Ditadura e desinformação: as promessas aos trabalhadores para capitalizar a Previdência no Chile

Fotografia: Leonardo Wexell Severo/ComunicaSul

Essas foram as ferramentas para a mudança massiva da população para o sistema capitalizado: a garantia em plena ditadura de uma boa aposentadoria e liberdade econômica.

Patricia Faermann

Fonte: GGN
Data original da publicação: 08/07/2019

A mudança na Previdência do Chile, com todas as consequências de defasagens sociais geradas posteriormente, ocorreu em plena ditadura militar de Augusto Pinochet (1973-1990), conforme vimos anteriormente nesse especial “Chile: um exemplo vivo da aposentadoria capitalizada”. Entretanto, sob o signo da “liberdade econômica” do neoliberalismo proposto pela equipe econômica da época, foi também preciso um trabalho de convencimento dos cidadãos chilenos para apoiarem e acreditarem nessa reforma.

A partir desta semana, o GGN vai mostrar um desenho mais prático de como foi feita essa mudança, o que sentiram os trabalhadores naqueles anos com a reforma, quais impactos objetivos e os números que começaram a aparecer somente quase 30 anos depois, e o papel desse organismo privado como novo agente de poder no país, as Administradoras de Fundo de Pensões (AFPs). Na reportagem de hoje, vamos mostrar como a ditadura convenceu a população de que a mudança era um “bom negócio”.

Em contextos de ditaduras militares, sem precisar ir além da própria América Latina, as violências, assassinatos e repressões contra opositores do sistema deixaram muitas marcas. No Chile, as cifras oficiais apontam para mais de 40 mil vítimas de abusos e violações aos direitos humanos e mais de 3 mil assassinados e desaparecidos. Por isso, é de se estranhar que pontuemos o “convencimento” como uma necessidade de Pinochet para adotar qualquer medida política. Mas muitos autores apontam para essa característica, somada a uma equipe econômica formada por neoliberais e civis, a manutenção dos 17 anos no poder, sendo a última ditadura militar do continente a acabar, já nos anos 90.

Esse convencimento não implicava qualquer diálogo, e sim transmitir a mensagem que o governo queria à população. Ao conversar com diversos aposentados no Chile, o GGN identificou que a pressão velada –seja dos patrões, do medo de perder o emprego e da própria ditadura em si– foi um fator determinante para eles migrarem ao novo sistema. Porque oficialmente, a reforma não obrigava que os trabalhadores abandonassem o antigo modelo de repartição solidária.

“Apesar de terem vendido como algo voluntário, que se poderia permanecer no sistema antigo –só nos novos contratos era obrigatória a capitalização–, havia a pressão de parte dos empresários associada à ditadura, que era a ameaça não somente da demissão do funcionário, mas também de força. Lembrando que nesse período se assassinavam dirigentes sindicais, então era um contexto de repressão permanente”, afirmou o economista Marco Kremerman.

Mestre em políticas laborais pela Universidade Central do Chile e Universidade de Bologna, Itália, e pesquisador da Fundação Sol, Kremerman ressaltou os dados da Comissão Presidencial de Pensões, criada no segundo mandato da ex-presidente Michelle Bachelet, em 2015. As conclusões demonstram que entre os aposentados que mudaram do sistema previdenciário anterior ao novo, as AFPs, 68% afirmaram sentir-se “obrigado ou pressionado”.

“A conclusão é que eles sentiram que corriam perigo se não mudassem para o sistema capitalizado”, disse o pesquisador. Confira no gráfico:

Entretanto, outros dois critérios fizeram com que essa mudança fosse imediatamente massiva: a desinformação e os incentivos que eram transmitidos pelas publicidades e pelos jornais. A desinformação, inclusive, foi medida pela pesquisa feita em 2015, que analisou a opinião e a percepção dos chilenos sobre o sistema de pensões do país. A palavra foi listada como um dos três principais problemas atuais do sistema.

Mas se hoje um terço dos aposentados critica a falta de informação sobre como funciona a capitalização e o modelo de contas individuais de suas contribuições, como estava o cenário há 40 anos, quando as AFPs foram implementadas?

María Cristina Tapia Poblete, 68 anos, ex-servidora pública e aposentada por uma AFP, responde: “O sistema foi imposto no Chile em 1981, enquanto estávamos na ditadura militar. Nos impuseram este sistema argumentando que o modelo de repartição solidária estava quebrado. E nos passaram muitas informações erradas, muita desinformação”.

“E muitos anos se passaram, os idosos continuavam se aposentando pelo sistema antigo e só em 1996, por volta de 95, que os primeiros aposentados por esse novo sistema começaram a surgir. Foi quando nós, os trabalhadores, percebemos como o modelo era ruim. Nós começamos a ver as realidades de nossos companheiros, como eles estavam, e começamos a perceber a fraude que eles tinham feito contra nós”, narrou.

O GGN participou de uma reunião com presidentes e representantes de associações de aposentados. Assim como Cristina Tapia, que é presidente da Associação Nacional de Aposentados (ANACPEN), também relataram as situações vividas Juan Lira, ex-dirigente da ANEF (Agrupação Nacional de Empregados Fiscais), Ana Obreque Rivas, secretária da ANAPEN (Defesa do Sistema Público de Pensões) e Yasmir Fariña Morales, sócia da ANACPEN.

“Nós estávamos no regime ditatorial. Quem iria reclamar? Aonde? Não tínhamos como, não havia agregações, movimentos para reivindicações”, destacou Juan. “Só havia um tipo de informação na imprensa, a do governo”, acrescentou Cristina Tapia.

O outro critério não menor de convencimento foram os incentivos, baseados no conceito-chave da “liberdade econômica” prometida aos trabalhadores. Com o novo sistema, a aposentadoria seria controlada por empresas privadas que fariam seu dinheiro render no mercado financeiro, o que bastaria arrecadar apenas a metade do que antes se descontava do salário e atingiria uma aposentadoria equivalente a 70% ou 80% da última remuneração, a chamada taxa de reposição.

“No sistema antigo arrecadava-se um pouco mais de 20% do salário. E neste sistema se afirmou que a cotização ia diminuir para 10%, porque tudo o que antes o empregador pagava ele deixaria de pagar, de aportar com o sistema, e somente o trabalhador iria arrecadar. Assim, o salário líquido dos trabalhadores iria aumentar imediatamente, era uma renda líquida mensal maior. Eles diziam: vocês vão ter um sistema novo que vai ser vantajoso, com um salário maior e ainda poderão retirar entre 70% e 80% do último salário na hora de se aposentar”, contou Kremerman.

O GGN também conversou com Andras Uthoff, doutor em economia pela Universidade de Berkeley, foi conselheiro da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e diretor da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe) entre 1990 e 2008, professor de economia na Universidade de Chile e ocupou alguns cargos de responsabilidades em governos democráticos, como o Conselho Assessor para a Reforma da Previdência criada pelo governo de Michelle Bachelet, em 2006.

Ele explicou que do sistema tripartite, em que o empregador, Estado e o trabalhador colaboram para a aposentadoria, na capitalização apenas o último é obrigado a economizar para seu auto-sustento ao chegar à idade maior. “A teoria assumia que com isso as pessoas conseguiriam uma poupança suficiente para na idade de se aposentar ter uma renda vitalícia ou programada, e o Estado o que fez foi se retirar como ator do sistema previdenciário e passou a regular uma indústria financeira”, manifestou.

“A promessa do sistema era que a rentabilidade média seria de 5% dos investimentos das AFP e que uma pessoa que contribuísse regularmente poderia aos 65 anos, no caso dos homens, e 60, no caso das mulheres, ter uma taxa de reposição de 70%, e até se publicitou chegar aos 100%. Isso porque era preciso convencer a muita gente que já arrecadava a mudar para o novo sistema. Tinham que criar esse marketing”, disse.

A publicidade da tese de que um trabalhador poderia se aposentar com 100% do último salário, o que seria uma aposentadoria integral, chegou a ser insistida quase 30 anos após o início do modelo capitalizado. Uma reportagem do ano 2000 no jornal El Mercurio trazia a manchete: “Chilenos se aposentariam com 100% de seu salário em 2020”. “Esta expectativa de especialistas da aposentadoria tem como base uma rentabilidade anual média dos fundos de 6% e 7%”, é a descrição.

A projeção tinha sido feita pela Associação da AFP e ia além: “As pessoas que se aposentem em 20 anos mais poderão receber como pensão, inclusive, mais de 100% de seu salário médio se forem alcançados bons resultados [de rentabilidade] dos fundos”.

“Mas o que aconteceu na realidade? Primeiro, a rentabilidade dos fundos chegou a ser até maior, acima de 10%, mas hoje em dia está baixando. Nem todos puderam arrecadar durante 40 anos de sua vida, a densidade de cotização, que são as vezes que uma pessoa consegue contribuir no tempo trabalhado, está em 50%, em média. Este é o segundo fator. Terceiro, quando se instaurou o sistema, a expectativa de vida após os 65 anos era uma, hoje é maior”, analisou Uthoff.

Para o economista, esses fatores contribuíram para que “a grande maioria das pessoas não tivessem essa promessa cumprida”.

“Depois que passamos a este sistema, nos falaram que iríamos retirar 70% do último salário, e nós acreditamos”, disse Cristina Tapia. “Quem falou isso?”, perguntou o GGN. “A imprensa, a rádio, a televisão”, respondeu Juan. “A diretora de recursos humanos, a chefia…”, continuou Cristina.

“O chefe dizia: ‘ou você muda agora, ou depois terá problemas’. E além disso, nos enganaram porque disseram que iríamos ter uma boa pensão, pelo menos igual ou maior do que a gente já tinha. Circunstâncias que, imagine, hoje em dia nós conseguimos 20% a 30% do salário. Chegamos a uma renda econômica que é degradante. Degradante”, concluiu Juan Lira.

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