Em março de 1997, Simone André Diniz, então com 19 anos, respondeu a um anúncio de jornal sobre vaga para alguém de “preferência” branca. Ouviu que ela não se encaixava no perfil. Simone é negra. O caso empacou no Judiciário, mas chegou à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que em novembro de 2006 condenou o Estado brasileiro.
Nesta quinta-feira (17), Simone deu nome a seminário promovido pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) e outras entidades, recebeu pedido de desculpas em nome do Estado e contou sua história. Moradora de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, é dona de oficina mecânica, com o marido, e tem duas filhas, de 17 e 13 anos. “São lindas, minhas pretinhas, são lindas!”, exclamou. Com fala simples e alegre, contou sua história e deu vários exemplos e situações cotidianas de racismo no Brasil.
“Quantas mulheres negras sofrem o que eu sofri”, disse Simone, ao mesmo tempo em que agradecia pela homenagem e pelo fato de autoridades ali estarem “sentindo” a sua própria dor. Ela contou que ensinou as filhas a não se “vitimizarem”, mas também não se sentirem diminuídas por causa da cor. Chamou a si mesma de “Simone neguinha, cabelo pixaim, e me amo”. E pediu que as pessoas se ajudem, sem se omitir. “Ajude o seu irmão. Você está vendo em algum lugar, filma, não faça vista grossa. Nós podemos. Nós temos valor.”
“Ainda há juízes no Brasil”
Para o presidente do TST, Lelio Bentes Corrêa, o país é resultado de “um longo passado escravocrata, que muitas vezes se perpetua”. Como outros no evento, ele fez uma espécie de mea culpa do Judiciário, que na época negou direito a Simone. Na ação movida devido ao anúncio, o Ministério Público optou pelo arquivamento e a Justiça aceitou. “Ainda há juízes e juízas, servidores e servidoras, conscientes da nossa história social. Ainda há juízes no Brasil.”
Integrante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Jane Granzoto considerou o caso de Simone “exemplo contundente do racismo institucional que infelizmente persiste na sociedade brasileira”. Ela também fez referência ao “duplo” racismo sofrido: quando ouviu do empregador que “não atendia aos requisitos” e quanto teve o processo arquivado. “A situação de desigualdade racial não se modificou. E o Estado ainda não se aparelhou de forma eficiente para combater as consequências do racismo institucional”, afirmou a conselheira.
Caminho da mudança
Juiz auxiliar da presidência do CNJ, da Unidade de Monitoramento e Fiscalização das Decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Edinaldo César Satos Junior propôs que todos os presentes fizessem o “teste do pescoço”, para ver quantos negros havia no auditório. Ele considera o caso Simone “um dos mais paradigmáticos” do Sistema Interamericano – e acredita que, apesar da dificuldades, pode ser “um passo significativo no caminho da mudança”.
Sinvaldo Firmo, do Instituto do Negro Padre Batista, foi quem recebeu chamada de SimoneAndré Diniz quando ela, ainda atônita, tinha ligado para o responsável pelo anúncio de emprego. Ele citou também o caso de Maria da Penha, que originou uma lei sobre a violência doméstica contra a mulher. “Esse racismo é sistêmico, alimenta e realimenta. O Estado brasileiro cuidou muito bem da Maria da Penha, e deve cuidar. A sociedade brasileira abraçou Maria da Penha, que virou até uma lei. E Simone André Diniz? Olha como o racismo ‘invisibiliza’ as mulheres pretas neste país.”
Portas fechadas
O depoimento mais emocionado foi de Karen de Souza, juíza auxiliar da presidência do CNJ, do Observatório de Direitos Humanos do órgão. “O racismo está arraigado na sociedade brasileira. É institucional, sistêmico. Eu não queria estar aqui. Eu não queria que (Simone) tivesse sofrido o que sofreu naqueles dias, que tivesse as portas fechadas por causa da cor da sua pele, que o Poder Judiciário tivesse te negado direitos”, disse Karen. “Gostaria de te pedir desculpas em nome do Estado brasileiro.” Trocaram um longo abraço.
Simone lembrou ainda que cursava enfermagem quando procurou aquele emprego. “Meu pai pagou com muito esforço.” O pai era mecânico – e gostava de desfilar na Nenê de Vila Matilde, tradicional escola de samba paulistana. A mãe, que ela perdeu aos 13 anos, era empregada doméstica. “Era muito humilde, todo mundo pisava na minha mãe.” Algo que Simone nunca permitiu que fizessem. Trabalhou, casou aos 27 anos, com seu único namorado, e ensinou as filhas a andar “pelo caminho certo”.
Fonte: Rede Brasil Atual
Texto: Vitor Nuzzi
Data original da publicação: 17/11/2019