Direito ao trabalho infantil?

O presidente boliviano promulgou uma lei que permite que uma criança possa, legalmente, começar a trabalhar por conta própria aos 10 anos. Ou seja, considerou que o trabalho infantil era uma realidade e que continuava a ser necessário. Considerou mal e a Bolívia acabou por aprovar uma lei e um princípio que é um retrocesso.

Moisés Ferreira

Fonte: Esquerda.net
Data original da publicação: 22/07/2014

O presidente boliviano em exercício promulgou a Ley 548, Código Niña, Niño y Adolescente, deixando palavras dúbias sobre a mesma. Dizia Garcia Linera (que assumiu interinamente a presidência do país enquanto Evo Morales estava de visita oficial ao Brasil): ‘Esta é uma lei que representa um justo equilíbrio entre realidade e direitos, direitos e convenções internacionais’.

A lei prevê, entre muitas outras coisas, o endurecimento de penas sobre infanticídios, abandono de crianças, violação e escravização de crianças e adolescente; prevê que as crianças e os adolescentes não sejam julgados como adultos, havendo instituições, penas e mecanismos de reinserção próprios e prevê ainda apoios à adoção.

Entre tantas propostas surge uma que incomoda, e muito! A idade legal para se poder começar a trabalhar é 14 anos. No entanto, uma criança pode, legalmente, começar a trabalhar por conta própria aos 10 anos depois de autorização dada pelas Defensorías de la Niñez e Adolescencia, ou a partir dos 12 anos por contam de outrem, se com autorização dos pais.

Percebe-se agora por que razão Álvaro Garcia Linera dizia que a Lei era um equilíbrio entre direitos e realidade. Ou seja, considerou que o trabalho infantil era uma realidade e que continuava a ser necessário. Considerou mal e a Bolívia acabou por aprovar uma lei e um princípio que é um retrocesso.

Faz lembrar o adágio popular salazarento que se ouviu em tempos em Portugal: ‘o trabalho do menino é pouco, mas quem não o aproveita é louco’. Era um adágio que dizia aos mais pobres para usarem as crianças como mão de obra e que, por via disso, condenou tantos e tantos ao analfabetismo, à iliteracia e a uma vida perpétua de pobreza.

A justificação do Governo de Evo Morales esteve próxima desse adágio: disse que a legalização do trabalho infantil espelhava a realidade boliviana e que pretendia ajudar a aumentar os rendimentos das famílias mais pobres.

Justificações à parte, há vários problemas que subsistem:

1. Se existem várias famílias que vivem na pobreza e necessitam de aumentar os seus rendimentos, então as respostas deveriam passar pelo aumento de salários, pelo pagamento justo aos agricultores e pequenos produtores e pelo apoio estatal para irradicação da pobreza, nunca pela legalização da prática de trabalho infantil;

2. A via da saída para pobreza só pode ser com mais direitos e não com a eliminação do direito à infância, à escola, à educação e com o recurso à exploração de trabalho infantil e barato;

3. A aposta na educação e na formação é a melhor política para, a médio e longo prazo, romper com a cronicidade da pobreza. Ora, o trabalho infantil e a permissividade para com ele perpetuará o analfabetismo e as baixas qualificações e perpetuará a pobreza junto das famílias que já são pobres.

Calcula-se que na Bolívia existam 850.000 crianças que trabalham. É um problema social de enorme dimensão que seria necessário combater e não regulamentar. A injustiça e a exploração não se regulamentam, combatem-se!

Moisés Ferreira é Dirigente do Bloco de Esquerda. Psicólogo e mestrando em Psicologia da Formação Profissional e Aprendizagem ao Longo da Vida.

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