Se a Lei Eloy Chaves, de 1923, inaugurava um tempo de utopia para os trabalhadores, a EC nº 103/2019 significa, sem dúvida, um tempo de distopia previdenciária.
Filipe Costa Leiria
Fonte: Sul21
Data original da publicação: 24/01/2020
No dia 24 janeiro de 2020, talvez estejamos comemorando o dia da previdência mais paradoxal da história brasileira. A data faz alusão à sanção do decreto 4.682/23, conhecido popularmente como Lei Eloy Chaves. Os jornais, à época, noticiavam efusivamente o início do desenvolvimento do sistema previdenciário brasileiro. No Jornal O Brasil de 1923 é possível encontrar o seguinte trecho “nova fase na solução da questão social entre nós, vindo estabelecer para nossas classes trabalhadoras um programa prático de reedificações positivas”. Existia um contexto de desenvolvimento, preocupação com a questão social e a classe trabalhadora. Estava sendo lançada a semente de um sistema de seguridade social que iria florescer mais adiante com a Constituição Federal de 1988, em um modelo de concepções sociais democratas, no sentido de viabilizar direitos mínimos de proteção a trabalhadores. Um sistema com avanços importantes, mas que não alcançou grande parte da população brasileira.
No dia 12 de novembro de 2019, quase um século após a Lei Eloy Chaves, uma semente distinta foi lançada: o Senado Federal promulga a Emenda Constitucional nº103/2019. Inspirada no controverso modelo chileno, encontra-se, nos jornais, opiniões sobre a reforma dando conta que temos um sistema previdenciário oneroso, formado por privilegiados do serviço público, onde as mudanças demográficas impõem como única solução a redução de despesas. A reforma lança as bases para uma mudança estrutural na previdência brasileira: a privatização de parte do sistema previdenciário, através da capitalização da previdência complementar dos servidores públicos. A ideia de capitalizar integralmente o sistema, ou privatizá-lo por completo, compunha o projeto original mas não passou. Contudo, é um desejo acalentado por setores influentes da sociedade brasileira. O tempo e as coalizões de força dirão se essa semente irá florescer.
Como compreender esse período de um século entre sementes previdenciárias tão distintas em termos ideológicos?
São diversas as abordagens possíveis, porém uma delas é essencial para um país com desigualdades de renda abjetas, ocupando a posição de 4º maior desigualdade de renda: quão inclusivo é o sistema previdenciário e para onde ele caminha? A EC nº 103/2019 não traz mecanismos que enfrentem objetivamente a massa de quase 5 milhões de pessoas desalentadas (pessoas que desistiram de procurar emprego), conforme aponta o IBGE (PNAD trimestral de maio/2019). Tampouco com um desemprego de 12,5 milhões de pessoas. Sequer a precarização das relações de trabalho que só fazem a informalidade crescer, onde 11,8 milhões de pessoas não trabalham com carteira assinada e 24,4 milhões trabalham por conta própria. Além disso, onera essencialmente os trabalhadores de baixa renda: dos R$ 800 milhões de pretensa economia, mais de 90% virá dos mais pobres. O argumento dos defensores da reforma aproxima-se de um conto de fadas para adultos: o mercado crescerá e vai gerar emprego e renda. Contudo, ninguém se compromete ou responsabiliza-se caso o feitiço não der certo.
Parece ficar fácil identificar privilegiados quando o objetivo é socializar a miséria. Como compreender uma previdência que abre mão de incluir esses trabalhadores num sistema previdenciário, gerando contribuições que viabilizem sua sustentabilidade? Para além das razões eminentemente econômicas, como negligenciar a materialização de um direito básico como a previdência social para quem trabalha? Que tipo de atividade econômica cabe em um país que ocupa o 2º lugar no ranking de maior concentração de renda, onde conforme a ONU, os 10% mais ricos concentram 41,9% da renda total do país.
Finalmente, se a Lei Eloy Chaves para os trabalhadores inaugurava um tempo de utopia, a EC nº 103/2019 significa sem dúvida um tempo de distopia previdenciária. A pauperização dos idosos chilenos não representa alento para o caminho que emenda aponta. A “questão social”, a consideração com a “classe trabalhadora”, impressas nos jornais de 1923, que já vinham desbotando ao longo do tempo, com a recente reforma da previdência parece que sumiram. Esse 24 de janeiro de 2020 deixa uma dúvida distópica: a previdência está no começo do fim ou no fim do começo?
Filipe Costa Leiria é Auditor Público Externo do TCE-RS; vice-presidente do CEAPE-Sindicato e secretário-geral da União Gaúcha em Defesa da Previdência Social e Pública (UG).