Economia global e o trabalho imaterial

Nos dias de hoje, sob o impacto da economia digital, o trabalho se encontra reconfigurado profundamente, distanciando-se da perspectiva anterior estabelecida pela antiga sociedade urbana e industrial.

Marcio Pochmann

Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 06/10/2021

A reestruturação da economia global foi impulsionada pelo horizonte alargado da proletarização de crescentes parcelas populacionais compreendidas desde os antigos camponeses às donas de casa. Na maior parte, convertidas em novas ocupações de trabalho não contratual, permitindo se contrapor a tendência de queda na taxa media de lucro explicitada já no último quarto do século passado.

Contrapondo-se à realidade precarizadora das condições e relações do trabalho de produção de mercadorias, a economia digital, por ser geradora do labor imaterial, passou a ser apresentada com o potencial de autonomia, criatividade e liberdade. Rapidamente, contudo, a materialidade das experiências de emprego do trabalho imaterial desfez a ilusão da perspectiva de cooperação e emancipação social.

Nos dias de hoje, sob o impacto da economia digital, o trabalho se encontra reconfigurado profundamente, distanciando-se da perspectiva anterior estabelecida pela antiga sociedade urbana e industrial. Sinteticamente, a reestruturação da economia mundial tem sido acompanhada muito mais pela revolução tecnológica informacional do que a industrial, cujo resultado do esforço físico e mental resulta em mercadorias físicas, porém constituídas a partir dos códigos, dados, símbolos, imagens, ideias próprias de conhecimentos e subjetividades no interior das relações sociais.

O processo de informatização do trabalho a torná-lo cada vez mais imaterial, permite e constituição de novo projeto político em bases teóricas distintas do até a pouca dominante presença do já esvaziado proletariado industrial. Diferentemente disso, o trabalho imaterial compartilha possibilidades no âmbito da esfera da produção do comum, obscurecendo a separação tradicional entre o labor de produção de mercadorias e da reprodução social.

A financeirização, nesse sentido, sitiou, em grande medida, grande parcela do capital no circuito da acumulação fictícia. A classe trabalhadora, por sua vez, alastrou-se convergindo a produção e a reprodução social no âmbito no âmbito do trabalho em casa, não mais exclusivamente em locais externos a habitação.

Nesse sentido, o contraste direto com a polarização do trabalho intrínseca da sociedade industrial entre produção e reprodução, negócio e ócio, assalariado e não assalariado, formal e não formal, urbano e rural, manual e intelectual, entre outros. Como se sabe, o desenvolvimento capitalista direcionado pela industrialização concedeu lugar central à urbanização das populações, superando o primitivo agrarismo, cujo trabalho humano era dividido em duas esferas distintas.

De um lado, o trabalho na produção das mercadorias vinculado ao exercício das atividades laborais externas à residência, cujos locais próprios (fábrica, escritório, banco e outros) demandavam transporte que viabilizasse o deslocamento. De outro, o trabalho na reprodução social, produtor da força de trabalho, convergiu fundamentalmente com afazeres domésticos e cuidados humanos.

Ao contrário do trabalho de produção de mercadorias, o trabalho de reprodução social não era remunerado e portador de identidade profissional e representação sindical, bem como distante de qualquer pertencimento à cidadania dos direitos sociais e trabalhistas. Por conta disso, a divisão sexual do trabalho explicitou possibilidades e oportunidades muito maiores aos homens do que as mulheres.

Consagrou, assim, as desigualdades antigas, herdadas do passado agrarista, e as novas, protagonizadas por escassa presença feminina no mercado de trabalho. E, quando incorporada, as mulheres estiveram submetidas aos postos de trabalho de produção com baixa remuneração e proteção social, tendo que combinar, ainda, o próprio trabalho de reprodução social, com dupla jornada laboral,

Na antiga e longeva sociedade agrária, quando a maior parte da população residia justamente onde trabalhava no campo (fazenda, sítio e outros), a separação entre trabalho de produção e reprodução não se estabelecia separadamente. Todo o esforço humano em torno do exercício do trabalho de produção coincidia com a busca pela sobrevivência e garantia da própria amplitude da reprodução social.

Com a expansão mais recente dos serviços associados à informatização e ao trabalho imaterial, a maioria dos empregos abertos demandam maior capacidade de tratar com pessoas do que coisas, correspondentes as habilidades interpessoais, superiores às habilidades mecânicas. Ao mesmo tempo, a mercantilização da esfera do trabalho de reprodução guiado pela ausência de remuneração.

Isso porque, a informatização laboral movida pelos modelos de negócios assentados na mercantilização da esfera da reprodução social terminou por colapsar as antigas distinções entre o trabalho da produção de mercadorias e o trabalho nos afazeres domésticos e cuidados. A agenda que se abre, questiona o sentido da acumulação de capital apropriadora do trabalho reprodutivo não remunerado, constitutivo do processo de desvalorização das condições de relações do trabalho de produção de mercadorias.

Marcio Pochmann é professor da UFABC e do Cesit/Unicamp.

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