Para enriquecermos o debate político sobre auxílio emergencial é urgente a identificação e a justificação normativa do problema social que queremos enfrentar com esse programa.
Marcos Paulo de Lucca-Silveira e Rogério Jerônimo Barbosa
Fonte: Blog da BVPS
Data original da publicação: 15/07/2020
1. Introdução
Renda Básica Emergencial, Auxílio Emergencial, Coronavoucher: nomes que se referem ao mesmo programa de transferência de renda do Governo Federal, elaborado com vistas a aliviar os efeitos socioeconômicos da crise precipitada pela pandemia da Covid-19 para os mais pobres e informais. Dentre os termos, o segundo, “Auxílio Emergencial”, é o que consta oficialmente na lei 13.982/2020, que implementou a política. Contudo, as variações terminológicas não são fortuitas. Num gradiente, mapeiam interesses. De um lado, aqueles que enfatizam como tal programa poderia ser um primeiro passo para um programa social mais amplo, alguma modalidade de “renda básica” permanente. De outro, aqueles que enfatizam seu caráter eminentemente temporário, uma vigência estritamente vinculada à pandemia. Neste texto, discutimos apenas a primeira dessas duas posições e apontamos a diversidade de princípios normativos e impasses que subjazem ao aparente consenso terminológico no interior desse grupo.
O debate sobre “renda básica”, assim animado pelo contexto, no entanto, ganhou alguns formatos e direções que não estavam necessariamente presentes na literatura especializada pré-existente. Preocupações com a viabilidade fiscal e política, a compatibilidade com programas sociais anteriores e a capacidade de implementação pelo Estado, por exemplo, têm dominado as arenas públicas. Nosso propósito aqui, no entanto, é o de ampliar essa discussão, adicionando uma camada aos seus elementos normativos.
Como contextualização, trazemos alguns resultados sobre os efeitos da renda básica emergencial. Passamos, em seguida, a apresentar uma taxonomia de conceitos normativos que permitirá mapear o conjunto amplo de questões subjacentes. Ao final, utilizamos os conceitos normativos para apresentar uma reflexão sobre o debate político brasileiro atual.
2. Os efeitos do Auxílio Emergencial
A crise econômica acarretada pela pandemia de Covid-19 agravou a vulnerabilidade dos estratos mais pobres da população. Esses, em geral, são ocupantes de postos de trabalho informais, que sofreram um maior número de baixas e perda mais intensa de rendimentos. Além disso, tais atividades são menos passíveis de realização à distância; o que significa que têm maior propensão à exposição e ao contágio por coronavírus. O propósito do Auxílio Emergencial foi o de tentar endereçar essas duas dimensões: compensar as perdas de renda dessas famílias e estimular a manutenção do distanciamento social (reduzindo a urgência da procura de empregos para aqueles que foram demitidos, por exemplo). Não se trata, portanto, de um programa desenhado para o combate a mecanismos regulares que geram pobreza e desigualdade.
As informações existentes sobre os efeitos do Auxílio Emergencial sugerem que o objetivo de proteger economicamente as famílias mais pobres foi endereçado de maneira razoável. No gráfico abaixo, exibimos os valores dos rendimentos domiciliares per capita dos 40% mais pobres da população, comparando maio de 2020 (com e sem a incidência do Auxílio Emergencial) com a distribuição de renda observada no ano de 2019. Encontramos que, para a população localizada nos estratos entre os 2% e 35% mais pobres (percentis P2 ao P35), a incidência do benefício fez com que as rendas dessas famílias chegassem a ser levemente superiores aos níveis de 2019 (resta saber se essa pequena parcela adicional seria capaz gerar também o efeito epidemiológico desejado pelos políticos, a manutenção do distanciamento). A inexistência do auxílio implicaria perdas bastante intensas (linha tracejada).
O gráfico seguinte, no entanto, com foco nos estratos intermediários (percentis P40 ao P90), mostram que esse mesmo efeito compensatório não se verifica para classe média. Trata-se de uma população com renda um pouco mais elevada (a maior parte entre R$ 500 e R$ 1500 per capita) e com mais probabilidade de ocupar um posto de trabalho com carteira assinada — logo, em larga medida, inelegível ao programa emergencial.
Tal lacuna de proteção emergencial nesses estratos intermediários (em especial, até os 70% mais pobres) justifica, para alguns, a alcunha de “novos vulneráveis”: um grupo que, sob circunstâncias comuns (inclusive, crises econômicas “usuais”), não se veria sob risco de perda de emprego e renda (Barbosa, Prates & Meireles, 2020). Isso, obviamente, não iguala suas perdas efetivas e potenciais às verificadas nos estratos mais baixos. De todo modo, há evidências de que em algum momento ao longo de um período mais extenso de tempo, mesmo na ausência de recessão econômica, parcela razoável desse grupo terá experimentado a condição de pobreza (Soares, 2010), definida em termos operacionais como a incapacidade de aquisição de alimentos para satisfação de necessidades nutricionais, de acesso a serviços, transporte e moradia adequada (basic needs). Noutras palavras, ainda que uma fotografia em cross-section não necessariamente os capture abaixo de uma linha arbitrária de pobreza, é provável que, em algum momento, a tenham cruzado.
3. Do Auxílio Emergencial à Renda Básica
Os efeitos do Auxílio Emergencial foram surpreendentemente positivos, tendo em vista seus objetivos econômicos e a despeito de seus inúmeros problemas — dentre eles, uma estratégia de implementação atabalhoada (Barbosa et al., 2020), erros de focalização e fraudes. Como a incidência do benefício entre os mais pobres de fato foi capaz de proteger essas camadas contra perdas de rendimento, houve queda da taxa de pobreza, de 18,7% (em 2019) para 14,9% (na última semana de maio)[4], conforme medida em termos apenas monetários. O Coeficiente de Gini para a renda domiciliar per capita caiu de 0,543 para 0,487 no mesmo período — embora esse resultado para desigualdade reflita também as perdas não compensadas no meio e no topo da distribuição. Esses resultados, porém, terão a duração da vigência do Auxílio Emergencial. No instante em que a política se encerrar, os indicadores socioeconômicos apontarão enorme deterioração. É nesse contexto que emerge no debate público a preocupação com a possibilidade de uma política permanente da mesma natureza: seria possível tornar também duradouros os efeitos positivos? Mas qual seria o desenho de tal política permanente subsequente e quais seriam os objetivos por ela perseguidos?
A primeira observação, tendencialmente consensual, é a de que o valor da transferência de renda do Bolsa Família seria, há muito, insuficiente. As linhas de pobreza e extrema pobreza do programa (de R$ 178 e R$ 89, respectivamente) estariam abaixo dos custos alimentares e não-alimentares básicos da população. E, além disso, o financiamento instável do programa fez com que, a partir de 2014, com a política de ajuste fiscal, seu orçamento encolhesse, reduzindo o escopo de beneficiários e os valores médios por domicílio e per capita (Barbosa, Sousa e Soares, 2020). Uma renda básica permanente, argumenta-se, não poderia padecer desses mesmos problemas: seu benefício deveria ser mais elevado e seu financiamento estável.
A susceptibilidade dos estratos médios aos efeitos socioeconômicos da pandemia despertou ainda uma preocupação com essa pretensamente “nova” vulnerabilidade. Argumentos públicos sobre a mesa, no entanto, destacam que a volatilidade de renda dessa população já era conhecida (Soares, 2010). Deste modo, ainda que não se encontrem em estado agudo de privação, essas famílias experimentariam crônica instabilidade, o que as privaria da possibilidade de planejamento e de investimentos de longo prazo, tanto em bens materiais como imateriais (inclusive em educação).
A focalização ampliada, porém, inaugura outro desafio. Usualmente, o critério de foco é alguma linha de renda domiciliar per capita: indivíduos abaixo do limiar são elegíveis. No entanto, para o Estado, que concede o benefício, a renda domiciliar observável é apenas aquela formalmente declarada. Do ponto de vista das capacidades estatais, é virtualmente impossível ter controle contábil das rendas advindas de fontes informais — a não ser por meio da declaração verbal dos montantes recebidos. Com isso, emerge a preocupação de que indivíduos e famílias que se encontram apenas um pouco acima do limiar de elegibilidade do programa tenham incentivos para se “informalizarem”. Sendo a informalidade um problema histórico e crônico do mercado de trabalho brasileiro, alguns argumentam que focalização ampla não deveria se basear diretamente na renda.
É a essa preocupação que responde, por exemplo, a idéia de uma “renda básica infantil”. Em função das taxas de fecundidade ainda mais elevadas entre os mais pobres (apesar de secularmente declinantes), a base da pirâmide etária é muito mais alargada entre essa população. Como resultado, observamos um viés etário na pobreza: há uma desproporção de crianças e adolescentes vivendo em situação de pobreza. Uma renda dirigida a esse grupo, independentemente de suas condições socioeconômicas efetivas, acabaria, indiretamente, sendo focalizada nos mais pobres. Ou seja, uma “renda básica universal infantil” seria, na realidade, uma renda básica não-universal com focalização indireta. Assim, o critério direto da renda é evitado e as consequências adversas antevistas sobre o grau de formalização, contornadas.
Naturalmente, porém, emergem outras questões: e as famílias pobres onde não há crianças?; tal programa substituiria as demais políticas de transferência de renda existentes? Grupos divergem nas respostas. A ausência de crianças desperta para a necessidade de um princípio complementar de elegibilidade ou para a manutenção de programas de transferência com finalidades distintas em paralelo, como o próprio Bolsa Família. A renda básica deveria então apenas endereçar a volatilidade de renda, enquanto o BF mantém sua função de combate à miséria? Entrelaça-se aí a questão sobre as funções cumpridas também pelos programas de transferência: estariam elas absorvidas e contempladas por uma renda básica? Ou seria desejável abandonar alguns de seus objetivos de modo a garantir disponibilidade orçamentária para execução de um programa maior?
Por fim, o pagamento de uma quantia implicaria no descompromisso estatal com respeito à provisão de serviços como saúde, educação e outras funções da assistência social? Não há, por ora, grandes defensores da substituição dos serviços por pagamentos no debate público brasileiro. No entanto, reconhece-se que se o valor do benefício pago for muito elevado, ele acabará por funcionar como um novo teto de gastos, na prática, comprimindo orçamentos de outras rubricas — e assim, inadvertidamente, reduzindo ou impedindo novos investimentos em áreas prioritárias. Manifesta-se, assim, uma preocupação combinada com o tamanho do programa e sua convivência com outros setores no leque de um Estado de Bem-Estar.
4. Mapa conceitual da renda básica
Há uma significativa e crescente literatura acadêmica sobre a existência de uma justificação normativa de uma renda básica nas sociedades contemporâneas. Como já sugerimos, a polissemia de nomes ao redor de um único programa de transferência de renda não é um acaso. Há uma disputa política ao redor desse programa. Diferentes versões e nomes de uma renda básica ganharam apoiadores nas arenas públicas de diversos países nos últimos anos e, nos últimos meses, esse programa passou a ser incentivado como uma política pública eficaz a ser adotada visando reduzir os efeitos trágicos causados pela pandemia do coronavírus.
Contudo, essas disputas e dissensos não se limitam à arena política. Mesmo se focarmos nossa análise a um debate mais específico, sobre renda básica universal, a literatura acadêmica sobre a questão – que hoje já pode ser considerada multidisciplinar, envolvendo os campos da filosofia, economia, ciência política, sociologia, entre outras áreas relacionadas – também não é incontroversa. Autores considerados fundamentais para espectros políticos diferentes (e até mesmo opostos) – como Thomas Paine (1797), Milton Friedman (1968) e Martin Luther King (2010) – apresentam propostas que são vistas como precursoras ou relacionadas a esse programa[5]. Já no meio acadêmico contemporâneo, a ideia de renda básica universal está associada aos trabalhos do filósofo político belga Philippe Van Parijs (VAN PARIJS, 1995; VAN PARIJS, VANDERBORGHT, 2017, entre outros)[6]. Mas, quais seriam as características comuns das diferentes propostas normativas de renda básica? E quais as razões morais apresentadas pelos defensores da renda básica universal para a adoção da mesma por um estado justo? Acreditamos que ao respondermos essas duas perguntas, poderemos iluminar algumas questões urgentes que devem ser postas em discussão no cenário político contemporâneo.
Segundo Bidadanure, são ao menos cinco as características que podem ser consideradas comuns às diferentes propostas de renda básica universal presentes na literatura (BIDADANURE, 2019). Em primeiro lugar, o benefício deve ser pago em dinheiro e não em forma de alguma cesta de produtos, como uma cesta básica. Uma segunda característica associada a essas proposições é a de que esses benefícios devem ser individuais. Isto é, diferentemente de quase todos os programas mais duradouros existentes em sociedades democráticas, esses programas não devem ser baseados na renda domiciliar (ou familiar) e não devem ser destinados a um único membro da família. Mais do que isso, deve ser incondicional. Você deve recebê-lo, você tem um direito inalienável a essa renda – seja você rico ou pobre, jovem ou velho, trabalhador formal, informal ou desempregado. Por fim, duas últimas características: o pagamento desse programa deve ser regular de uma perspectiva temporal (pago mensalmente e não em uma única parcela em um dado momento da vida[7]) e não deve ter critérios de elegibilidade. Ele é universal. Critérios de classificação e distinção entre beneficiários e não beneficiários tende a criar estigmas e potencializar preconceitos sociais.
A opção por todas essas características não é aleatória. Há razões morais para elas, diretamente associadas a defesa da adoção de uma renda básica universal, segundo seus defensores. Segundo Van Parijs, se queremos ser justos, devemos almejar uma sociedade livre, ou seja, uma sociedade cujos membros são tão livres quanto possível (VAN PARIJS, 1994, p.71). O instrumento adequado para isso, como o filósofo belga vai desenvolver em vários artigos e livros ao longo de mais de duas décadas, seria a adoção de uma renda básica universal.
Pode espantar alguns leitores que essa proposta seja de matiz libertariana. Alguns leitores devem mesmo estar se questionando: a renda básica universal não é uma proposta igualitária de esquerda? Como o filósofo belga enfatiza, sua proposta é de um “libertarianismo real” (VAN PARIJS, 1995), o que não impede que a proposta tenha um núcleo igualitário ou possa a vir ser adotada por igualitários. Mas por que devemos então adotar a renda básica universal?
Pelo fim da dominação de origem econômica, pela extinção das opressões de gênero e raciais. Essas são três razões morais abrangentes encontradas na literatura.[8] Mais do que isso, defensores da renda básica universal buscam enfatizar que não há razões morais para pressupormos um valor moral superior — usualmente associado a uma ideia de reciprocidade social — em alguns tipos de trabalhos perante outros. Essa parece ser uma parte fundamental da justificação moral da proposta e polêmica, que divide até mesmo o grupo de filósofos igualitários. Absolutamente todos devem ter o direito de fazer o que quiserem e receber uma renda básica igual? Para usarmos o exemplo clássico da literatura: até mesmo um surfista em Malibu[9]? Segundo os defensores da renda básica universal, sim. Não estaríamos assim desestimulando aqueles que trabalham duro em funções difíceis? Os defensores da renda básica universal argumentam que não podemos inconscientemente aderir a um valor moral “produtivista”, usualmente compartilhado de forma consciente ou não por membros da sociedades contemporâneas de uma valorização do trabalho e de nossas escolhas profissionais, assim como de uma responsabilidade individual associada a eles.
Há ainda um importante ponto a ser destacado dessa literatura sobre renda básica universal. Precisamos entender o que está por trás do adjetivo “básica”. Esse adjetivo não deve ser visto como um sinônimo obrigatório de “mínima”, mas se refere ao fato que a renda derivada do trabalho suplementaria essa renda do programa (Bidadanure, 2019, p.486). Obviamente, definirmos o que seria esse “básico” não parece ser tarefa simples, mesmo em um cenário ideal sem escassez severa de recursos. Como estabelecer um básico universal parece ser questão ainda mais importante se pensamos em países com economias frágeis, em crise ou em desenvolvimento: como financiar parece ser uma pergunta inescapável. Mais do que isso, não parece ser simples a resposta à questão de se a renda básica universal deve ser entendida como uma valor em si mesmo, independente das consequências que esse programa irá causar. Em circunstâncias reais, outros programas sociais já estabelecidos importantes podem conflitar ou perder o financiamento com esse novo programa? A renda básica universal deve sempre existir, mesmo que gere externalidades negativas como informalidade, inflação ou piore, de outras formas, a situação de pessoas em vulnerabilidade?
Esses parecem ser pontos importantes que ainda não estão completamente respondidos de forma consensual na literatura teórica contemporânea. Parece ser plausível assumir que os defensores de programas de distribuição de renda sejam sensíveis às consequências resultantes dessa política pública. Entretanto, alguns defensores da renda básica podem considerar que a existência da mesma é um valor em si, visto que ela possibilitaria uma liberdade real que nunca seria alcançada com programas de renda focalizados. Dessa forma, as consequências poderiam não ser o único elemento de uma avaliação.
Um outro importante debate normativo, que não está usualmente presente na literatura sobre renda básica, pode auxiliar em uma reflexão moral cuidadosa que pode enriquecer as reflexões usuais sobre essa temática. Existem ao menos três princípios gerais de justiça e correntes filosóficas que podem defender a adoção de programas focalizados ou universais de transferência de renda: um princípio da suficiência, um princípio de prioridade e um de igualdade[10].
Os defensores do valor intrínseco da igualdade argumentam que a avaliação de uma distribuição deve ser sempre realizada em comparação a um critério de igualdade, ou seja, um elemento relacional deve estar presente na comparação. Contrários a esse elemento relacional, teríamos os defensores de “doutrinas da suficiência” (FRANKFURT, 2015), assim como os defensores de um “humanitarismo estendido” (TEMKIN, 1993) ou de uma “visão prioritarista” (PARFIT, 2002). Para os últimos, “beneficiar pessoas importa mais quanto em pior situação essas pessoas estiverem” (PARFIT, 2002, p.101). Assim, benefícios àqueles que estão em pior situação econômica devem ser priorizados.
Por fim, defensores de doutrinas da suficiência ou teorias suficientaristas (FRANKFURT, 2015). Se, por um lado, essas teorias não se importam com a igualdade ou com outro ideal comparativo, por outro lado, elas também não defendem a prioridade irrestrita daqueles que estão em pior situação. Segundo esse leque de teorias, ajudar indivíduos em pior situação importa apenas se esses indivíduos se encontram em uma posição abaixo de um limiar crítico. Assim, moralmente o que importa, de acordo com os adeptos da suficiência, é se todos têm o bastante para viverem acima de um limiar crítico. Dessa forma, apoiadores dessa doutrina defendem duas teses distintas, mas inter-relacionadas. Uma tese positiva – a qual afirma a importância das pessoas viverem sem privações, acima de certo limiar crítico – e uma tese negativa, que “nega a relevância de certos apelos distributivos adicionais” (CASAL, 2007, p. 298), acima do limiar anteriormente determinado.
Refletirmos sobre qual princípio moral defendemos parece ser uma tarefa que possui primazia perante a escolha de qual política pública desejamos e, consequentemente, sobre qual programa de distribuição de renda – seja ela básica universal ou focalizada e emergencial – que defendemos. Um programa de auxílio emergencial pode ser justificado por diferentes perspectivas políticas e valores morais, os quais impactaram em seu formato e em seus objetivos. Se não debatermos nossas motivações morais primeiras, sempre estaremos correndo o risco de não conseguirmos nem mesmo identificar quem são nossos aliados e quem são nossos opositores políticos, assim como nos limitarmos a avaliar critérios normativos importantes, mas de segunda ordem, como eficiência ou efetividade na tomada de decisão. Temos que saber onde queremos chegar para escolher o melhor caminho a seguir. É verdade que consequências importam, mas devemos nos perguntar quais consequências buscamos. Se bem sucedida, essa simples taxonomia de conceitos e princípios morais que apresentamos nesta seção traça diferentes caminhos normativos que devem ser levados em consideração no debate político sobre o auxílio emergencial es renda básica.
5. Considerações normativas sobre uma renda básica brasileira
A breve revisão da literatura teórica nos propicia uma interpretação das principais questões que estão no debate político contemporâneo no Brasil: (1) volatilidade de renda, e (2) universalização ou não; (3) em caso de focalização, se direta ou indireta.
A importante preocupação com a volatilidade de renda pode ser compreendida como uma reivindicação de justiça que merece atenção especial. Mesmo os adeptos de doutrinas da suficiência julgariam essa temática como de especial relevância moral[11]. No entanto, essa pauta, para se enquadrar corretamente em uma perspectiva de justiça, exige que levemos em conta períodos mais estendidos de tempo e o comportamento longitudinal dos recursos familiares. Caso essa preocupação moral sobre a volatilidade de renda se limite a uma reivindicação de que, de uma perspectiva de justiça distributiva, ninguém deveria enfrentar privações em nenhum estágio de sua vida, sugerimos denominá-la de suficientarismo diacrônico[12]. Dessa perspectiva, o que moralmente importa, de uma perspectiva de justiça distributiva, é que as pessoas, ao longo de toda as suas vidas, não devam enfrentar privações severas em nenhum estágio, devendo viver sempre acima de um limiar (seja esse limiar uma das linhas de pobreza ou de necessidade básica). Acima desse limiar, as preocupações distributivas deixariam ser relevantes.
Assim, podemos tirar dois aprendizados dessa questão. Por um lado, ao esclarecermos essa preocupação moral, podemos compreender melhor o debate político atual. Por outro lado, a preocupação com a volatilidade de renda presente no debate nos ressalta a importância de darmos maior atenção à dimensão temporal em trabalhos teóricos sobre justiça distributiva.
Além disso, há outras questões que precisam ser melhor trabalhadas pela teoria política e cuidadosamente avaliadas por aqueles que formulam políticas públicas. A literatura sobre renda básica assume a universalização como uma característica necessária, que eliminaria os diversos e perigosos estigmas causados por programas com focalização. Contudo a universalização não parece ser uma questão com resposta simples e incontroversa. Como podemos identificar no debate político contemporâneo, no Brasil, animado pelo auxílio emergencial, a preocupação com o alargamento do conjunto de beneficiários não pode desconsiderar os elevados patamares de pobreza e desigualdade pré-existentes — e que, somada à preocupação com possibilidades fiscais e de implementação compele a considerar a focalização como uma alternativa. Seria justo desenhar um programa universal com os níveis de privação das camadas mais pobres e as restrições orçamentárias estatais presentes e previstas para o futuro pós-pandemia?
O debate existente no Brasil sobre as diferentes estratégias de focalização, direta e indireta, lança luz sobre outro de relevância moral, ainda mais fundacional: devemos defender uma renda básica independentemente de seus efeitos e externalidades? A informalidade como eventual produto não premeditado de um sistema de focalização direta e abrangente sugere a relevância de levarmos as consequências em consideração antes de nos manifestarmos favoráveis ou contrários a um programa de transferência de renda. Seria, portanto, nossa posição normativa favorável ou contrária a renda básica sensível às circunstâncias? O debate teórico pode ser enriquecido levando questões dessa ordem a sério.
Diferentes princípios de justiça podem justificar programas distintos de distribuição de renda. Se é verdade que todo igualitário, prioritário ou suficientarista reconhece que não devemos viver em uma sociedade em que pessoas vivem abaixo do limiar de pobreza extrema, isso não significa que as políticas a serem defendidas por diferentes princípios de justiça serão semelhantes. Justamente por isso uma reflexão normativa pode auxiliar as avaliações e as recomendações empíricas, assim como esclarecer o debate político. O inverso também é verdadeiro: a teoria normativa precisa considerar as evidências empíricas. Para enriquecermos o debate político sobre auxílio emergencial é urgente a identificação e a justificação normativa do problema social que queremos enfrentar com esse programa. Um debate qualificado sobre o melhor desenho institucional exige que as questões normativas sejam levadas em consideração.
Notas
[1] Escola de Economia de São Paulo, Fundação Getulio Vargas. E-mail: marcos.silveira@fgv.br
[2] Fundação José Luiz Egydio Setúbal.
[3] Centro de Estudos da Metrópole. Bolsista de Pós-doutorado FAPESP #18/13863-0.
[4] Considerando uma linha de pobreza de um terço do salário mínimo vigente em 2020. A taxa de pobreza para 2019 foi calculada a partir da PNAD Contínua Anual de 2019, com valores deflacionados para maio de 2020. A taxa de pobreza para a quarta semana de maio foi calculada com a Pnad-Covid.
[5] Milton Friedman (1968) apresenta uma proposta de “negative income tax”, a qual possui alguma similaridade com a proposta de renda básica universal, segundo parte da literatura contemporânea. O artigo de Bidadanure (2019) apresenta uma excelente revisão sobre o debate de renda básica, a qual seguimos em parte desta sessão.
[6] Já no Brasil, destacam-se os trabalhos acadêmicos e proposições política de Eduardo Suplicy (SUPLICY, 2013).
[7] Um programa nesse formato é conhecido na literatura como “capital básico”. Essa proposta pode ser encontrada na formulação de Ackerman e Alstott (ACKERMAN, ALSTOTT, 2000; 2006).
[8] Ver Bidadanure (2019) para referências sobre essas razões.
[9] O exemplo dos surfistas, que motivou a imagem de capa do livro clássico de Van Parijs (1995), é sempre apresentado na literatura sobre renda básica como uma crítica a posições igualitárias apresentadas por outros importantes filósofos, como John Rawls, que defende que instituições justas não devem subsidiar aqueles que optam por surfar todos os dias e não usam suas capacidades produtivas (RAWLS, 2001, p. 179).
[10] Sobre essa questão, ver LUCCA-SILVEIRA, 2017.
[11] Parece ser claro que essa preocupação também seria uma das prioridades de defensores de posições prioritárias e igualitárias, as quais tendem a ser mais favoráveis a programas de distribuição de renda.
[12] Essa questão temporal parece ser pouco explorada na literatura normativa sobre a temática.
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Marcos Paulo de Lucca-Silveira é professor na Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP).
Rogério Jerônimo Barbosa é pesquisador de pós-doutorado no Centro de Estudos da Metrópole da USP.
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