Ao mesmo tempo em que o Brasil vive o agravamento da pandemia de coronavírus, com recordes diários de mortes, segue em alta a discussão sobre um suposto conflito entre medidas para salvar vidas ou a economia.
Sob o discurso de que medidas que restringem a circulação são prejudiciais à economia, o presidente Jair Bolsonaro chegou a acionar o Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar derrubar medidas de governos estaduais que colocaram restrições de circulação diante do agravamento da pandemia.
Agora, mais de um ano depois do início da pandemia, o que podemos concluir sobre essa suposta dicotomia, ao analisar o que aconteceu em termos de mortes e perdas econômicas nos diferentes países do mundo em 2020?
O economista Francisco Ferreira, professor da cátedra Amartya Sen de desigualdade e diretor do Instituto de Desigualdade Internacional na London School of Economics (LSE), no Reino Unido, diz que esse dilema só existe em nível individual — ou seja, para o trabalhador que tem que decidir se sairá de casa para ganhar o sustento da família.
Não é, no entanto, uma dicotomia para os governos, segundo Ferreira, que foi diretor de Política para Desenvolvimento do Banco Mundial, onde atuou por mais de 20 anos.
“Acho interessante essa questão do trade-off (conflito de escolha) entre o econômico e o sanitário porque acho que ele existe do ponto de vista individual. O indivíduo que tinha que tomar decisão de sair como trabalhador informal ou ficar em casa, aquela pessoa de fato vivia um dilema entre proteger sua saúde e botar comida na mesa”, disse Ferreira, em entrevista à BBC News Brasil.
Do ponto de vista do governo — ou seja, que deve estar pensando na sociedade como um todo —, ele diz que parece não ter havido esse dilema.
“As contrações econômicas foram maiores para os países que tiveram maior mortalidade per capita. Ou seja, as taxas de mortalidade e as taxas de contração da economia estão positivamente correlacionadas, e não negativamente: os países que perderam mais economicamente foram os mesmos que perderam mais em termos de mortalidade, na média.”
Com outros três economistas, vinculados ao Banco Mundial e à Universidade de Oxford, Ferreira elaborou um estudo que analisa a quantidade de anos perdidos para a mortalidade prematura e a quantidade de anos passados na pobreza devido à pandemia, procurando padrões de como isso aconteceu nos diferentes grupos de países.
A estimativa é de que, até dezembro de 2020, quase 20 milhões de anos de vida foram perdidos para a covid-19 no mundo. Esse tipo de cálculo é feito considerando a chamada expectativa de sobrevida (ou seja, a quantidade de anos a mais que se espera que viva uma pessoa que já alcançou uma determinada idade).
Além disso, no mesmo período, pela definição mais conservadora, a pandemia foi responsável por mais de 120 milhões de anos adicionais na pobreza, segundo o artigo.
O estudo, ainda inédito, atualiza resultados encontrados pela equipe em artigo publicado no site do Banco Mundial em meados de 2020.
“O que aprendemos (sobre lockdown) é que o importante era agir rápido, forte e cedo. Como a Coreia fez, que conseguiu bloquear cedo. Essa era a resposta fundamental. No ponto em que a coisa escapa e se dissemina pelo país, meio que o lockdown ou não lockdown acabam, parece, em termos econômicos, fazendo menos diferença do que você imaginaria. Em termos de saúde, obviamente o lockdown ajuda, desde que seja cumprido.”
Questionado se o Brasil teria tido condições de agir rápido, o economista diz que o problema no Brasil foi de condução política e cita “a ausência de vontade e de decisão política do governo Bolsonaro para agir”.
Neste domingo (21/3), no Brasil, mais de 200 economistas, banqueiros, empresários e ex-autoridades do setor público assinaram uma carta aberta com críticas à atuação ao governo Bolsonaro na pandemia, cobraram mais vacinas, máscaras gratuitas e medidas de distanciamento social e refutaram o “falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerável”.
Auxílio emergencial
Em relação ao combate à pobreza, Ferreira, que participou da elaboração do Bolsa Família, destaca a importância do pagamento do auxílio emergencial no Brasil em 2020 e defende uma discussão sobre como será feita uma transição de política emergencial para “um sistema mais permanente de proteção social”.
“Não pode ficar acumulando um benefício em cima do outro sem considerar os incentivos que isso gera. Precisa fazer um redesenho de forma coerente.”
O professor da LSE diz que retomar o pagamento do auxílio emergencial é “fazer a coisa certa” e aponta os riscos de a medida ser usada de forma política.
“Devemos continuar exigindo que o governo faça essas transferências, porque é certo, mas o ideal seria o governo e a imprensa não permitirem que uma pessoa — o presidente Bolsonaro ou seja lá quem for — use aquilo de forma populista e eleitoreira, no sentido de dizer que tudo é mérito dele. Isso tem que ser evitado. Agora, é uma coisa difícil de evitar. Populistas, em quaisquer países, ricos ou pobres, tentam se beneficiar dessas políticas de maneira eleitoral. É um risco.”
E o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não se beneficiou politicamente por ter lançado o Bolsa Família, até hoje símbolo da gestão petista?
“O Lula também se beneficiou eleitoralmente de criar programas de transferência, com certeza. E na época eu dizia exatamente isso que estou dizendo agora. As pessoas diziam ´ah, esse Bolsa Família é só uma política populista para beneficiar o Lula´. E eu dizia: beneficia o Lula, mas beneficia porque ele está fazendo a coisa certa. No caso agora, o Bolsonaro também. Minha opinião dos dois é diferente, mas se ele tiver fazendo a coisa certa, aquilo vai beneficiá-lo eleitoralmente, é inevitável.”
Importância do Estado
No início da pandemia, apesar de todos os efeitos ruins, Ferreira considerou que a situação poderia representar uma oportunidade para repensar o contrato social estruturalmente desigual na América Latina.
Agora, questionado sobre o tema, ele diz que “a vontade sempre é falar da oportunidade perdida”, mas considera que houve, em menor grau do que ele desejaria, “um movimento na direção de compreender melhor a importância do Estado como instrumento para gerir risco e para gerir choques desse tipo”.
Como exemplo deste fenômeno em outros países, Ferreira cita o estímulo fiscal de US$ 1,9 trilhão do governo dos Estados Unidos como um movimento de ampliar a importância do Estado como distribuidor.
“Chamar isso de renegociação do contrato social pode ser um pouco otimista, mas vai na direção de uma compreensão de que as pessoas e os mercados, sozinhos, não conseguem lidar com crise dessa magnitude. Grandes crises, grandes choques exógenos como esses requerem uma agregação de risco que é o que o Estado pode fazer”, disse.
No Brasil, segundo ele, o auxílio emergencial foi nessa direção e “trouxe todo um debate de renda mínima” que estava esquecido.
Novas e velhas desigualdades
Sobre a tão falada frase da pandemia — “estamos todos no mesmo barco” —, Ferreira aponta que é um mito (“porque a pandemia claramente cria e exacerba desigualdades”). Mas, ao mesmo tempo, diz que “enfatizar isso talvez possa ser parte do esforço de mudar aquele contrato social, de dizer: olha, deveríamos estar todos no mesmo barco”.
“É uma frase normativa: nós deveríamos estar indo nessa direção.”
Na prática, o que acontece, segundo Ferreira, é um misto de novas desigualdades com reforço das já existentes.
“A pandemia cria desigualdade no sentido em que traz grande recessão, então os jovens que estão se formando e entram no mercado de trabalho em um período desse, as consequências disso vão segui-los ao longo de muito tempo. Sabemos disso por estudos anteriores. Essa é uma desigualdade que não existia, entre a pessoa que se formou em 2019 e a que se formou em 2020.”
O pior, no entanto, está no reforço de desigualdades que já existem, segundo ele — como o abismo entre a criança que estuda em uma boa escola privada e a que ia para uma escola pública mediana. Ou no mercado de trabalho, entre o trabalhador com maior escolaridade e maior rendimento que pode continuar trabalhando de casa e o trabalhador que precisa sair de casa, que sofre tanto o risco de contágio maior, quanto a chance de ver mais vagas de trabalho fecharem, o que tende a gerar redução no salário.
E existe uma geração mais prejudicada?
“É difícil dizer, porque a pandemia afeta faixas etárias diferentes de maneiras diferentes. Os mais velhos são os que mais sofrem em termos de risco de mortalidade. Em termos de perda de renda, é pior para quem está no mercado de trabalho. Em termos de rendimento futuro, é pior para crianças pelo efeito que está tendo na escolaridade e na evasão escolar.”
O que ele diz é que, considerando mercado de trabalho e escolaridade, o principal efeito da pandemia vai será sentido no futuro, com o que está acontecendo com escolaridade infantil. “A quantidade e seriedade dessa perda a gente ainda não está quantificando.”
Fonte: BBC News Brasil
Texto: Laís Alegretti
Data original da publicação: 22/03/2021