Um projeto destinado a um embate frontal com o projeto de desconstrução do atual estado social, em curso no Brasil, teria de ser construído pelas instituições da sociedade civil, visando a disputa imediata de corações e mentes no espaço público, para servir desde logo à resistência democrática às reformas já iniciadas.
Rogério Viola Coelho
Fonte: Sul21
Data original da publicação: 15/10/2019
1. O avanço do projeto de estado mínimo
Os movimentos reformistas destinados ao desmonte do estado do bem-estar social nos países centrais avançam amparados nas proposições da doutrina liberal elaborada na Universidade de Chicago na década de sessenta, para a consumação do estado mínimo. Eles vinham prosperando na periferia do sistema com base na doutrina do choque, até que prosperou como exceção no Brasil pela via institucional, a partir de 2015.
Estes movimentos são considerados imperativos de salvação nacional, com frequentes chamadas dos economistas liberais das universidades públicas, para atestar a sua cientificidade. Os discursos postulam a liberação do mercado do peso e do controle do Estado, a supressão dos gastos públicos desmedidos, que pressiona uma carga tributária já excessiva para o funcionamento da economia.
Com base neste diagnóstico são impostas políticas de ajuste imperativas, visando a redução drástica e o desmonte dos serviços públicos destinados a efetivação dos direitos sociais. (Em entrevista recente em que anunciava liberação de depósitos fundiários visando um modesto estimulo ao consumo, o Ministro Guedes, perguntado por que não o fez já no inicio do ano para conter o aumento do desemprego, respondeu sem volteios que não adotara esta medida antes para sustentar a crença da sociedade da necessidade inadiável da reforma da previdência, em curso no Congresso).
O discurso libertário da Instituição do Mercado, ao mesmo tempo que pavimenta a redução e a contenção do Estado, atende ao objetivo subjacente de impedir a queda da sua legitimidade, em decorrência da perda substancial e irreparável da sua capacidade de geração de trabalho, que foi crescente ao longo dos séculos anteriores, com o advento das duas primeiras revoluções industriais.
Em face dos avanços tecnológicos verificados nas últimas décadas, vai ficando evidente que o mercado deixará de gerar ocupação para a maior parte da população em escala mundial, perdendo aceleradamente a legitimidade que lhe permitia conter a intervenção do Estado na economia. A nova era, já iniciada, anuncia uma inevitável devastação dos postos de trabalho e a incontornável perda de legitimidade do mercado.
2. O projeto de um Novo Estado Social contraposto ao do Estado Mínimo
O fracasso do mercado frente ao avanço da revolução digital, legitima e exige do Estado que assuma a função de gerar trabalho em grande escala além de induzir o mercado a produzir novas ofertas de trabalho, compatíveis com a nova sociedade que tem novas necessidades diferentes do trabalho “vivo” tradicional. E isso só é possível com uma intervenção de novo tipo na economia, naturalmente planejada para um novo modo de vida: com a preservação da natureza, para a reconstrução de áreas degradadas, para educação técnica, para novos tipos de produção comunitária, para o cuidado com os idosos, as crianças e os de capacidade diminuída.
O fundamento deste projeto seria o cumprimento pelo Estado da missão de assegurar a todos o exercício dos direitos sociais fundamentais – o primeiro deles o direito ao trabalho. Conforme atesta o Preâmbulo da nossa Constituição, a missão imposta ao Estado democrático instituído pela soberania popular, na sua manifestação mais elevada – o momento constituinte – foi a de “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade,…” E o postulado que impõe aos poderes constituídos a iniciativa de gerar as organizações e procedimentos necessários a realização do direito ao trabalho para os integrantes da comunidade nacional é o princípio da solidariedade, um princípio fundamental que constitui um dos objetivos fundamentais da república. (artigo 3º)
O direito ao trabalho – consagrado nas declarações universais de direitos e no umbral da Constituição – como o primeiro dos direitos sociais fundamentais, deixará de exigir apenas a atividade limitada do Estado, passando ela a ser imperativa relegitimando a sua intervenção na economia para induzir e gerar trabalho, mais além das medidas cosméticas de atribuição de renda sem trabalho, para os muitos milhões de sobrantes, medidas que já se evidenciaram insuficientes para a integração do indivíduo na sociedade.
Considerando a existência evidente de relevante interesse coletivo, a intervenção do Estado está autorizada expressamente pela nossa Constituição. O artigo 170, que abre o Título VII, dedicado a Ordem Econômica, estabelece que ela “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” e consagra entre os seus princípios “VIII – a busca do pleno emprego”. E o artigo 173 autoriza a exploração direta de atividade econômica para atender a “relevante interesse coletivo”.
Um tal projeto, destinado a um embate frontal com o projeto de desconstrução do atual estado social, em curso no Brasil, teria de ser construído pelas instituições da sociedade civil, visando a disputa imediata de corações e mentes no espaço público, para servir desde logo à resistência democrática às reformas já iniciadas. Mas visará mediatamente induzir partidos, sujeitos e movimentos políticos próximos ao povo a assumir o protagonismo necessário no processo político, Para a composição de um novo estado social – correspondente a era que se inicia de redução superlativa dos postos de trabalho, agora ele próprio devendo ser o gerador e organizador de trabalho para os milhões de sobrantes.
3. A força material para a implementação do projeto
O projeto em gestação não poderia contar com a exuberante força material dos movimentos dos trabalhadores, em ascensão no curso do século XX, por isto mesmo terá de construir uma força material transformadora, contando de inicio só com os movimentos sociais emergentes, com as minorias organizadas e com instituições sociais não vinculadas aos grupos de interesses, uma vez que os sindicatos definham atrelados a um sistema sindical acuado pelo governo.
Importa dizer que a esquerda, que no auge do leninismo se serviu dos modelos tayloristas de produção industrial, sem controle social, para acelerar a produtividade nas estatais soviéticas, deverá criar, para este novo modelo social produtivo, uma nova concepção para a teoria da empresa, com a seguinte materialidade: a) previsão e regulação de empresa pública de caráter não-estatal; b) de empresas cooperativas de prestação de serviços de alta tecnologia; c) de empresas privadas de interesse público; d) de regulação de formas de controle público da administração das empresas estatais típicas.
Naturalmente o modelo segue um caminho diferente do socialismo soviético, como foi o estado do bem estar social, edificado no continente europeu no século XX, mas os próprios militantes que alimentam aquela velha fé na vinda do socialismo, prometida pelas “leis da história”, estarão motivados para defender o novo projeto, propagando-o como um “caminho” ou um “programa de transição”, ou ate mesmo uma mediação histórica para chegar àquela sociedade “do comum”. Mãos e mentes à obra!
Rogério Viola Coelho é advogado trabalhista, formado pela Universidade Federal de Santa Maria, especializado em temas relativos aos servidores públicos.