Muitos caminhos, inclusive pessoais, levaram o professor Marcos Colón, coordenador do programa de português na Universidade Estadual da Flórida, nos Estados Unidos, a desembarcar em Santarém (PA) em uma manhã do verão de 2016. Ele queria ver de perto a Fordlândia, a cidade erguida e perdida no meio da floresta amazônica entre os anos 1920 e 1940. Viu muito mais. O pesquisador ficou impressionado com a crescente expansão do cultivo de soja na região da Fordlândia. Um produto que já estava no radar do próprio Henry Ford, embora a princípio o empresário americano pretendesse, com o empreendimento amazônico, fugir de qualquer dependência econômica em relação à borracha para a fabricação de seus veículos.
A Fordlândia fracassou como projeto, mas na visão de Colón de alguma maneira o empresário triunfou. A prova é a soja, com suas áreas extensivas avançando sobre a floresta. “O perfil cultural do fordismo tipifica um modelo imperial que se metamorfoseou no agronegócio”, ressalta o professor. “O agronegócio, no Brasil, superou o modelo imperial fordista. E se reinventa na economia global.”
Esse é o fio condutor de Beyond Fordlândia (Muito Além da Fordlândia, na tradução em português), documentário que ele escreveu, produziu e dirigiu. Lançado em 2017 – exatamente 90 anos depois da chegada da Fordlândia –, o filme de 75 minutos já correu mundo e ganhou prêmios. Mas, inexplicavelmente, não passou no Brasil. O trabalho procura mostrar a transição do fracassado projeto de Henry Ford para o cada vez maior cultivo da soja – e suas consequências nocivas para a terra e moradores, como índios e pequenos agricultores.
Ciclos econômicos
Colón lembra dos diversos ciclos econômicos (borracha, cacau, minério) para manifestar sua preocupação com o atual. “A soja afeta de maneira exponencialmente mais perigosa. Ela destrói a paisagem, a floresta, a agricultura familiar, a base de sustentação local, provoca doença, mas também contamina os lençóis freáticos”, enumera o autor.
Na obra, ele utiliza o conceito conhecido como slow violence (violência lenta), desenvolvido pelo professor americano Rob Nixon: uma violência gradual, que ocorre ao longo do tempo e nem sempre é percebida ou considerada como tal. E contrapõe o que chama de slow seeing, ou visão lenta. É seu método de observação. Um olhar atento ao processo em curso, apontando seus efeitos e dando voz aos que fazem parte dessa história, mostrando que esses empreendimentos, ao longo do tempo, “sempre tiram muito e deixam pouco”. Ou nada. “Agora, nem oxigênio você tem”, diz, entre a ironia e o lamento.
“Controlar o capitalismo”
Muito Além da Fordlândia começa justamente em 1927, com a chegada do empreendimento à Amazônia. Ford receava ficar nas mãos de um cartel de ingleses e holandeses no fornecimento da borracha, produto vital para seus automóveis. O criador da linha de montagem não queria dominar a Amazônia, como diz um dos entrevistados: “Era algo muito maior, mais selvagem: era (controlar) o capitalismo”.
Uma cidade foi erguida à beira do rio Tapajós, depois de um desmatamento intenso e “uma das maiores queimadas que a Amazônia já viu”, como lembra outro entrevistado. Por vários motivos, não deu certo, como o filme demonstra. As pragas que atingiram as seringueiras, a tentativa de impor ao caboclo um outro modo de vida, a descoberta da borracha sintética. Mas se trata de um “modelo de usurpação” ainda vigente, diz o professor.
Produção e devastação
“Neste momento em que a Ford abandona o Brasil, nos permite refletir sobre vários aspectos desse processo”, diz Colón. “Questionar o que a Ford deixa para o Brasil. O maior produtor de soja do mundo, superando a produção dos Estados Unidos, com muito espaço para expandir na Amazônia”, lembra.
Além do caso Ford, o filme ganha atualidade justamente pela questão da soja. Poucos dias atrás, o governo francês manifestou-se contra a compra do produto brasileiro, por vincular o cultivo da soja ao desmatamento na Amazônia. O governo reagiu no seu estilo belicoso. Atualmente, segundo a associação dos produtores (Aprosoja), Mato Grosso segue na liderança nacional. Na sequência, estão Paraná, Rio Grande do Sul, Goiás e Mato Grosso do Sul. Mas a produção na região amazônica cresce, apesar da chamada Moratória da Soja, um compromisso firmado 15 anos atrás de não aquisição do produto vindo de áreas desmatadas.
Natureza, indústria e veneno
O filme aprofunda todas essas questões. Colón ouviu pesquisadores, professores (americanos e brasileiros), poetas, moradores, agricultores, índios, até um voraz produtor de soja. Passou três meses filmando no local. Além disso, o documentário, que consumiu um ano e meio de pesquisa, traz ótimas imagens de arquivo – e consegue bons efeitos sobrepondo imagens antigas e atuais, exibindo o abandono do projeto.
Mostra ainda aspectos menos conhecidos, como a visão de Henry Ford em relação às perspectivas da soja. Por que, afinal, a natureza não deveria trabalhar para o benefício da indústria?, questionou. Um dos entrevistados, um neurocirurgião, atualiza a pergunta ao falar dos agrotóxicos usados hoje em larga escala: “Será que o Ford teria tido êxito naquele momento com essa quantidade de lixo químico que a gente tem?”.
Cada vez mais agrotóxico
Alguns personagens são emblemáticos. O morador Avelino Campos, por exemplo, que chegou ainda criança à região. No filme, mostra os vários tipos de árvore em sua propriedade e comenta sobre a área de plantio de soja. “Campão a perder de vista. Metendo veneno para que a soja amadureça mais rápido (…) Hoje você não acha um juruti”, diz, com certa aflição, falando de uma ave que era comum por ali. “Morreram envenenados.”
Ou o cacique Emanuel, líder Munduruku. “O agronegócio só traz pra nós o quê? A discriminação, o preconceito, o racismo, a prostituição, a droga e o desemprego”, diz. Ele conta que é cada vez mais difícil sobreviver da roça, plantando macaxeira, farinha, castanha. “A mandioca fica azulada do veneno”, relata.
Uma oncologista entrevistada para o documentário conta que de 2007 a 2013 triplicou a utilização de agrotóxicos no Pará. Desde então, o uso deve ter crescido ainda mais, com as possíveis consequências, matando não apenas os jurutis de seu Avelino. Relatos apontam incidência cada vez maior de casos de câncer.
A voz de quem perde
Exasperada, Dercy Godinho, moradora de Boa Esperança, em Santarém, afirma que as árvores estão desaparecendo. “Daqui a alguns anos, se não plantarmos nos nossos quintais, nossos netos, essa geração vai conhecer a laranjeira só de nome.” Ela aparece em alguns cenas cantarolando e contemplando, do seu quintal – a vista era para uma plantação de soja sem fim. O diretor lembra dela com emoção: “É o símbolo do filme”. O documentário é dedicado a ela e ao historiador Helcio Amaral, que morreram (ambos de câncer) não muito tempo depois das filmagens.
“A perspectiva do filme é localizar e dar voz. As populações ficam com a contaminação, os buracos, a dilapidação de suas vidas, dos recursos naturais. Essas vozes são importantes. (…) Quando a soja sair da Amazônia – e ela vai sair –, o que vai ficar?”
Assista ao trailer (em inglês):
Fonte: RBA
Texto: Vitor Nuzzi
Data original da publicação: 15/01/2021