E por aqui, seguimos na contramão

Fotografia: Luiz Gonzaga de Souza/Pixabay

Chegamos em 2021, com exemplos de sobra, mundo a fora, de que precisamos reconhecer a importância do Estado como garantidor de proteção social.

Dão Real Pereira dos Santos

Fonte: DDF
Data original da publicação: 13/05/2021

A dor ensina a gemer, já diziam os antigos. Nada mais verdadeiro e atual do que essa pérola da sabedoria popular. Centenas de estudos, artigos e teses, por mais bem formulados que sejam, não conseguem demonstrar a importância e a essencialidade do Estado tão bem, nem com tanta eficácia, quanto a pandemia tem conseguido fazer. Especialistas, políticos e governantes dos principais países do mundo dobram-se à obviedade de reconhecer que é no Estado, e não no mercado, que devem ser colocadas as esperanças de enfrentamento desta crise e, também, de construção de uma economia mais justa e de uma sociedade menos vulnerável. Até mesmo o Fundo Monetário Internacional (FMI) já vem considerando, há algum tempo, que o investimento público é um importante indutor da demanda agregada e tem um papel relevante  na irradiação de expectativas favoráveis à formação de capital fixo no setor privado.

Mas essa inflexão do pensamento geral, agora em favor do Estado, decorre, em grande medida, da constatação inevitável de que o mercado não é capaz de evitar crises, tampouco de apresentar soluções para elas, nem mesmo para aquelas que ele mesmo produz, haja vista a injeção de mais de um trilhão de dólares de recursos públicos no setor financeiro realizada pelos países centrais durantes as crises de 2008 a 2011. Além disso, não há mais argumentos contra a proteção social do Estado que se sustentem diante das necessidades de ampliação  de políticas públicas essenciais que a crise vem produzindo.

No Brasil, no entanto, apesar da velocidade tecnológica com que as informações circulam pelo mundo, parece que essa nova onda de valorização do Estado ainda não conseguiu encontrar seu espaço nos debates políticos. As propostas de esvaziamento das políticas públicas e da capacidade do Estado continuam andando a todo o vapor, como se nada estivesse acontecendo. A pandemia, agravada pela crise econômica, e esta, agravada pela pandemia, parecem estar sendo usadas apenas como oportunidades a serem aproveitadas e não como problemas a serem resolvidos. As mesmas medidas que ajudaram a agravar a crise continuam sendo implementadas. Quatrocentas mil mortes pela Covid-19 parece não ter sido ainda dor suficiente para nos ensinar a importância do Estado e das políticas públicas.

Para tentar compreender um pouco mais esta insistência no esvaziamento do Estado, contra todas as tendências e recomendações de especialistas, é importante fazermos uma breve digressão na nossa história recente. Desde a promulgação da Constituição Federal, em 1988, a ideia de um Estado social, com capacidade para orientar a atividade econômica, já estava contemplada. A configuração do modelo de Estado, desenhada pelos nossos constituintes, naquele momento, logo após o encerramento de um período de mais de 20 anos de uma ditadura militar, marcada pela truculência do Estado e pela tortura, foi pensada de forma a garantir os direitos individuais e sociais, tendo por objetivos explícitos, a construção de uma sociedade justa, livre e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades (Artigo 3º da CF/1988). O mesmo dispositivo atribuiu ao Estado o objetivo de promover também o desenvolvimento nacional, colocando, assim, em perfeita sintonia o desenvolvimento econômico, a redução das desigualdades e a garantia dos direitos.

Mas sabemos também que a Constituição representou o pacto social possível num determinado momento histórico, mas que ela não mudou o Estado no dia da sua promulgação, apenas deu início ao processo. As disputas não se encerraram naquele momento e, nos seus 32 anos de existência, vem sendo atacada ininterruptamente por aqueles setores que nunca se conformaram com a ideia de ampliação e universalização dos direitos sociais, que estavam sendo projetadas e que produziriam, inevitavelmente, efeitos distributivos e redistributivos relevantes. Parece que é esse o ponto onde se encontra o maior foco das resistências. Distribuir e redistribuir não são palavras que costumam frequentar os dicionários das nossas classes dominantes.

Além disso, as dificuldades de fazer andar o projeto de construção do Estado social foram especialmente ampliadas pelo próprio momento histórico em que ele foi instituído, pois coincidiu com o momento, no final dos anos 80 e início dos 90, em que se consolidava a hegemonia em torno das concepções neoliberais de Estado mundo afora e, por aqui, não foi diferente.

Este processo histórico fica mais bem visualizado quando observamos o que aconteceu com o sistema tributário, por exemplo. Sabe-se que a tributação  é um dos mais importantes instrumentos de que dispõe o Estado para implementar seus objetivos institucionais e, não foi por acaso, que foi justamente ela que mais sofreu interferências das classes dominantes, seja para aliviar o peso do financiamento do Estado das suas costas, seja mesmo para inviabilizar as fontes de recursos para as políticas públicas distributivas.

A primeira motivação vem produzindo seus efeitos desde o início da vigência da nova Carta, sem dúvida. Os constituintes previram, e é emblemático que até hoje não tenhamos conseguido implementar, o Imposto Sobre Grandes Fortunas. O Imposto de Renda das pessoas físicas, já em 1989, teve sua alíquota máxima reduzida de 45% para 25% e a quantidade de alíquotas, de sete para apenas duas. Os benefícios para os mais ricos foram ampliados ainda mais, em 1995, quando a Lei 9.249 isentou do Imposto de Renda os lucros e dividendos distribuídos, inclusive quando remetidos para o exterior, e passou a tratar como despesa dedutível do lucro das empresas os rendimentos pagos a título de juros sobre o capital próprio. Nem mesmo os países orientadores das políticas neoliberais foram tão longe na desoneração das classes mais ricas.

A subutilização do potencial de tributação nos países subdesenvolvidos já era objeto de estudo do economista Nicholas Kaldor na segunda metade do século passado, quando afirmava que a não tributação das parcelas mais ricas da sociedade refletia uma insuficiência da legislação e da administração tributária, mas que essas “insuficiências legislativas e administrativas não podiam, por sua vez, ser atribuídas senão parcialmente à falta de conhecimento, compreensão ou competência, pois resultavam também da resistência de poderosos grupos de pressão que obstruem o caminhos de uma reforma tributária efetiva” (NOGUEIRA BATISTA JUNIOR – 2000) [i] .

A segunda motivação, de tentar inviabilizar a construção do Estado social, no entanto, não foi plenamente alcançada, pelo menos até 2016, pois, de 1990 até 2015, os gastos primários (todos os gastos públicos menos os gastos financeiros) cresceram de forma efetiva, saindo de um patamar de aproximadamente 12% do PIB para quase 20% do PIB, o que implicou, sem dúvida, a necessidade de ampliação da carga tributária, neste período, para poder suportar a necessidade de crescimento dos gastos imposta pela Constituição. Estamos longe ainda do patamar de gastos primários dos países que serviram de referência para os nossos constituintes, quase todos praticando gastos sociais médios na faixa de 30% do PIB.

Importante perceber que esse movimento de rejeição ao Estado social veio acompanhado de uma narrativa que se desenvolveu em todo este período de que a Carga Tributária era muito alta – alguns chegavam a afirmar até que era a maior do mundo, que o Estado era grande demais e insuportável. Foram criadas campanhas milionárias para produzir no imaginário popular, uma rejeição generalizada aos tributos e a qualquer medida que visasse a ampliar as políticas públicas via aumento de tributação. E sabemos muito bem que depreciar o Estado e o setor público é a forma mais direta de valorizar o mercado e o setor privado.

As dificuldades impostas à tributação dos mais ricos fez com que o crescimento dos gastos tivesse que ser financiado preponderantemente por tributos indiretos e regressivos, que incidem sobre o consumo e oneram muito mais os mais pobres do que os mais ricos, proporcionalmente às suas rendas. Portanto, o alívio tributário concedido aos mais ricos e a sua manutenção ao longo do tempo implicaram  no deslocamento de uma parte significativa da carga tributária para as costas dos mais pobres. Além de representar uma injustiça social, por impor sacrifícios muito maiores a quem tem menos condições, esse fenômeno é absolutamente disfuncional, do ponto de vista econômico, pois retira recursos importantes justamente das classes sociais com maior propensão ao consumo.

Outro mecanismo importante adotado neste período, pós Constituição, que ajudou a deslocar os tributos para o andar de baixo, foi o congelamento da tabela do Imposto de Renda das pessoas físicas. Em 1995, quem ganhava até 8 salários-mínimos mensais era isento deste imposto. Hoje esse limite de isenção é inferior a  2 salários-mínimos mensais. Estudo do IJF[ii] demonstra que, entre 2007 e 2018, os contribuintes com renda mensal de até 5 salários-mínimos tiveram aumento de suas alíquotas efetivas[iii] do IRPF, de 0,07% para 0,82%. Neste mesmo período, os contribuintes com rendas mensais superiores a 320 salários-mínimos tiveram redução, de 2,59% para apenas 1,9%. Observem que os níveis de alíquotas efetivas destes dois extremos de renda estão muito próximos. Isso ocorre porque a maior parte da renda de quem recebe rendas muito altas é isenta de tributos (lucros e dividendos distribuídos). As maiores alíquotas efetivas não estão nestas faixas de renda, mas sim, na faixa entre 30 e 80 salários-mínimos por mês, mas que também teve redução no período, de 11,76% para 9,36%. Ou seja, os mais pobres pagam cada vez mais e os mais ricos, cada vez menos.

Mas a interferência das classes dominantes nos tributos não se deu apenas no sentido de aliviar o peso sobre o andar de cima, mas, também, em relação, por exemplo, à possibilidade de utilização dos tributos como instrumento para promoção do desenvolvimento econômico. Um exemplo disso foi a famosa Lei Kandir[iv], que promoveu a desoneração do ICMS[v] sobre as exportações de produtos primários e semielaborados. Os constituintes, afinados com uma visão desenvolvimentista, trataram de garantir a não incidência deste tributo sobre a exportação somente de produtos industrializados, e mantiveram nas mãos do Estado a possibilidade de tributar a exportação dos produtos primários e semielaborados. Aliás, tributar as exportações de matérias primas constitui uma das medidas comumente adotadas pelos países hoje desenvolvidos, quando pretenderam se desenvolver.

Segundo Ha-Joon Chang (2002)[vi], as nações, hoje desenvolvidas, quando em fase de desenvolvimento, adotavam tratamentos tributários aduaneiros distintos do que passaram a adotar após superarem esta fase. Salvo raras exceções, praticamente todos os países desenvolvidos, antes de atingirem esta condição, adotavam tarifas aduaneiras médias muito elevadas para importação de produtos concorrentes e para exportação de produtos primários, ao contrário do que tem sido difundido pela versão liberal de que esses países ter-se-iam desenvolvido praticando políticas livre cambistas

A Lei Kandir surgiu como medida conjuntural necessária para combater a crise na balança comercial que havia naquele momento. No entanto, superados todos os fatores que a justificavam, pois já não temos problemas com a balança comercial há bastante tempo, essa desoneração acabou se consolidando na Emenda Constitucional 42, de 2003, apesar de representar medida que retira do Estado o poder de ajustar a tributação dos produtos primários como forma de estimular a atividade industrial. Também não é demais considerar que, apesar da Emenda Constitucional 42, continuamos ainda com a possibilidade de tributar as exportações aplicando o Imposto de Exportação, mas nem mesmo esse instrumento tem sido utilizado para essa finalidade.

Especialmente a partir destas medidas, o Brasil passou a ser um país predominantemente exportador de commodities. Em 2016, na nossa balança comercial com a China, por exemplo, oitenta por cento das nossas exportações era composta por minério de ferro, produtos agrícolas e petróleo, e as nossas importações eram compostas principalmente por circuitos impressos e peças de telefonia e partes de aparelhos receptores e transmissores (CAMERA, MARQUES, PEREIRA, LEAL – 2018)[vii]. Obviamente que o estímulo à exportação de produtos primários, com baixo valor agregado, beneficia a industrialização no exterior em detrimento da produção e do emprego nacionais.

A lógica que vem orientando esses movimentos de resistência contra os tributos está afinada com a concepção de um Estado socialmente mínimo e esta tem sido a visão predominante dos nossos atuais governantes e parlamentares. Em 2016, aqueles mesmos segmentos contrários ao Estado social, aproveitando-se da crise econômica que produziu dois anos de crescimento negativo do PIB, e de uma narrativa construída e massificada de que os gastos teriam saído do controle, conseguiram aprovar, sem grandes dificuldades, a Emenda Constitucional 95, concretizando, assim, a interrupção do processo de construção do Estado social e sua reversão, tendo em vista as projeções de que em 2036 voltaremos ao patamar de gastos na casa dos 12% do PIB[viii], que se praticava em 1990

Diversas reformas vêm sendo propostas e implementadas desde então, todas no sentido de reduzir o papel do Estado, não apenas na economia, mas também como garantidor dos direitos sociais. Não por acaso, desde 2016, o desemprego e a pobreza só aumentam, mas os valores médios das riquezas concentradas também aumentam. Estudo sobre a concentração de riquezas, publicado pelo IJF (2021)[ix], demonstra que os valores médios das riquezas dos bilionários brasileiros atingiram seus níveis mais elevados a partir de 2016. Enquanto isso, na área da saúde pública, em 2018 e 2019, houve uma perda estimada de recursos de mais de R$ 30 bilhões (FUNCIA – 2020) [x], e, na educação, essas perdas já chegam a quase R$ 100 bilhões, desde 2015[xi].

Não há dúvida, portanto, que está em curso, de forma muito acelerada a interrupção e reversão do processo de construção do Estado social brasileiro iniciado com a Constituição em 1988. Mas eis que chegamos ao momento presente e a dor começa a ser sentida de forma muito profunda e está aí para nos ensinar que sem Estado de proteção social, não há saída, nem mesmo para a economia. Ultrapassar o número de 400 mil mortes não decorre  apenas da pandemia. É fruto também de um processo de esvaziamento do Estado, de desmonte das instituições públicas e de cortes sistemáticos de recursos em áreas sensíveis como a saúde, pesquisa e educação.

Chegamos em 2021, com exemplos de sobra, mundo a fora, de que precisamos reconhecer a importância do Estado, como garantidor de proteção social. Chegamos também em 2021 com uma dor social insuportável que nos ensina, mas que também nos impõe a necessidade de aprender e de agir. É hora de retomar o processo interrompido de construção do nosso Estado social e, para isso, torna-se urgente remover as amarras que foram impostas, como, por exemplo, o teto dos gastos.  Também é hora de reconhecer o papel do Estado como orientador e regulamentador da economia, com vistas a garantir distribuição de renda e promover o desenvolvimento com inclusão social. É hora de TRIBUTAR OS SUPER-RICOS, as fortunas e os grandes lucros de alguns setores privilegiados da economia, e promover as condições necessárias para a construção de uma sociedade justa, livre e solidária. Enfim, a Constituição Federal, de 1988, apesar de todas as emendas que a têm descaracterizado, continua sendo um bom farol.

Notas

[i] NOGUEIRA BATISTA JR, Paulo (2000) – A Economia Como Ela É – Editora Boitempo.

[ii] https://ijf.org.br/concentracao-de-riquezas-no-brasil-2/

[iii] Alíquota efetiva é obtida pela divisão entre o valor do imposto pago e a totalidade do rendimento.

[iv] Lei Complementar 87, de 1996.

[v] ICMS: Artigo 155 da CF/1988  – Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: II – operações relativas á circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicações, ainda que as operações e prestações se iniciem no exterior.

[vi] CHANG, Ha-Joon (2002). Chutando a Escada. São Paulo: Unesp

[vii] CAMERA, Rafael Carlos; ALMEIDA MARQUES, Marconi Edson, PEREIRA JÚNIOR, Asty; BARBOSA LEAL, Silvia Cristina (2018) – Diagnóstico e Premissas- Retomada da Tributação Sobre Produtos Primários e Semielaborados Destinados à Exportação. ANFIP, FENAFISCO – Reforma Tributária Necessária

[viii] http://especiais.g1.globo.com/economia/2016/pec241-umtetoparaosgastospblicos/

[ix] https://ijf.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Concentracao-de-Riquezas-no-Brasil.pdf

[x] http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-10-marco-2020?lang=pt

[xi] https://diplomatique.org.br/a-educacao-perdeu-r-326-bi-para-a-ec-95-do-teto-de-gastos/

Dão Real Pereira dos Santos é Vice-presidente do Instituto Justiça Fiscal, membro do coletivo Auditores Fiscais pela Democracia. Auditor fiscal da Receita Federal e professor do curso de extensão de Educação Fiscal e Cidadania na UFRGS.

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