O problema das emissões monetárias feitos pelos Estados não é de gerarem inflação, mas sim de elevarem a concentração de riquezas.
Pedro Rozales
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 26/10/2021
Eleutério Prado, professor de economia da USP, é um dos melhores economistas marxistas do Brasil. Recentemente escreveu o texto “Poderá o dinheiro salvar o capitalismo? tratando das possibilidades de que a emissão de dinheiro por parte dos Bancos Centrais possa conter o surgimento e o aprofundamento de novas crises. No texto aparecem alguns elementos um pouco técnicos e de difícil entendimento. Por isso escrevo alguns comentários sobre o tema para problematizar alguns dos pontos levantados por ele, em total concordância com suas ideias centrais.
O autor faz um debate crítico com uma tendência em alta no debate econômico atual: a de que com um “relaxamento monetário” é possível mitigar a crise econômica. Esse debate voltou à tona (primeiro na imprensa, depois na academia) em decorrência da crise aprofundada pela pandemia do coronavírus.
Em primeiro lugar, o que ele chama de “relaxamento monetário”, nada mais é que a emissão de dinheiro por parte dos Bancos Centrais. A crítica, entre os economistas “vulgares” (como ele mesmo chama e que se incluem praticamente todos os economistas com voz na mídia) é que a emissão de dinheiro provoca o aumento da inflação. Estes “economistas vulgares” têm em mente a Teoria Monetarista (TM). Eleutério não diz no texto, mas a matriz teórica por trás desta TM é a Teoria Quantitativa da Moeda (TQM) que parte do pressuposto que a quantidade de moeda em circulação em uma dada sociedade é fixa e estável.
Este modelo teórico, contudo, é utilizado ainda hoje na condução da política monetária por parte do Banco Central (BC), tanto do Brasil, quanto na maioria dos países ocidentais. Esta é a ideia que está subjacente para as autoridades que operam a política monetária: que o BC tem condições de controlar a quantidade de moeda na sociedade.
Na realidade, a ideia é mais complexa que isso, mas o pressuposto acaba chegando aí. Isso, aos poucos, está começando a ser reconhecido como algo ultrapassado. Até por parte de alguns destes “economistas vulgares” [1]. Como entre eles existem inúmeras diferenças, também é difícil enquadrá-los todos como signatários da Teoria Monetarista. Eles, em geral, aceitam que a taxa de juros pode controlar a demanda e, consequentemente, a inflação. Com a elevação da taxa de juros, o BC teria condições, teoricamente, de reduzir a procura pelo crédito. Com a redução da demanda por crédito, a quantidade de dinheiro em circulação também diminuiria. Com menos dinheiro circulando, a inflação tenderia a cair. A inflação, porém, depende de vários e outros fatores. Inclusive do rendimento que das distintas classes em cada conjuntura.
Em segundo lugar, e a crítica que Eleutério faz a estes economistas “vulgares” não chega nessa explicação, mas é bom destacar: a quantidade de moeda em circulação em dada sociedade não é fixa, mas ao contrário, é elástica. Os BCs emitem dinheiro (no Brasil isso recebe o nome de “base monetária”), e esse dinheiro que é criado na conta corrente de um seleto grupo de grandes bancos (estatais e privados) que se relacionam com o BC é duplicado, triplicado, multiplicado “n” vezes. Ou seja, os BCs criam dinheiro, mas estes grandes bancos multiplicam a base monetária (que nada mais é do que essa criação primária de moeda). Os bancos “emissores”, na realidade, não dependem da ampliação da base monetária para multiplicar o dinheiro em circulação. Por isso, podemos fazer uma alegoria segundo a qual os bancos emissores criam “do nada” uma quantidade de dinheiro, que por sua vez é colocado em circulação na sociedade.
Parte do dinheiro criado retorna aos Bcs, como Eleutério indica no texto. Nesse caso, esse dinheiro que retorna ao BC é cancelado. Mas aqui, ele funciona não como capital, e sim como meio de circulação. E ele circula continuamente, saindo do BC e parte dele retornando (ou seja, sendo cancelado) diariamente.
Outra parte do dinheiro criado pelos bancos emissores financiará a produção e circulação de mercadorias e serviços. Mas parte considerável, principalmente em períodos de crise e contração de capital (como o que vivemos), será direcionada para o circuito financeiro. E terá, nos próprios bancos (inclusive aqueles com relacionamento com o BC), o destino dessa massa de dinheiro criado.
Por fim, Eleutério chama a Teoria Monetarista de “asneira mantida secularmente pela teoria econômica vulgar”, no que ele tem razão. Ele demonstra que a inflação não é causada pela oferta abundante do meio circulante (ou seja, do dinheiro). Mas sim, pelo aumento da demanda efetiva (que é a “busca pelas famílias e empresas de bens escassos”). Na realidade, a Teoria Monetarista inverteu a lógica das coisas, e passou a colocar como fator predominante a oferta de dinheiro para o fenômeno do aumento da inflação. Outros elementos concorrem para que a inflação aumente em dada sociedade: moeda fraca, posição dependente em relação às economias imperialistas e, claro, queda na taxa de extração de mais valia (o elemento por trás de todas as grandes crises econômicas o que faz com que, na realidade, elas sejam apenas a expressão deste elemento).
Vale ainda lembrar que o dinheiro cumpre várias funções nas sociedades mercantis desenvolvidas (e o capitalismo é só a mais recente delas): ele é meio de circulação, padrão de preços, medida do valor, reserva de valor e, no caso das sociedades capitalistas, ele também funciona como capital. O dinheiro adquire várias formas: ele pode ter a forma de dinheiro de papel (que é chamado de “papel moeda de curso forçado”), pode ter a antiga forma metálica (ouro, prata, cobre, etc), pode ser ainda anotação de crédito e débito entre atores econômicos (o que irá possibilitar o surgimento histórico do “dinheiro de crédito”, que desenvolverá, por sua vez, outras funções do dinheiro que tanto o papel quanto a moeda não tinham a capacidade de desenvolver), e pode ser ainda operação contábil eletrônica (entre bancos, empresas e pessoas físicas e, com o próprio Estado).
Existe também uma diferença conceitual entre o dinheiro e a moeda. Pode-se dizer que as moedas são expressões particulares e históricas do dinheiro. Que elas têm peso e nacionalidade (dólar, libra, euro, real, peso argentino, chileno, etc, etc). Mas o dinheiro, além de ser moeda, liberta a moeda de suas “amarras” particulares e históricas. Ou seja, de sua “roupagem”, de sua forma histórica. Do ponto de vista dialético, o dinheiro é uma categoria. Neste sentido, deve ser compreendido sob a ótica abstrata e concreta. No nível abstrato, o dinheiro pode desenvolver todas aquelas funções. No concreto, ainda fica preso a algumas delas.
Quando os bancos emissores emitem moeda, dizemos que, na realidade, eles estão emitindo dinheiro. E apenas parte desta massa nova de dinheiro, funcionará como meio circulante. Outra parte irá se acumular sob a forma do dinheiro passando a funcionar como capital, que retorna aos bancos e acelera e aprofunda o surgimento de novas crises. Daí, também, a metáfora que Eleutério empresta de Skidelsky: a de que esta emissão de dinheiro por parte do Estado funciona tal qual uma “droga milagrosa que cura uma doença macroeconômica que ela própria causa”. A doença não é que a emissão de moeda aumenta a taxa de inflação (pois ela, sozinha, não tem condições de provocar o aumento inflacionário), mas sim que injeta mais dinheiro em uma economia que não tem condições de absorvê-lo produtivamente (pelas suas próprias características internas). Neste sentido, este dinheiro “novo” que é criado e multiplicado “n” vezes, vai sendo absorvido no circuito financeiro aumentando a especulação e alimentando o capital fictício.
Nota
[1] Não foram poucos os economistas que defenderam, no auge da pandemia do novo coronavírus, que o Estado tinha a possibilidade (bem como o dever) de acelerar a emissão de moeda para conter a crise. Veja, por exemplo, o que disse Henrique Meirelles, em abril do ano passado. (Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2020/04/08/meirelles-defende-imprimir-dinheiro-contra-crise-coronavirus-risco-nenhum-de-inflacao.htm>. Acesso em 16 de outubro de 2021). André Lara Resende, que não pode ser considerado um “economista vulgar”, também tinha escrito, em 2019, um ótimo texto para o jornal “Valor Econômico” desmontando também esta ideia: a de que o controle orçamentário e da emissão de moeda poderiam conter a inflação. (Disponível em: <https://valor.globo.com/eu-e/coluna/andre-lara-resende-escreve-sobre-razao-e-supersticao-do-deficit.ghtml>. Acesso em 16 de outubro de 2021).Pedro Rozales é doutor em Política Social (UFES) e professor de sociologia do Ensino Médio da rede estadual do Espírito Santo.