Leonardo Sakamoto
Fonte: UOL
Data original da publicação: 09/08/2019
Jair Bolsonaro defendeu a correção do piso de isenção do Imposto de Renda para cinco salários mínimos, ou seja, R$ 4.990,00. Reclama que o valor atual está defasado por não ter acompanhado a inflação. Concordo com o presidente.
Também considero uma medida acertada a proposta de fim ou a redução de deduções, que acabam privilegiando (com exceções, claro) as classes alta e média alta, que vem sendo analisada pelo governo.
Contudo, após corrigido os patamares de cada alíquota existente, o país deveria criar outras, maiores, de 30%, 35% e 40%, para quem ganha muito. E não reduzir as existentes, como deve propor o governo. Paulo Guedes, durante a campanha eleitoral, chegou a defender baixar as alíquotas de 22,5% e 27,5% para 20%, beneficiando quem ganha mais.
Vale lembrar que uma alíquota de 20% pesa muito mais sobre quem ganha dez salários mínimos do que sobre quem recebe 20. A matemática não faz sentido? Talvez seja porque o seu mês cabe no seu salário. O sistema como um todo tira mais do que deveria dos pobres (um camelô ou uma trabalhadora empregada doméstica sem carteira deixam uma boa parte de sua pouca renda em impostos ao adquirir alimentos e roupas e ao usar transporte público) e da classe média para não amolar os ricos.
A Reforma Tributária poderia implementar um dos mais poderosos instrumentos de distribuição de renda: o retorno da taxação de dividendos (o lucro distribuído aos acionistas de empresas).
Removida durante o governo Fernando Henrique, o retorno da taxação de 15% não resolverá o problema fiscal. Mas seria um sinal de que o Estado decidiu reduzir a subserviência aos mais ricos (que, novamente, pagam proporcionalmente menos imposto que a classe média) e decidiu equilibrar um pouquinho mais o jogo. Entre os países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o clubão dos Estados mais ricos, apenas o Brasil e a gloriosa Estônia não taxam dividendos.
Isso poderia vir junto com a redução do imposto de renda cobrado das empresas, abrindo espaço para o aumento de investimentos. A equipe de Henrique Meirelles, quando ministro da Fazenda, chegou a discutir uma formulação nesse sentido. Mas a ideia acabou espancada pela parte mais rica da opinião pública e morreu no nascedouro.
Em números: para que os descendentes de um casal de brasileiros que está entre no 10% mais pobre atinjam o rendimento médio do país seriam necessárias nove gerações – segundo a OCDE. E se um casal tem duas vezes mais renda que outro casal, os filhos do mais rico vão ganhar 70% mais que os filhos do mais pobre. Em países como a Finlândia, essa proporção é de 20%.
O 1% do Brasil com os maiores rendimentos (média mensal de R$ 27.213) recebia 36,1 vezes mais do que a metade da população com os rendimentos mais baixos (média mensal de R$ 754) em 2017. Ao mesmo tempo, os 10% da população com os maiores rendimentos detinha 43,3% do total de rendimentos do país. Enquanto isso, a parcela dos 10% com os menores rendimentos representava 0,7%. Os dados pertencem à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), relativos ao ano 2017.
Pobreza é ruim, mas a desigualdade é pior por razões que extrapolam a realidade material. A desigualdade dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e as outras pessoas como iguais e merecedoras da mesma consideração. Leva à percepção de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres. Ou seja, para usar a polícia e a política a fim de proteger os privilégios do primeiro grupo, usando violência contra o segundo, se necessário for. Com o tempo, a desigualdade leva à descrença nas instituições. O que ajuda a explicar o momento em que vivemos hoje.
Contudo, o presidente já deixou claro que a intenção não é essa.
“Eu acho que no Brasil você não pode falar em mais ricos, está todo mundo sufocado. Se você aumentar a carga tributária para os mais ricos, como a França fez no governo anterior, o capital foi para a Rússia. O capital vai fugir daqui, a carga tributária é enorme. Quase tudo é progressivo no Brasil”, declarou Jair Bolsonaro, em entrevista ao SBT, em outubro do ano passado.
Quem sufocou na crise foram os mais pobres, a classe média, os pequenos e médios empresários. Bolsonaro estava explicando que era contra a criação de lei para taxar as grandes fortunas. Acabou criticando também a progressividade da cobrança de impostos, ou seja, quem tem mais paga mais.
Somos uma bomba-relógio de desigualdade. Que só não estourou ainda por que a maioria levanta de madrugada todos os dias para trabalhar, chega cansada em casa após estudar à noite e, aos finais de semana, faz bico vendendo churrasquinho ou erguendo parede.
Essa pauta é a diferença entre um projeto de poder e um projeto de país. Difícil fazê-la avançar, considerando que – se você olhar bem de perto – perceberá que está escrito “o meu primeiro” naquela faixa branca que rasga o círculo azul da bandeira nacional. Pelo menos é o que diz quem faz as leis, quem as executa e quem julga seu cumprimento.
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative – Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de “Pequenos Contos Para Começar o Dia” (2012), “O que Aprendi Sendo Xingado na Internet” (2016), entre outros.