Direitos das domésticas entram em fase decisiva

A adoção de novas regras trabalhistas para os empregados domésticos está entrando em uma fase decisiva. Dois anos depois de o Congresso ter promulgado a Emenda Constitucional (EC) 72, que estabeleceu mais direitos à categoria, o Senado voltará a analisar o projeto de lei que diz como a norma vai funcionar na prática e que interessa tanto aos trabalhadores quanto aos patrões.

O projeto de regulamentação foi aprovado pelos senadores em julho de 2013, três meses depois de promulgada a emenda constitucional. A proposta seguiu, então, para a Câmara dos Deputados, que, em março último, também aprovou a proposta, mas com mudanças (leia quadro abaixo).

Por isso, o texto vai passar por novo exame dos senadores e pode receber outras modificações. A análise começará pela Comissão de Assuntos Sociais (CAS), onde será relatora a senadora Ana Amélia (PP-RS).

O Brasil tem cerca de 7,2 milhões de pessoas no trabalho doméstico. São 6,7 milhões de mulheres e 504 mil homens. É o país com o maior número de trabalhadores no setor, segundo estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT), divulgado em janeiro de 2013. A pesquisa mostrou também que cerca de 52 milhões de pessoas ao redor do planeta trabalham na área — 83% mulheres.

Outro levantamento, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgado em 2009, apontou que 61,6% das domésticas no Brasil eram negras. O serviço é de mulher, de negras e informal.

A pesquisa revelou que, naquele ano, apenas um quarto da categoria tinha carteira de trabalho assinada. A remuneração média era de R$ 386,45, inferior ao mínimo, que, em 2009, estava em R$ 465.

Perseguimos cada vez mais um país regido por leis modernas e justas, que não façam distinção entre os trabalhadores que exercem as suas funções em nossas casas e aqueles dos escritórios, fábricas, comércio e tantos outros locais — disse o presidente do Senado, Renan Calheiros, em abril de 2013, na promulgação da EC 72 pelo Congresso.

Entre os novos direitos, estão a definição de jornada de trabalho, pagamento de horas extras e do seguro-desemprego e recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

É considerado empregado doméstico o profissional que presta serviço em residências ou nos prolongamentos das residências por mais de dois dias por semana. A tarefa é proibida a menores de 18 anos e a jornada, fixada em 44 horas semanais e 8 horas diárias.

A seguir, um resumo das novas regras de acordo com o projeto alterado na Câmara.

Hora extra

A remuneração da hora extra será, no mínimo, 50% superior ao valor da hora normal. Se houver um acordo, a empregada poderá trabalhar duas horas a mais por dia. A hora trabalhada a mais pode ser compensada com folgas ou redução de jornada, se patrão e empregada concordarem. Esse pagamento, contudo, deve acontecer em até três meses. Se isso não ocorrer, o empregador terá de pagar o valor da hora adicional mais 50%.

Almoço e 12 horas

Os empregados domésticos têm direito a, no máximo, duas horas de almoço. Em caso de entendimento, o intervalo pode ser reduzido a meia hora, mas apenas se a jornada for compensada no mesmo dia. Assim, quem optar por esses 30 minutos, poderá trabalhar sete horas e meia.

Quando a jornada for de seis horas diárias, será obrigatório um descanso de 15 minutos depois da quarta hora.

A proposta de regulamentação traz ainda a possibilidade de um regime de trabalho de 12 horas seguidas, com 36 horas de descanso. Essa possibilidade é extensiva aos vigilantes.

Dormir no trabalho

A proposta também trata dos empregados domésticos que dormem no trabalho ou que acompanham os patrões em viagens. Quando a funcionária estiver de sobreaviso, durante a noite, essas horas devem ser remuneradas com um terço a mais que a hora normal. Em caso de viagens, a hora trabalhada deve ser 25% maior do que a regular.

Férias e FGTS

O empregado tem direito a 30 dias de férias após cada período de 12 meses de trabalho. Sobre as férias deve ser pago um abono de um terço do valor do salário normal. As férias podem ser divididas em dois períodos, sendo um de, no mínimo, dez dias corridos. O trabalhador doméstico tem direito à inscrição no FGTS, nas mesmas regras dos demais trabalhadores.

Simples

O projeto determina ainda a criação de um regime unificado de pagamento de todas as contribuições e demais encargos. O Simples Doméstico deve ser regulamentado em 120 dias após a publicação da futura lei complementar. Com esse novo Simples, por meio de uma mesma guia, serão recolhidos os encargos tanto dos empregados quanto dos trabalhadores.

A contribuição do patrão para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) continua a ser de 12%. Além disso, o empregador deverá pagar 8% de Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

Elas acordam antes do sol

Quase todo dia ela faz tudo sempre igual. Amanhece antes do sol e às 5h30 está a caminho do ponto de ônibus. Mora em Valparaíso (GO), no Entorno do Distrito Federal. Reclama do engarrafamento que a faz chegar atrasada à casa dos patrões, na Asa Sul, no Plano Piloto de Brasília. Leva umas duas horas nessa jornada, que considera um inferno. Por volta das 16h30, volta para casa. Outras duas horas em ônibus lotado.

Eva de Ferreira tem 55 anos. Conta que trabalha como doméstica desde quando se entende por gente, mas só teve a carteira de trabalho assinada em 1988. A partir daí, foi sempre registrada nos empregos por que passou. Realidade, segundo ela, diferente da de muitas amigas.

— Graças a Deus eu sempre tive patrões muito bons e compreensíveis, mas já conheci muita gente que faz de empregada escrava — relata.

A doméstica tem acompanhado pela televisão e pelo rádio as notícias sobre as mudanças nas regras trabalhistas para a categoria e deseja que elas virem lei logo.

Wanda dos Santos está nessa lida desde os 10 anos, quando ainda vivia no interior do Piauí. Para fugir da miséria extrema, veio para Brasília há mais de três décadas. Conta que, nos últimos anos, a relação de trabalho melhorou muito, mas já viveu a experiência de ser tratada em condições similares à escravidão.

— Tem muita gente que acha que doméstica é trabalho escravo. Muitos obrigam a trabalhar de domingo a domingo. Muitos patrões no Piauí não sabem o que é 13º salário nem férias — protesta Wanda.

Para representante da categoria, avanços não trazem desemprego

Fotografia: Rafael Carvalho/Agência Senado
Fotografia: Rafael Carvalho/Agência Senado

Quando o Congresso promulgou a proposta de emenda à Constituição que assegurou aos empregados domésticos direitos trabalhistas equivalentes aos dos demais trabalhadores, foi quase um deus nos acuda. Havia a expectativa e o temor de que as novas regras pudessem resultar em demissões em massa, mas a previsão não se concretizou, como assegura o secretário-geral da Fenatrad, Francisco Xavier.

O sindicalista explicou que, por conta desse “rebuliço” inicial e em função da falta de informações, muitas patroas demitiram as empregadas antigas para contratar novas.

>— Fizeram isso porque achavam que teriam que pagar os direitos retroativos para as trabalhadoras que estavam há muitos anos no serviço. As patroas que não tinham a situação regular imaginavam que teriam que fazer de forma retroativa. Houve algumas demissões, mas depois do esclarecimento essas mesmas empregadas foram recontratadas — disse Xavier.

O consultor do Senado Marcello Cassiano compara as reações à Lei das Domésticas a quaisquer outras alterações em direitos trabalhistas. Reforça que mesmo a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), que é um decreto de 1943, ainda é alvo de resistências. Isso não significa, de acordo com ele, que a legislação não deva ser aprimorada.

— A CLT é uma lei que deveria ser geral, mas os pesquisadores e estudiosos sabem muito bem que o índice de informalidade do trabalho no país é altíssimo. A legislação do trabalho doméstico também corre esse risco em face do natural aumento de custos, afirmou o consultor.

Preocupação é fortalecer o trabalhador sem inviabilizar contratações

O senador Romero Jucá (PMDB-RR), que foi relator da primeira proposta de regulamentação aprovada em 2013 pelo Senado, anunciou a possibilidade de alterações no texto modificado pela Câmara. Para Jucá, é preciso que a contratação não fique muito mais cara para o empregador.

— O aspecto principal é não onerar a contratação. Nós temos que ter uma equação que dê suporte para a família poder contratar e regularizar a situação dos empregados domésticos — disse.

O parlamentar espera que o projeto, que passou dois anos para ser votado na Câmara, tenha uma análise mais acelerada no Senado. Segundo ele, trata-se de uma prioridade, uma vez que os direitos devem ser assegurados por uma legislação específica.

Um dos aspectos do texto que devem ser mais discutidos pelos senadores é o que trata do FGTS. A proposta que veio da Câmara prevê que as normas, nesse caso, sejam as mesmas já observadas para os demais trabalhadores. A redação aprovada anteriormente no Senado trazia algumas diferenças para, justamente, não pesar muito no orçamento dos empregadores.

A preocupação de Jucá é compartilhada pelo consultor do Senado Marcello Cassiano. Ele auxiliou a elaboração do texto aprovado no Senado e acredita que a proposta original era mais equilibrada no que diz respeito aos custos trabalhistas.

— Agora cabe ao Senado definir se mantém o padrão da Câmara ou se restaura o equilíbrio que existia no projeto que saiu do Senado — disse.

Apesar das possíveis alterações, Cassiano aposta que o Congresso vai reescrever a história do trabalho doméstico no Brasil. Lembra que a função sempre foi vista como não tendo regras. De acordo com ele, os patrões, especialmente os que vivem fora dos grandes centros urbanos, estavam habituados a ignorar qualquer direito.

— Os patrões podiam exigir jornadas extenuantes e tudo isso sob o pretexto de o empregado doméstico ser um membro da família. O empregado doméstico é um trabalhador igual a todos e merece os mesmos direitos previstos na Constituição federal. É claro que respeitado o fato de ele exercer o serviço na casa de alguém. Então, é natural que haja algumas diferenças que o Congresso está tentando equalizar nesses projetos de lei que versam sobre o trabalho doméstico.

Se o assunto são direitos, o secretário-geral da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Francisco Xavier, disse que a categoria prefere a proposta como foi aprovada na Câmara. Ele explicou que a luta histórica é pela equiparação das regras trabalhistas.

— A gente não quer nem mais nem menos. A nossa luta ao longo desses 80 anos é pelos direitos iguais. A gente considera um retrocesso o texto que saiu do Senado. Se for mantido, iremos lutar, inclusive alegando a inconstitucionalidade da proposta— avisou.

A deputada Benedita da Silva (PT-RJ) também defendeu a manutenção do texto que saiu da Câmara. Em discurso no Plenário daquela Casa, disse que o texto recebeu sugestões de trabalhadores, sindicalistas, além de deputados e setores do governo federal.

— Portanto, de nossa parte, não há interferência naquilo que não é devido a nós. Apenas, enquanto parlamentares, levantamos essa bandeira nesta Casa desde 1988 e trouxemos para cá este debate — declarou Benedita.

As propostas de cada Casa

Veja as principais diferenças entre o primeiro projeto de regulamentação aprovado pelo Senado há dois anos (PLS 224/2013) e o texto, já com alterações feitas pela Câmara, que agora volta para nova análise dos senadores (SCD 5/2015)

PLS 224/2013 SCD 5/2015

HORA EXTRA

O pagamento de hora extra pode ser substituído por folgas, mediante acordo escrito entre empregador e empregado, se o excesso de horas de um dia for compensado em outro dia. O saldo de horas que excederem as 40 primeiras horas mensais será compensado no período máximo de um ano. O pagamento da hora extra pode ser dispensado se, segundo acordo escrito, o excesso de horas trabalhadas em um dia for compensado pela correspondente diminuição da jornada em outro dia. Isso deve acontecer no período máximo de três meses, respeitada a soma das jornadas semanais de trabalho previstas.

VIAGEM

Quando o empregado acompanhar o empregador prestando serviços em viagem, apenas as horas efetivamente trabalhadas no período serão consideradas. As horas extras podem ser compensadas em outro dia. O valor da hora do serviço em viagem será, no mínimo, 25% superior ao valor do salário-hora normal. Se houver acordo, as horas extras podem ser convertidas em banco de horas, a ser usado a critério do empregado. O empregado que dormir, morar ou acompanhar os patrões em viagens estará de sobreaviso quando, fora da jornada normal de trabalho, permanecer aguardando, a qualquer momento, o chamado para o serviço. Essa possibilidade deve ser combinada por escrito. O valor da hora de sobreaviso será de um terço a mais da hora normal. A remuneração da hora trabalhada quando o empregado estiver em viagem para acompanhar o empregador ou sua família será acrescida de 25% sobre a hora normal.

INTERVALO

O intervalo para repouso ou alimentação deve ter, no mínimo, uma hora e, no máximo, duas. Um acordo por escrito pode reduzir esse período para 30 minutos. No caso de empregado que more no local de trabalho, o intervalo poderá ser desmembrado em dois períodos, desde que cada um deles tenha, no mínimo, uma hora, até o limite de quatro horas ao dia. Nas jornadas superiores a seis horas, é obrigatório um intervalo mínimo de uma hora e, a não ser que exista um acordo por escrito ou negociação coletiva, não poderá exceder duas horas. Nas jornadas inferiores a seis horas, será obrigatório um intervalo de 15 minutos quando a duração ultrapassar quatro horas. Os intervalos de descanso não serão computados como hora de trabalho. Se houver acordo, o intervalo pode ser de 30 minutos, mas deverá ser compensado com redução da jornada de trabalho.

FGTS

É devida a inclusão do empregado doméstico no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), na forma de regulamento a ser editado pelo Conselho Curador e pelo agente operador do FGTS. O empregador somente será obrigado a promover a inscrição e recolher a contribuição para o FGTS após o regulamento entrar em vigor. O empregador depositará o equivalente a 3,2% sobre a remuneração devida a cada trabalhador. Esse dinheiro será usado para o pagamento da indenização compensatória da perda — sem justa causa ou por culpa do empregador — do emprego do trabalhador doméstico. Nos casos de dispensa por justa causa ou a pedido, de término do contrato de trabalho a prazo determinado, de aposentadoria e de falecimento do empregado doméstico, os valores equivalentes a 3,2% serão movimentados pelo empregador. Os valores equivalentes a 3,2% serão depositados na conta vinculada do trabalhador e somente poderão ser movimentados por ocasião da rescisão contratual.

Fonte: Agência Senado
Texto: Larissa Bortoni
Data Original da publicação: 14/04/2015

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