O ministro Paulo Guedes, em aparição pública no fim de março, distribuiu tamanho otimismo de corar as faces do doutor Pangloss.
Carlos Henrique Horn e Virginia Rolla Donoso
Fonte: Sul21
Data original da publicação: 04/04/2021
‒ E meu caro Pangloss – disse-lhe Cândido –, quando vos enforcaram, dissecaram, açoitaram e forçaram a remar numa galera, sempre vos pareceu que este era o melhor dos mundos possíveis?
‒ Sim, mantenho minha opinião – respondeu Pangloss –, porque, enfim, sou um filósofo e não seria decente desdizer-me.
Voltaire, Cândido ou o otimismo
O ministro Paulo Guedes, em aparição pública no fim de março, distribuiu tamanho otimismo de corar as faces do doutor Pangloss. Destacou o “vigor da economia brasileira” devido à recuperação do mercado formal de trabalho “em altíssima velocidade”, o que demonstraria que o país está “no caminho certo”. E arrematou sua mensagem com a afirmação de que o Brasil seria “possivelmente o único país do mundo que atravessou a crise criando empregos no mercado formal”. Em favor do ministro, diga-se que não chegou a mencionar qualquer medicamento de efeito duvidoso e enfatizou a necessidade de vacinação em massa como condição de retorno seguro ao trabalho.
Os argumentos ministeriais assentam-se em evidência estatística, como não poderia deixar de ser. Antes de tudo, saber se o número de empregos formais aumentou ou diminuiu é uma questão de ordem empírica, que precisa de instrumento válido de mensuração para ser resolvida. Para tanto, o ministro trouxe à luz os dados compilados pela Secretaria Especial de Previdência e Trabalho (SEPT) no chamado Novo Caged. Segundo esta base estatística, que cobre admissões e desligamentos de trabalhadores num universo de cerca de 40 milhões de vínculos empregatícios, a ocupação teria se expandido em 401 mil empregos formais no mês de fevereiro. Ao examinarmos outras estatísticas do Novo Caged, verificamos, ainda, que a variação acumulada do emprego formal desde o início da pandemia foi positiva em 687 mil postos de trabalho, o que teria levado o ministro a propugnar pela exclusividade brasileira na forma de milhares de empregos criados durante a maior crise econômica a atingir o mundo desde meados do século passado.
O otimismo do ministro e os números em que se fundamenta causaram espanto. Tanto é que suscitaram reações exaltadas e acusações de que se estaria faltando com a verdade. Não qualquer verdade, mas a verdade factual, o que nos levou a também querer botar a mão nesta cumbuca. O principal motivo para estranhamento reside na percepção bem difundida de que o estado da economia brasileira – e, em particular, do mercado de trabalho – se assenta justamente no oposto, ou seja, não no vigor, mas no abatimento. Cita-se, dentre outras evidências em contrário da fala ministerial, a elevada taxa de desemprego, que segundo o IBGE estaria na casa de 14,2% da força de trabalho. Mas sua fala não aludiu ao desemprego e sim ao emprego formal, de modo que é nele que devemos colocar nossa atenção.
Além do Novo Caged, também dispomos de estatísticas confiáveis sobre o emprego formal na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) do IBGE. Com base nas categorias deste levantamento, podemos considerar como emprego formal, para os propósitos do nosso argumento, a soma do emprego no setor privado com carteira, do emprego no setor público e do emprego doméstico com carteira. Os três grupamentos totalizavam 43,1 milhões de pessoas em janeiro deste ano, o que é um contingente próximo ao do estoque de empregos registrado no Novo Caged. Ocorre que, entre março do ano passado e janeiro de 2021 – ou seja, no período da crise sanitária –, houve redução de 3,6 milhões de pessoas nesta medida do emprego formal. Vale dizer, a estimativa do IBGE está bem distante do acréscimo de 687 mil postos de trabalho formal computado pela fonte dos dados realçados pelo ministro.
O que explicaria a diferença? Leitor mais atento poderá apontar para eventuais empecilhos à comparação que apresentamos – diferenças entre registros administrativos (Caged) e inquéritos domiciliares (PNAD Contínua), diferenças no intervalo exato da comparação etc. Em defesa da legitimidade de nossa comparação, todavia, sustentamos que ambas as estatísticas pretendem ser uma medida válida do comportamento do emprego formal e que, mesmo que não se mostrem idênticas em seus resultados, há que se reconhecer como bastante estranha a magnitude da diferença apurada no contexto da crise sanitária. Pode-se conjecturar que tal diferença esteja relacionada a uma possível subnotificação dos casos de desligamento, em especial pelas milhares de empresas que fecharam suas portas durante a pandemia, sem que o Novo Caged tenha conseguido corrigir o erro. Vale lembrar que este sistema de estatísticas vem passando por uma transição metodológica de vulto, explicada com clareza em nota técnica da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho – “Substituição da captação dos dados do Caged pelo eSocial”, de 27 de maio de 2020. Nesta nota, expõem-se os detalhes técnicos e as prováveis dificuldades até que os novos procedimentos de coleta e processamento dos dados estejam bem assentados. A subnotificação dos casos de desligamento por empresas que seguem existindo é referida como uma dessas dificuldades, a qual se solucionou por meio do uso de outras fontes de informação.
Enquanto não se completa o ciclo da transição metodológica e diante das dificuldades para a coleta de dados num contexto sanitário com forte impacto sobre a economia, seria recomendável alguma parcimônia nas conclusões mais gerais a serem extraídas dos dados do Novo Caged. O que se necessita é um esclarecimento sobre os resultados tão díspares do emprego formal revelados pelas duas bases de dados. Trata-se de um assunto eminentemente técnico que exige manifestação conjunta da SEPT e do IBGE a fim de que se renove a segurança da sociedade no esforço de décadas em favor da construção de um sólido sistema de estatísticas do trabalho em nosso país. E também para sabermos se a afirmação de que o Brasil seria “possivelmente o único país do mundo que atravessou a crise criando empregos no mercado formal” tem base científica ou não passa de delírio panglossiano. Mesmo que o autor da frase não venha a se desdizer.
Carlos Henrique Horn é economista e professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É doutor em Industrial Relations pela London School of Economics and Political Science.
Virginia Rolla Donoso é economista e trabalha no site Democracia e Mundo do Trabalho. É mestre em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.