“A mobilidade social no Brasil, especialmente nos governos do PT, tem sido uma realidade. O empregado, inclusive os domésticos, foi valorizado em termos de remuneração e passou a ter acesso não apenas a bens materiais, mas também à possibilidade de colocar seus filhos em universidades, por exemplo, graças aos incentivos oficiais.”
Quem sublinha os avanços sociais obtidos pelos trabalhadores, nos últimos doze anos – em especial os relacionados à profissão de domésticas cuja hipocrisia chama de ‘funcionárias do lar” – é o jornalista e analista político Antônio Augusto Queiroz, diretor de Documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), órgão de assessoria a mais de 900 entidades sindicais dos trabalhadores brasileiros com o objetivo de transformar em normas legais reivindicações predominantes, majoritárias e consensuais da classe.
“A PEC das Domésticas fecha um ciclo do ponto de vista de corrigir distorções e injustiças da classe trabalhadora. Os trabalhadores do campo e da cidade já tinham os mesmos direitos, mas os domésticos ainda estavam apartados deles”, aponta Queiroz.
Depois de setenta anos de lutas, hoje realidade incontestável, a chamada PEC 72 ou PEC das domésticas, de três de abril de 2013, foi aprovada pelo Congresso – e aguarda desde então a lei de regulação completa da atividade – é uma realização pública e notória do atual governo. Vem revolucionar costumes obsoletos que remetem na prática cotidiana a um DNA escravagista, vindo sobretudo ampliar os seus direitos. No entanto, no futuro, a PEC 72 pode vir estar ameaçada, dependendo do que o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva observou no longo discurso que fez, para mais de mil pessoas, esta semana, no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, saudando a candidata Dilma Rousseff : a consciência do povo brasileiro está sendo colocada à prova na atual eleição presidencial.
Ao contrário da realidade dos ‘jardins’ duramente plantados nos últimos doze anos – e a PEC das domésticas é um desses ‘canteiros’ segundo a metáfora desenhada por Leonardo Boff e, em seguida, por Lula -, há nuvens de borboletas erráticas pairando no ar rarefeito do programa de governo proposto pela principal candidatura de oposição ao governo da presidente.
No seu voo às vezes indecifrável, eis o que sentencia o programa da oposição através da sua porta voz Marina Silva: “Em relação às leis trabalhistas, estamos em discussão. Não temos ainda um posicionamento (…). O que posso repetir é que queremos fazer com que esse debate (…) possa ser feito em favor dos trabalhadores e em favor do processo produtivo, que possa ser cada vez mais vigoroso e próspero. (…) Não é uma equação fácil.”
Vigoroso e próspero: o que significará? Se no quesito reforma de leis trabalhistas (CLT) o recheio do sanduíche não for a terceirização e a chamada flexibilização – termo importado, elegante, usado para enfeitar demissões em massa – o que anunciarão as borboletas esvoaçantes quando forem detalhados posicionamentos que ainda estão sendo estudados, às portas do dia 5 de outubro?
Mas enquanto isto há realidades apontadas por Antonio Augusto Queiroz, na entrevista que concedeu a Carta Maior.
CM: o que mudou desde a aprovação da PEC no mercado de trabalho das domésticas?
A primeira e principal consequência da aprovação da PEC foi a reparação de uma injustiça da Constituinte que não deu aos trabalhadores domésticos os mesmos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais. Desde o início da vigência da Emenda à Constituição nº 72, embora ainda esteja pendente de regulamentação, milhares de empregos foram formalizados, com medo da fiscalização do trabalho. E quando for aprovada a lei da regulamentação, os trabalhadores domésticos terão conquistados efetivamente sua emancipação e o direito pleno de cidadania.
(Ou seja: falta regulamentar a interdição ao trabalho remunerado doméstico aos menores de 18 anos de idade; a fiscalização formal da atividade e condições para tornar esses empregos menos precários e mais estruturados.)
CM: A candidatura adversária da presidente Dilma é, declaradamente, pela terceirização do emprego. Um absurdo. Há empresas se organizando para terceirizar o serviço das domésticas? Ouvimos falar de firmas atuando no mercado de empregadas domésticas diaristas.
De fato, programa de governo da candidata Marina Silva estimula e reconhece a terceirização irrestrita o que é muito preocupante porque é na terceirização onde se encontra o trabalho em condições precárias e em piores condições de salário, saúde, proteção e condições de trabalho. Se prevalecer essa lógica, naturalmente vão se criar novas empresas para prestação de serviços domésticos terceirizados pelos quais as pessoas contratam um serviço e não uma pessoa. Isso poderá reduzir os efeitos positivos da Emenda à Constituição.
CM: Aumentou o número de mulheres trabalhando como diaristas desde que os benefícios para as domésticas fixas, que (ainda!) dormem na casa do empregador foram estipulados. Trata-se de uma verdadeira revolução silenciosa de costumes que segue a realidade das sociedades europeias, por exemplo.
É fato sim, também, que muitas donas de casas têm feito a opção pela contratação de diaristas e não contratam um empregado permanente. Entretanto, se a dona da casa quiser alguém que durma no domicílio, terá que pagar bem mais pelo serviço, o que é absolutamente natural.
CM: Há muitas denúncias de patrões que não estão cumprindo a nova lei?
Enquanto não sai a regulamentação, o Ministério do Trabalho baixou uma orientação que autoriza a fiscalização de toda e qualquer denúncia de não assinatura da carteira de trabalho. Segundo informação dos sindicatos, ainda existe muito descumprimento do mandamento constitucional, mas o número de denúncias ainda é pequeno frente ao número de empregados domésticos sem carteira assinada. O medo de perder o trabalho inibe a denúncia. Mas quando a lei for regulamentada, aí então os patrões serão obrigados a cumprir a lei sob pena de ficar sem uma empregada à disposição por todo o expediente.
CM: Você diria que desde a aprovação da PEC das domésticas pode-se dizer que o Brasil dá mais um passo para a abolição absoluta da escravidão – pelo menos de uma forma de trabalho modelo casa grande/senzala que tende a desaparecer? Processo acelerado com o esforço do atual governo? Hoje, por exemplo, os tais cubículos desumanos destinados à moradia de empregados domésticos, quando ainda são projetados nas plantas de prédios residenciais recém construídos para a classe média tradicional se destinam a um espaço de serviço e não de dormitório; e a proibição de discriminação de uso de acessos ‘social’ e de ‘serviço’ é lei regulamentada.
Sem dúvida. Como disse antes, o Brasil deu um enorme salto de civilidade ao estender aos domésticos os mesmos direitos dos demais trabalhadores.
Mas não são poucos os que enxergam uma clara proposta de defesa da terceirização de toda atividade empresarial no programa da oposição e sobre o qual falamos acima. Permite-se a terceirização de qualquer atividade empresarial e de qualquer setor de uma empresa. Neste modelo, uma grande empresa nem mesmo precisaria ter trabalhadores; apenas contratos com outras empresas as quais alugariam trabalhadores para o empresário, reduzindo-os a uma mercadoria.
Sobre o assunto, afirma o advogado de trabalhadores e de entidades sindicais Maximiliano Garcez em post ao Jornal GGN: “Outras empresas terceirizadas, por sua vez, também não necessitariam ter trabalhadores: poderiam alugá-los de outra empresa quarteirizada ou quinterizada. Uso a expressão alugar, pois infelizmente a proposta, na prática, acaba sendo o ultrajante aluguel de pessoas (proibido desde a Lei Áurea), e não o que a candidata eufemisticamente chama de “terceirização”. O trabalhador terceirizado é transformado em uma mercadoria, o que vai contra o princípio que determinou a fundação da OIT da qual participou o Brasil: “O trabalho não é uma mercadoria.”
“Pela proposta de Marina Silva,” sustenta Garcez,” não há limite para o que a empresa tomadora de serviços pode terceirizar. (Trata-se de) série ameaça aos trabalhadores, aos sindicatos e até mesmo à competitividade da economia brasileira. Não se pode tratar o trabalhador como uma mera peça sujeita a preço de mercado, transitória e descartável.”
No seu trabalho O trabalho doméstico remunerado, publicado no volume Projetos para o Brasil, da Fundação Perseu Abramo, a economista e assessora sindical Marilane Oliveira Teixeira lembra que esta é a segunda ocupação que mais emprega mulheres no país – cerca de sete milhões; a primeira é o comércio: “ O emprego doméstico é um dos maiores guetos femininos porque nele 90% são mulheres.”
Desse contingente, até o fim dos anos 90, 70% eram trabalhadoras ‘informais’. Não contavam com qualquer registro profissional nem benefício (exceto a bondade dos patrões!), não tinham o piso de salário vinculado ao mínimo nem horário regulado de oito horas diárias de trabalho e 44 horas semanais. Férias, nem pensar, e muito menos contavam com pagamento de horas extras.
“Para que possamos alcançar um padrão de desenvolvimento socialmente sustentável através da ampliação de empregos formais e com proteção social é essencial que se possa oferecer para essas mais de sete milhões de mulheres ocupadas no trabalho doméstico remunerado novas opções de inserção.”
O que, aliás, já vem ocorrendo com as novas gerações, filhas de domésticas, que em número crescente, acessam a universidade, consolidam e ampliam conhecimento através de cursos de aperfeiçoamento e se incluem, com imenso esforço, com o apoio do estado, no mundo do trabalho qualificado e de profissões ditas liberais.
Mas ainda há muito para caminhar. O primeiro passo é pressionar o Congresso, em 2015, a votar a regulação da atividade de serviços pessoais e domiciliares o que, num país complexo como Brasil, só será viável com um governo progressista e com sólida base de canteiros plantados. Então, as domésticas poderão trabalhar definitivamente com mais segurança e dignidade. Aí sim, as borboletas poderão voar sem prejuízo e à vontade.
Fonte: Carta Maior
Entrevistadora: Léa Maria Aarão Reis
Data original da publicação: 19/09/2014