, que tal pensarmos em rever a estrutura do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), de composição paritária de julgadores da Fazenda Pública e daqueles indicados por Confederações empresariais? A presença de representantes das partes interessadas no julgamento dos litígios tributários não encontra paralelo nos órgãos congêneres de revisão administrativa mundo afora.
Distintas visões sobre o papel do Estado conduzem a concepções opostas acerca das funções atribuídas à tributação. Para os que defendem as políticas de redução das desigualdades como prioridade do desenvolvimento nacional, a questão central do debate fiscal será o seu aspecto distributivo e, em relação ao sistema tributário, identificar sobre quem recai a carga impositiva e em que proporção. Os adeptos das teses de não interferência do Estado na economia consideram prioritária a garantia da rentabilidade do capital financeiro e a condição de a tributação não afetar as posições relativas dos agentes econômicos, considerados os momentos anterior e posterior à incidência dos impostos. A negligência em relação à desigualdade é decorrência direta desta concepção.
A questão tributária não é, e nunca foi, estritamente técnica. A experiência histórica demonstra que os sistemas tributários nacionais sintetizam as opções políticas dos governos e da sociedade. A experiência brasileira confirma a regra. Enquanto aguardamos o momento solene da reforma tributária, a maioria de nós não se deu conta de esta ter ocorrido de forma “silenciosa”, ou melhor, sorrateira, em meados dos anos 1990.
Entre as recomendações dos organismos internacionais às reformas fiscais na periferia estava a moderação da carga marginal e a ampliação da base tributária. No plano prático, significaram a redução de impostos sobre os mais ricos e o aumento do número de pessoas tributadas no andar de baixo do edifício social.
O primeiro passo da reforma tributária brasileira foi a criação de dois mecanismos de desoneração tributária da renda dos mais ricos: a isenção dos lucros e dividendos recebidos pelos sócios e acionistas e a possibilidade de dedução dos chamados “juros sobre o capital próprio” (arts. 10 e 9º da Lei 9.249/95).
Os passos seguintes ampliaram a base de contribuintes, para baixo. De 1996 a 2001, a tabela de incidência do IRPF não foi atualizada e o número de declarantes do imposto quase duplicou devido à redução substancial do limite de isenção em termos reais. Após a crise fiscal de 1998, houve elevação das alíquotas e/ou ampliação da base de PIS, COFINS e CPMF, com repercussão na carga fiscal sobre o consumo de mercadorias e serviços, penalizando os consumidores de baixa e média renda.
Um dos efeitos negativos – e pouco comentados – da eliminação da tributação dos lucros recebidos pelos sócios das empresas está no impulso à criação de pessoas jurídicas por profissionais liberais e trabalhadores mais bem remunerados para redução do imposto, ou seja, a intensificação do processo conhecido como “pejotização”.
É preciso reformar o sistema, tendo como ponto de partida o Imposto de Renda da Pessoa Física, mas, pelo caminho inverso ao da reforma tributária neoliberal.
O IRPF brasileiro, arrecada pouco, aproximadamente 3% do PIB, em contraste com a média dos países da OCDE, de 8%. Sua curva de incidência denota progressividade fraca até a faixa de rendimentos entre 30 e 40 salários-mínimos mensais e, nas faixas superiores, inflexiona de modo regressivo, em virtude da predominância dos rendimentos isentos (lucros e dividendos recebidos pelos sócios e acionistas). A alíquota efetiva média do IR entre os que recebem acima de 320 SM mensais é pouco superior a 5%, já considerada a tributação exclusiva na fonte sobre as aplicações financeiras e ganhos de capital. Desconsiderada esta última, cai para 2,13%.
O que justifica que um assalariado pague até 27,5% de IR pela aplicação da tabela progressiva de incidência enquanto um sócio, um acionista ou um profissional liberal esteja isento? Como vemos, os princípios constitucionais da isonomia, da não discriminação da tributação entre pessoas em situação equivalente e da capacidade contributiva têm sido continuamente violados pela prática de desoneração das rendas do capital.
Simulações do Instituto Justiça Fiscal apontam que medidas de recuperação da progressividade efetiva do IRPF, pela tributação de rendimentos do trabalho e do capital na tabela progressiva e restruturação da tabela progressiva, com aumento do limite de isenção e criação de alíquotas mais elevadas nas faixas superiores, têm o potencial de arrecadar até 160 bilhões adicionais. Produziriam, também, importante efeito redistributivo, à medida que beneficiariam aproximadamente 34% dos atuais declarantes, manteriam relativa neutralidade de incidência para os que se encontram nas faixas de renda intermediárias e aumentariam a tributação do IR de apenas 3,6% dos contribuintes (0,52% da população brasileira).
Evidentemente, se pretendemos sair da contramão das boas práticas internacionais e aprumar o Brasil para a retomada do desenvolvimento econômico e social inclusivo, voltar a tributar lucros e dividendos recebidos pelos sócios e acionistas é somente um reinício. A reforma silenciosa esvaziou a progressividade da tributação da renda, então, será necessário seguir o caminho inverso, mas, não somente, Será preciso avançar rumo à concretização do sistema tributário previsto na Constituição de 1988 e compatível com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
Um ponto, em particular, merece atenção nesse debate. Há os que defendem a tributação dos dividendos, mas, propõem uma contrapartida por meio da redução da incidência sobre os lucros empresariais, alardeando, sem respaldo na realidade, que os tributos sobre os lucros no Brasil são muito elevados.
Ora, a maior parte das pessoas jurídicas não tributa o lucro, apenas frações da receita bruta. Em 2019, por exemplo, somente 3,05% das pessoas jurídicas registradas no país eram tributadas pela modalidade do Lucro Real, regime cuja melhor denominação seria a de lucro fiscal, pois permite ajustes no lucro contábil; as demais – com exceção dos Microempreendedores Individuais (MEI), imunes ou inativas – são tributadas pelo Lucro Presumido (16,68%) ou pelo Simples (80,26%). Os ajustes permitidos no regime de Lucro Real e os regimes de lucro presumido e Simples reduzem substancialmente as bases de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. Mesmo as instituições financeiras, submetidas ao regime de lucro real e cujas alíquotas legais do IRPJ e da CSLL somam 45%, estiveram sujeitas a uma alíquota efetiva de apenas 14,3% entre 2010 e 2019.
Sem dúvida, também há necessidade de correções e aperfeiçoamentos na tributação da renda das empresas, mas em outra direção, reduzindo ou eliminando os mecanismos de tributação de um lucro fictício, como ocorre atualmente, com o objetivo de aproximar a base de cálculo dos mencionados tributos ao lucro líquido efetivamente obtido.
Recuperar a característica de progressividade do Imposto de Renda é, nos dias hoje, a pedra angular para a justiça tributária e a redução das desigualdades sociais.
Márcio Pochmann é economista e professor da Ufabc e Unicamp.
Dão Real Pereira dos Santos é vice-presidente do Instituto Justiça Fiscal.
Marcelo Lettieri é diretor do Instituto Justiça Fiscal.
Paulo Gil Hölck Introíni é diretor do Instituto Justiça Fiscal.