E se a “lista suja” do trabalho escravo não existisse…

Maurício Hashizume

Fonte: Repórter Brasil
Data original da publicação: 03/01/2014

No ano de 2013, o cadastro de empregadores flagrados em fiscalizações de combate ao trabalho escravo no Brasil completou 10 anos. A “lista suja” do trabalho escravo, como ficou conhecida, foi criada pelo governo federal por meio de uma portaria do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em novembro de 2003. Desde então, vem sendo atualizada (e ampliada) regularmente pelo Executivo – apesar das inúmeras tentativas de deslegitimá-la.

Sim, é exatamente o que você está pensando. “Lá vem mais um daqueles textos banais construídos a partir de efemérides”. Certo, a questão dos “aniversários redondos” talvez esteja realmente muito batida, mas o que se pretende aqui é estimular reflexões a partir de uma data marcante. Afinal, muitas águas rolaram durante a última década.

O exercício proposto a partir dos dez primeiros anos do cadastro é bastante simples: e se a “lista suja” do trabalho escravo não existisse? Seguem abaixo cinco conquistas interconectadas que, em grande medida, se tornaram possíveis a partir da adoção, sustentação e divulgação desse instrumento sustentado pelo poder público.

Realidade

A realidade da exploração do trabalho escravo no Brasil seria, no mínimo, mais “turva”. A ausência de um painel oficial, aberto e acessível de pessoas físicas e jurídicas responsabilizadas administrativamente em decorrência de inspeções que encontraram trabalhadores e trabalhadoras em condições análogas à escravidão restringiria o acesso a informações de interesse público, que provavelmente ficariam “escondidas” nas malhas da burocracia interna governamental. Com menos transparência, o conhecimento da população sobre a situação do problema seria menor.

Relações de trabalho

As relações de trabalho no campo e na cidade, especialmente em casos envolvendo grupos em situação de vulnerabilidade (migrantes, estrangeiros, etc.) seriam ainda um pouco mais favorável ao empregador. Sem a possibilidade de sofrer qualquer tipo de exposição pública pela exploração de mão de obra escrava, os empregadores teriam uma preocupação a menos. Em variadas circunstâncias, o risco de ter o nome incluído no temido cadastro foi citado por fazendeiros e empresários de distintos portes e setores, por exemplo, como um aspecto importante a ser evitado.

Pacto Nacional

O Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, criado em 2005, dificilmente existiria se não houvesse a “lista suja” do trabalho escravo. Levada a cabo por uma interlocução entre entidades civis que atuam na área e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a iniciativa busca comprometer empresas e associações no sentido de cortar relações econômicas com agentes envolvidos em flagrantes e de promover ações internas e externas de incentivo ao combate da violação de direitos fundamentais. Inúmeros casos envolvendo companhias privadas ganharam projeção maior por conta do Pacto Nacional.

Incômodo

O incômodo das entidades patronais – com destaque para organizações ruralistas – com a articulação interinstitucional dedicada ao enfrentamento do trabalho escravo seria provavelmente reduzido. Considerada como uma das relações institucionais hoje existentes que mais trazem constrangimento ao patronato nacional, a “lista suja” está no cerne das reclamações da larga e poderosa bancada ruralista instalada no Congresso Nacional. Daí a recorrente reação da parte dos grandes produtores rurais: tanto impedindo punições mais duras a quem comete o crime como tentando fragilizar o “conceito” de escravidão.

Reconhecimento

O reconhecimento do conjunto de medidas voltadas ao combate ao trabalho escravo no Brasil não teria a projeção internacional que atingiu na atualidade. O cadastro é uma peça-chave no sistema montado pelo país, que tem na estruturação dos Grupos Móveis de Fiscalização, no funcionamento da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e na definição dos dois Planos Nacionais de Erradicação do Trabalho Escravo (2003 e 2008) alguns de seus outros principais pilares. Nos últimos anos, o “pacote” brasileiro, a despeito de suas lacunas e limitações, vem merecendo destaque em relatórios globais.

Seriam possíveis muitas outras “suposições” relacionadas à inexistência do cadastro mantido por uma nova portaria (n° 2/2011), agora interministerial, assinada pelo MTE e também pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR). Grande parte dos conflitos referentes à vergonhosa prática do trabalho escravo no Brasil, envolvendo a iniciativa privada e órgãos públicos, guarda alguma relação com a referida (e tão atacada) tabela.

E você, imagina como seria se a “lista suja” do trabalho escravo não existisse?

Maurício Hashizume é jornalista. Mestre em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).

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