Nessa viagem cinematográfica, Le Capital au XXIe siècle, de Pemberton e Piketty, aponta o o perigo da expansão do capitalismo neste século.
Léa Maria Aarão Reis
Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 11/10/2021
Quem já leu O capital no século XXI não vai se decepcionar. E quem conhece o best seller do economista Thomas Piketty, um dos mais influentes entre as grandes massas de leitores e de cidadãos(as) comuns, provavelmente terá curiosidade de saber mais sobre o pensamento do autor. Basicamente, ele alerta: ” O acúmulo de riqueza pode levar uma sociedade a se tornar mais desenvolvida; mas as grandes desigualdades econômicas podem levar a revoluções”.
Riqueza, poder (político/econômico) e progresso social que proporcione a mobilidade de classes são referências intrinsecamente relacionadas entre si na obra de Piketty. Ele vem a ser o coautor do roteiro desse documentário do premiado diretor neozelandês Justin Pemberton e do produtor também neozelandês Matthew Metcalfe que adaptaram o seu livro homônimo lançado pela Editora francesa Éditions du Seuil em 2013. O filme está disponível no catálogo do NOW.
Mas uma vez, o diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais na França e professor da Escola de Economia de Paris acerta entregando ao espectador o sumo do conteúdo do seu trabalho seminal com entrevistas ágeis e bem conduzidas com colegas de profissão e sempre com observações em linguagem acessível, com clips da cultura pop e sequências de filmes como Os miseráveis, Orgulho e preconceito, Wall Street, Elysium, Utu, a revolta dos maoris e Vinhas da ira. Assim, ele proporciona uma nova dimensão ao seu trabalho.
”O capital se transformou nessa coisa que pode se expandir perpetuamente, e o discurso do capitalismo acabou indo longe demais apontando a volta à desigualdade gritante dos séculos 18 e 19 quando os privilégios vinham de berço e de heranças sem qualquer regulamentação”, ele diz.
Em outro momento: ”O nacionalismo é sempre utilizado pelas elites para que elas esqueçam a luta de classes focalizando seu discurso na identidade nacional”. No Brasil atual estamos vivendo a plenitude dessa receita fascista.
O Nobel de Economia Joseph Stiglitz também participa do doc lembrando: ”A promessa da torta maior a ser repartida com menos divisões, não se cumpriu. O dinheiro da produção não escoou e vemos a desigualdade e o imobilismo social. A classe média continua encolhendo e corre o risco de retornar à classe média pobre de um século atrás”. Novamente, um retrato do Brasil de hoje.
O livro de sete anos atrás (e agora o filme) segue atual ao avaliar, mais uma vez, a auto proteção de seus interesses por parte de políticos vindos da elite assim como o discurso neofascista repaginado, no nosso caso, por um líder populista caricaturando o fürer que decretava não admitir divisões nem luta de classes, mas sim um”povo único”. Pretendia-se – e repete-se a pretensão – seduzir as gerações mais jovens com o canto de sereia do tipo ‘vocês, moços, devem ser esse povo.’ É um dos alertas de Piketty.
Nessa viagem cinematográfica, Le Capital au XXIe siècle, de Pemberton e Piketty, onde é apontado o perigo da expansão do capitalismo neste século, alguns dos momentos mais centrais são estes:
* No pós-guerra: se não criassem ou aprimorassem as condições gerais de vida (serviços públicos) as elites perceberam que perderiam a batalha das idéias.
* O nacionalismo é sempre usado pelas elites para a população esquecer a luta de classes e se manter focalizada na identidadenacional.
* Em 1914, em Paris, 1% da população possuía 70% de todos os ativos.
* Piketty: ”O controle do capital precisa ser efetuado para ir além do capitalismo.”
* Outro comentário: “A Revolução Francesa foi cínica ou era um conto de fadas”?
* E também: ”A Revolução Industrial esteve ligada intimamente à violência e às forças armadas. Atualmente, vemos milícias armadas contratadas pelos especuladores”.
* Hoje, ”os monopólios criados pelas empresas de tecnologia geram, mais uma vez, uma pequena classe de pessoas muito ricas”.
* Comentando o alerta publicado no Financial Times: ”A desigualdade passou a ser uma preocupação extrema; e é uma possibilidade dela desencadear revoluções”.
*Um dos grandes desafios do século XXI: a classe média continuará encolhendo com o risco de voltar à classe média pobre que tínhamos há um século?
*Como última conclusão explosiva: ”No regime capitalista ocidental um voto pode custar um dólar. No capitalismo de estado chinês, uma pessoa significa um voto.”
Sugestão ao espectador: veja O capital no século XXI. Ficará ainda mais inquieto do que já está.
As sociedades retratadas na obra de Balzac e Jane Austen, dos tempos em que 1% da população inglesa detinha 70 % da propriedade de terras, são comentadas com observações do próprio autor. Ele interfere na narrativa em diversos momentos, com comentários certeiros. O resultado é um filme ágil, uma viagem que contrapõe riqueza e poder de um lado e extrema desigualdade e/ou progresso social do outro.
Léa Maria Aarão Reis é jornalista e crítica de cinema.