Delinear os “Direitos Sociais 4.0” é um motivador para trazer concreção aos direitos sociais e às concepções de trabalho decente que foram construídos até hoje.
Alberto Bastos Balazeiro e Afonso de Paula Pinheiro Rocha
Fonte: Conjur
Data original da publicação: 14/11/2022
O noticiário recente aponta a ocorrência de demissões em massa numa seara que usualmente se pensava como tendo um apetite infindável por posições e postos de trabalho — o setor de tecnologia.
A empresa Meta, anteriormente Facebook, dispensou 11 mil trabalhadores em um movimento global, sem qualquer informação prévia, representante aproximadamente 13% de toda a força de trabalho. Não está sozinha no movimento: outra big tech, o Twitter também procedeu com dispensas coletivas.
Assim, podemos dizer que a mística associada a um setor de “empregabilidade plena”, no qual a mão de obra qualificada e posta em evidência e capaz de negociar condições nas quais surgem nômades digitais e um modelo de vida próprio das novas gerações também tem seus lampejos de insegurança e do medo associado ao desemprego e a falta de fontes de renda para sustento próprio e da família. Interessante verificar que parte das matérias jornalísticas colacionam mensagens em redes sociais dos próprios trabalhadores dispensados e não são tão qualitativamente díspares das mesmas postagens de outras categorias que sofrem dispensas em massa.
Esse contexto coloca em evidência que há um certo entusiasmo com um “Capitalismo 4.0”, “Indústria 4.0”, “Sociedade 4.0”, mas não há uma equivalente atenção teórico-doutrinária com um consectário lógico do que deveriam ser “Direitos Sociais 4.0”.
Pode parecer um tanto despropositado refletir sobre mais uma ontologia ou categoria de direitos sociais na contemporaneidade quando a nossa sociedade ainda se depara com desafios mais basilares como o trabalho escravo contemporâneo, trabalho infantil e condições inseguras de trabalho em uma pletora de setores e atividades. Todavia, os desafios não equacionados do passado e do presente não podem ser justificativas para que não se comece, desde já, a buscar alguns delineamentos mínimos do que deveriam ser “Direitos Sociais 4.0” e um “Trabalho Decente 4.0”.
De fato, evidencia-se oportuno resgatar a Declaração da Organização Internacional do Trabalho sobre os princípios e direitos fundamentais no trabalho em trecho essencial na qual aponta que “a justiça social é essencial para garantir uma paz universal e permanente”.
Trata-se de trecho que ecoa a própria gênese da Organização internacional do Trabalho destacando que as disparidades sociais e a indignidade no trabalho são fatores que geram divisão e conflitos não só entre trabalhadores e detentores de capital, como entre grupos dentro de nações e entre as próprias nações.
Talvez seja esse um tema essencial para se refletir. Direitos sociais historicamente estão no centro de convergência de movimentos históricos, da interação humana e funcionam como pontos de consenso afetos à própria dignidade humana. Não seria inadequado dizer que eles convergem para um senso de união que permite a confiança recíproca entre as pessoas, trabalhadores e empreendedores. Para outros autores são o ponto de compromisso social que permite uma manutenção continuada do próprio sistema capitalista.
Então, dentro de um esforço reflexivo, o que poderíamos derivar para um debate inicial sobre esses “Direitos Sociais 4.0”?
Possivelmente a primeira resposta esteja dentro da concepção de dignidade dos dados associados aos trabalhadores. Com efeito, se uma das marcas desse momento “4.0” é a existência de uma sociedade informatizada, o manejo de dados pessoais no ecossistema digital parece ganhar uma prevalência constitucional. Ponto de reforço dessa tese é a recente Emenda Constitucional nº 115/2022 que trouxe ao artigo 5º da Constituição Federal o expresso direito fundamental à proteção de dados, avançando no direito fundamental autônomo e implicitamente positivado tratado pelo Supremo Tribunal Federal no bojo do ADI 6.387 MC-Ref/DF.
Nessa toada, a Lei Geral de Proteção de Dados é um grande marco, mas não é minudente em questões trabalhistas e, mais que isso, um direito fundamental social para além de marcos normativos, precisa de políticas públicas e movimentos institucionais para sua concreção. Entendemos que é necessário refinar a tutela dos dados dos trabalhadores através de políticas de proteção, repressão de usos indevidos e mesmo garantias de participação nos benefícios decorrentes de sua utilização e/ou comercialização por parte de empregadores. Essa dignidade dos dados dos trabalhadores, como inerente a esses “Direitos Sociais 4.0”.
A hiperconectividade tem se manifestado além da tecnologia da informação propriamente dita para ser, inclusive, uma característica do modelo produtivo global. Efeitos disruptivos das cadeias globais de produção afetam o trabalho na ponta e vida dos trabalhadores. Assim, “Direitos Sociais 4.0” talvez devam ser concebidos em face não apenas de empregadores específicos, mas em face de toda a cadeia econômica produtiva, interligada em estrutura de uma rede contratual estável.
No campo do direito civil e do consumidor, muito já se fala da responsabilidade das cadeias produtivas em face do consumidor. Fica, portanto, a indagação: existe alguma dignidade substancialmente diferente entre um consumidor e um trabalhador dentro de nossa moldura constitucional, em que não se admita a derivação de deveres anexos decorrentes da boa-fé e função social do contrato para amparar uma dignidade do trabalho em face da cadeia econômica de produção?
Dessa forma, emerge clara a necessidade de reconhecer que alguma parcela de responsabilidade das chamadas “cadeias globais de valor” se traduz em direitos sociais transnacionalizados e difusos em face da própria estrutura de produção global. Em termos práticos, faz-se necessário explorar ainda as formas dessa responsabilização ou imposição de deveres anexos.
Outro ponto essencial que também se liga aos movimentos globais de produção e se relaciona com direitos sociais é a questão ambiental, já que a indústria “4.0” está mais ciente de seus impactos ambientais. Com efeito, é interessante recordar que ao tempo deste artigo, a “COP 27” segue apontando desafios hercúleos para a comunidade internacional e a necessidade de movimentos para uma economia mais verde e com menor pegada de carbono.
A questão ambiental parece ser até ser de uma apreensão mais fácil da relevância em face dos claros efeitos climáticos adversos, porém não se deve esquecer que os próprios efeitos da mudança climática afetam sobremaneira a realidade dos trabalhadores. Por exemplo, refugiados do clima também geram uma situação de trabalhadores migrantes transnacionais.
Ademais, a transição para uma “economia verde” pressupõe também uma alocação de trabalhadores em postos de trabalho verdes. O ponto que se busca argumentar aqui é que a sustentabilidade ambiental terá que invariavelmente dialogar com uma sustentabilidade do meio ambiente laboral, dada a interdisciplinaridade dos direitos sociais.
Assim, em uma conclusão preliminar de um tema que se acredita merecer uma progressiva atenção e destaque tanto na academia jurídica como na praxe forense, podemos elencar alguns pontos:
a) é de todo oportuno pensar como a contemporaneidade e as mudanças em processos produtivos e industriais, o “4.0”, reflete sobre os direitos sociais;
b) a dignidade do trabalho em uma sociedade virtualizada pressupõe a valorização tanto das informações produzidas pelos trabalhadores como de sua “dignidade em seus dados”. Necessário se faz avançar na discussão de como a LGPD e toda a concepção atual de direitos fundamentais associados a dados se reflete no Direito do Trabalho;
c) a hiperconectividade também admite uma projeção de reflexão sobre as cadeias globais de produção e as próprias redes contratuais formadas para viabilizar os empreendimentos econômicos. Assim, “Direitos Sociais 4.0” devem ser pensados para além da mera expectativa de observância de direitos sociais em uma relação binária em face de um empregador específico, mas de uma forma a realmente dar concreção à efetividade horizontal desses direitos fundamentais também em face das múltiplas redes contratuais formadas, derivando-se, conforme o caso, deveres anexos também em face dos trabalhadores;
d) a “economia verde” e sua almejada sustentabilidade, não deve ser pensada sem derivar uma “sustentabilidade” do próprio trabalho humano, sendo o bem-estar ambiental laboral parte essencial dessa engenharia de transformação dos modelos de produção.
Evidentemente, cuida-se apenas uma reflexão inicial, mas centrada na ideia de que os Direitos Sociais não devem ser nunca esquecidos e que a sua constante reconfiguração diante dos contextos da contemporaneidade não apenas ajuda na sua evolução, como permite colocar em majorado relevo o contraste com os problemas históricos, evidenciando, ainda mais, a necessidade de medidas concretas. Pensar que temos que delinear os “Direitos Sociais 4.0” também é um motivador para trazer concreção aos direitos sociais e às concepções de trabalho decente que foram construídos até hoje.
Alberto Bastos Balazeiro é ministro do Tribunal Superior do Trabalho, ex-procurador-geral do Trabalho e mestre em Direito (UCB).
Afonso de Paula Pinheiro Rocha é procurador do Trabalho, pós-doutorando e doutor em Direito pela Unifor, MBA em Direito Empresarial pela FGV-Rio e secretário jurídico adjunto do MPT.