É justo mudar o benefício pago a idosos e deficientes pobres?

A Proposta de Emenda à Constituição número 6, enviada pelo governo ao Congresso Nacional em 20 de fevereiro para alterar regras de cálculo e acesso a aposentadorias no Brasil, mexe também com programas assistenciais.

O principal deles é o BPC (Benefício de Prestação Continuada), auxílio pago a idosos e deficientes de baixa renda no Brasil. A tentativa de alterar um benefício voltado para a parcela mais pobre da população brasileira gerou reações no Congresso Nacional.

Em resposta à oposição, o governo argumenta que a ideia não é fazer economia em cima de brasileiros miseráveis, mas sim aperfeiçoar o programa. A proposta do governo muda a idade de acesso ao BPC pelos idosos e o valor pago a eles. As mudanças acontecem em dois sentidos: ao mesmo tempo em que eleva a idade mínima para que o beneficiário tenha direito a um salário mínimo, o governo diminui a idade para se requerer um valor menor.

Para caracterizar a miserabilidade, o governo quer implantar uma nova exigência. Além da renda, a família do beneficiário não pode ter patrimônio superior a R$ 98 mil. A regra vale para idosos e deficientes.

Para quem é o BPC

Têm direito ao Benefício de Prestação Continuada idosos ou deficientes que tenham renda familiar per capita menor que 1/4 do salário mínimo, faixa considerada condição de miserabilidade. Pelo valor atual, isso significa menos de R$ 249 por mês por pessoa.

O benefício foi criado para amparar pessoas que não têm mais condições de trabalhar, mas que não têm direito à aposentadoria por não terem, ao longo da vida, conseguido contribuir o tempo necessário para a Previdência. O tempo mínimo, atualmente, é de 15 anos. A reforma eleva o período para 20 anos.

O valor do BPC, um salário mínimo, é o mesmo que é recebido por mais de 66% dos aposentados pelo INSS no Brasil, segundo dados da própria Secretaria de Previdência. No caso dos homens, a idade mínima de 65 anos é a mesma tanto para acesso ao BPC quanto para a aposentadoria por idade. Mulheres podem requerer a aposentadoria por idade aos 60 anos, o BPC aos 65.

Como vai funcionar

Como em todos os pontos da reforma, o governo faz questão de ressaltar que direito já adquirido não será revogado. Ou seja, se aprovada a reforma, quem tem entre 65 e 69 continua tendo direito ao benefício. Quem perde é quem completar 65 após a aprovação da reforma. Essas pessoas terão de esperar até os 70.

Ao mesmo tempo, assim que aprovada a reforma, pessoas em condições de miserabilidade a partir dos 60 anos já terão acesso ao valor menor. A PEC estipula R$ 400 e o governo informa que a fórmula de correção do benefício será definida por lei complementar, mas não divulga qual vai ser.

Em situação semelhante, o governo Bolsonaro decidiu que o salário mínimo não terá mais ganho real condicionado ao crescimento econômico. O Planalto não renovou a regra de aumento real do salário mínimo que vigorava desde o primeiro mandato de Dilma Rousseff. A previsão da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) é que salário mínimo em 2020 seja reajustado apenas para compensar a inflação medida pelo INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor).

Os números do BPC

Perfil dos Beneficiários

Impacto da reforma

O governo não divulgou os cálculos de economia da mudança no BPC. Durante a entrevista de apresentação da reforma, o secretário Rogério Marinho afirmou que ela não geraria economia sozinha e tinha sido proposta para tornar o sistema mais justo. A economia projetada, de R$ 182 bilhões em dez anos, só aconteceria porque a medida foi agrupada a um corte no abono salarial.

Junto com o endurecimento nas regras para o acesso à aposentadoria dos trabalhadores rurais, a mudança no BPC é um dos principais alvos da oposição no Congresso. O secretário Marinho prometeu detalhar os números de ambas na comissão especial da Câmara dos Deputados. Para chegar a essa etapa, a segunda no processo, o governo precisa primeiro conseguir a aprovação na Comissão de Constituição e Justiça, que não discute o mérito da proposta, apenas se ela é constitucional ou não.

Sem os números oficiais, a Instituição Fiscal Independente, órgão de acompanhamento das contas públicas do Senado Federal, divulgou uma projeção da economia gerada pela alteração do BPC. Em um primeiro momento, a mudança traria prejuízo e a economia em 10 anos seria de R$ 28,7 bilhões – 0,27% do total da reforma.

O que vale para o idoso

Defensores e críticos das mudanças se engajaram nas últimas semanas em um debate sobre as vantagens e desvantagens das mudanças para os beneficiários. Em um documento intitulado “Efeito das mudanças no BPC no bem-estar”, a Secretaria de Política Econômica do Ministério da Economia argumenta que a reforma trará ganhos aos idosos em condição de miserabilidade.

O raciocínio é que, como poderá receber antecipadamente o benefício, mesmo que parcial, o idoso acaba ganhando mais no fim. A conclusão é que chega a ser 152% mais vantajoso começar a receber R$ 400 aos 60 até os 70 do que receber um salário mínimo a partir de 65 anos.

Para o cálculo, os técnicos do Ministério utilizam taxas de juros para corrigir o ganho da antecipação, para trazer o valor para o presente. As taxas utilizadas são juros bancários: crédito pessoal e consignado. Na comparação, é como se o idoso estivesse pedindo esse dinheiro emprestado ao banco.

É essa metodologia que gerou reação no Dieese (Departamento Intersindical de Estudos Socioeconômicos), que refez os cálculos utilizando a mesma metodologia, mas utilizando juros da poupança ou a taxa Selic, bem mais baixas que os juros bancários. O resultado passa então a ser de uma perda entre 23% e 26% para os idosos no caso das novas regras.

Debate

Para discutir a necessidade e a qualidade das mudanças nas regras do benefício destinado à parcela mais pobre da população, o Nexo entrevistou dois especialistas: Gregório Grisa, pós-doutor em Sociologia, pesquisador de desigualdades e professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, e Leonardo Rangel, diretor de Programa da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho e pesquisador do IPEA.

A mudança no BPC é um ganho para o idoso carente?

GREGÓRIO GRISA: A proposta não é boa, nem técnica nem socialmente. Hoje o idoso pobre recebe o BPC com 65 anos ou mais. Ao analisarmos a quem o BPC atinge, veremos que os idosos não são a maioria, dos 4,7 milhões de beneficiários do BPC, 56% são portadores de deficiência e 44% são idosos acima de 65 anos.

A redução da renda dos idosos de 65 aos 70 anos, que hoje é de um salário mínimo, constrange o poder de compra da parcela mais vulnerável entre os idosos. O BPC é um benefício assistencial, assim como o Bolsa Família, com potencial multiplicador importante. Os benefícios pagos pela Previdência são distintos no que tange ao seu caráter, uns são regressivos e outros progressivos, o BPC é um gasto redistributivo, portanto mais justo. [Hiperlinks do autor]

A proposta do governo toca em dezenas de pontos trabalhistas e previdenciários, caso fosse uma prioridade garantir alguma renda aos idosos pobres de 60 aos 65 anos, seria plausível que isso viesse amarrado com alguns dos cortes propostos, como o do abono salarial, por exemplo. Só faz sentido mexer no abono salarial se o que for economizado se direcionasse ao Bolsa Família ou mesmo ao BPC antecipado.

O argumento do governo é que com a mudança se daria um incentivo para que as pessoas contribuíssem com a Previdência, do contrário seria injusto que o idoso pobre recebesse um salário mínimo aos 65 assim como os que contribuíram. Esse argumento desconsidera que a decisão de contribuir ou não é pouco discricionária por parte do indivíduo no Brasil. Não chega a 3% da arrecadação as contribuições individuais, dado de 2017. Nosso mercado de trabalho funciona com base na contribuição compulsória de trabalhadores e empregadores.

Uma pessoa na pobreza ou na extrema pobreza, na informalidade ou no desalento não necessariamente “escolhe” contribuir ou não, ela vive cada dia de uma vez, imersa em dificuldades. Importante dizer também que a expectativa de sobrevida do beneficiário do BPC idoso é menor do que a média dos demais beneficiários da Previdência social, logo, o piso de 70 anos para receber um salário mínimo é bastante alto.

LEONARDO RANGEL: A Constituição de 1988 consolidou o que a gente chama de sistema de seguridade social, com saúde, assistência e Previdência. Para acessar a Previdência é preciso contribuir e a assistência, ela é devida àquelas pessoas que não têm condição de fazer o próprio sustento nem de contribuir para a Previdência. Em 1993, quando foi estabelecido o BPC, a idade inicial era 70 anos, depois foi reduzida para 67 e posteriormente para 65 anos. A ideia é conceder um benefício para o idoso em condição de miserabilidade e para a família da pessoa deficiente.

Ao contrário do que tem se falado por aí, de que é uma redução do valor, a proposta da PEC representa um adiantamento do benefício para as pessoas a partir dos 60 anos que não tenham condições. A gente entende que, primeiro, esse adiantamento do valor vai ser positivo para as famílias que hoje já são alvo de outras políticas de assistência social como o Bolsa Família. O estudo da Secretaria de Política Econômica mostra que o adiantamento do benefício, mesmo em valor de R$ 400, significa ao longo do tempo que a pessoa vai receber mais.

O fato é que existe uma gama de pessoas em condições de miserabilidade entre 60 e 65 anos que agora vão poder receber um benefício de R$ 400. Dependendo do tamanho da família, duas pessoas ou até mais vão ter esse benefício.

A PEC tem sido analisada em pontos específicos, mas ela foi pensada de uma maneira sistêmica, é preciso analisar o BPC junto, por exemplo, com mudanças sugeridas para a Previdência rural. A principal é a idade mínima para o benefício, que no rural continua sendo de 60 anos para homens e que foi aumentado para 60 anos nas mulheres. Ou seja, quem não consegue contribuir o suficiente para acessar a aposentadoria, é uma pessoa que hoje já é pobre, ela vai ser protegida aos 60 anos. Se a gente está aumentando a idade do rural para 60 anos e exigindo contribuição de 20 anos, não faz sentido que a pessoa fique desprotegida, desamparada entre 60 e 65 anos.

E tem outro ponto. Se você adianta um salário mínimo aos 60 anos, dá um benefício no mesmo valor do piso previdenciário, não há incentivo para que a pessoa contribua até os 65 ou 62 para acessar a aposentadoria. Entendo a lógica de pensar os pontos polêmicos, mas não dá para esquecer que a PEC é uma coisa sistêmica, um ponto não faz sentido sem os outros.

A economia gerada justifica a redução do benefício para idosos entre 65 e 69 anos?

GREGÓRIO GRISA: De modo algum. De acordo com o IFI (Instituto Fiscal Independente do Senado Federal) a economia seria de R$ 28,7 bilhões em 10 anos, mas nos primeiros quatro anos se aumentaria a despesa em R$ 2,1 bilhões. O BPC representa 0,8% do PIB por ano e os idosos não constituem a maior parte do gasto. Mesmo assim, o benefício é um dos responsáveis por termos uma proporção reduzida de idosos na pobreza no Brasil, em especial quando comparamos com a proporção de crianças e jovens. Ao analisarmos os grandes números da Previdência e tendo clara a ordem de grandeza de cada um dos seus benefícios, a economia pretendida com o BPC não tem impacto fiscal relevante e se dá sobre a parcela mais vulnerável dos beneficiários. Portanto, sob o prisma da justiça social e do combate às desigualdades, a proposta da PEC 06/2019 sobre o BPC é negativa.

O BPC pode passar por ajustes como benefício assistencial, por exemplo, hoje um idoso com 65 anos e renda domiciliar per capita de 1/4 do salário mínimo ganha o benefício e passa a ter renda individual de um salário. Já um idoso de 65 anos com renda per capita de 1/3 de salário mínimo não acessa o BPC e segue vivendo com essa renda. Pensar em estratégias para equacionar tais distorções em relação ao critério de miserabilidade seria importante, todavia, elas não estão presentes na proposta do governo.

Tenho dito e escrito que os setores progressistas, aqueles não vinculados a uma visão exclusivamente fiscalista, devem comprar as boas brigas em relação à reforma da Previdência. Ser contra a mudança do BPC, o aumento do tempo de contribuição para 20 anos (em especial para as mulheres e trabalhadores rurais) e a instituição de um regime total de capitalização é importante. Esses são aspectos negativos da proposta, a mudança de cálculo dos benefícios e a transição também merecem devida atenção.

Por outro lado, a adoção da idade mínima e de alíquotas Previdenciárias progressivas são medidas importantes. Infelizmente os canais de diálogo entre governo e oposição estão bastante interditados, muito em função da polarização que acomete o cenário político brasileiro pelo menos desde 2014. Nesse contexto, a apreciação técnica e detalhada das pautas perde espaço, prosperam os chavões nos discursos.

LEONARDO RANGEL: Não tem economia. A Secretaria não divulgou a previsão e acho que a pessoa mais gabaritada para responder [sobre os motivos da não divulgação] é o próprio secretário Rogério Marinho. Eu sou técnico, sou um pesquisador do Ipea, estou aqui desde janeiro. Mas para mim não faz o menor sentido o discurso de que se está suprimindo direitos. O que está se fazendo é aumentar o público potencial do programa em mais de um milhão de pessoas.

Essa é uma das poucas mudanças na PEC que, no curto prazo, vai trazer elevação de gastos. Se fosse fazer uma mudança neutra [que adiantasse o benefício e reduzisse o valor sem gasto adicional para o governo], o valor seria inferior aos R$ 400. Mas se entende que, para um benefício que tira a família de condição de miserabilidade, R$ 400 era um valor justo.

Para não tornar muito desequilibrado o sistema, ou melhor, de forma a aperfeiçoar o sistema e sua integração com o sistema Previdenciário, quem receberia um salário mínimo aos 65 anos vai receber menos. Mas isso também tem que ser pensado em conjunto.

Mantêm-se o salário mínimo aos 70 anos porque se entende que nessa idade avançada a pessoa dificilmente vai ter qualquer outra fonte de renda, a capacidade de trabalho dela está praticamente esgotada e ela vai depender sim, e é justo que dependa, do Estado por meio da assistência social.

Esse valor vai ser reajustado. A lei complementar que depois vai regulamentar o benefício vai versar sobre a forma de reajuste desse benefício. Não está definido como vai ser, mas a gente espera que o projeto de lei e o Congresso mantenham o valor real do benefício ao longo do tempo.

Como governo, a gente vai defender integralmente a PEC/06. O Congresso é soberano, mas nossa obrigação é defender porque a gente fez essas propostas.

Fonte: Nexo
Texto: José Roberto Castro, com colaboração de Rodolfo Almeida (gráficos)
Data original da publicação: 15/04/2019

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *