Uma legislação específica que responsabilize as empresas pelos problemas em suas cadeias produtivas não seria suficiente para solucionar, por si só, as violações de direitos humanos que acontecem no Brasil. Participantes do terceiro dia de encontros do seminário “Transparência na cadeia produtiva: rumo à devida diligência?”, ocorrido em 31/08 enfatizaram a necessidade de olhar o amplo contexto brasileiro ao pensar em novas regras e normas para a responsabilização de empresas.
Impunidade, omissão governamental, concentração de poder econômico e racismo estrutural devem ser levados em conta ao criar e elaborar regras sobre a chamada da devida diligência obrigatória em direitos humanos – ou seja, a obrigação de que as empresas levem em conta a proteção e promoção de direitos humanos em todas as suas atividades e operações.
O processo de discussão sobre novas normas tem que ser acompanhado de uma campanha de conscientização no país para que ela seja adotada com efetividade. Esse é o ponto de vista de Mércia Silva, diretora-executiva do InPACTO (Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo). “Precisamos de uma nova estratégia, porque não podemos simplesmente jogar outras leis. Estamos ignorando que as pessoas que tomam decisões nas empresas estão desatualizadas”, disse.
É necessário alertar o meio corporativo sobre a importância de adotar práticas de devida diligência, e um modo para isso é prever que as empresas valorizem os trabalhadores. “Quando é que a agenda de direitos humanos vai estar ali? Já ouvi um produtor de café dizendo que têm medo de ficar sem mão de obra para colheita com o aumento de tantos empregos tecnológicos. Tratar bem o empregado, pagar bem, significa manter a sustentabilidade de alguns setores.”
Caso empresários não fiquem cientes da necessidade de mudar práticas, afirmou Silva, uma nova regra sobre devida diligência pode sofrer os problemas pelos quais passa a “lista suja” do trabalho escravo — que enfrenta dificuldades para produzir mais impacto. O cadastro, mantido pelo governo federal, traz o nome de empregadores flagrados usando de escravidão contemporânea e prevê sanções. Ainda assim, inclui muito menos infratores do que aqueles autuados de fato.
“O tempo passou e a gente tem percebido que não tem havido aprendizado, quando a gente olha as práticas das empresas. Talvez, porque a gente ainda não tenha focado em soluções reais. A gente fala dos problemas, e quando olha para resolver os problemas estamos perdendo território”, observou a diretora do InPACTO.
Racismo e descriminação devem ser levados em conta
A advogada Júlia Mello Neiva, coordenadora do programa de desenvolvimento e direitos socioambientais da Conectas Direitos Humanos, disse que o contexto vivido no Brasil dificulta a efetividade de uma lei específica sobre devida diligência. Ela mencionou as tentativas do governo federal desmanchar instrumentos de proteção a direitos humanos e garantias trabalhistas. “A destruição desses marcos legais dificulta muito que a gente tenha uma melhora de conduta por parte das empresas”, afirmou.
Além disso, segundo ela, as características do país precisam ser levadas em conta para formular novas regras. “O racismo estrutural pauta a nossa sociedade, a discriminação de raça, gênero e classe. Quando a gente faz essa discussão, a gente não pode pensar em equivalência de poder entre as partes. As empresas têm muito mais poder, muito mais influência sobre o Estado, e essa relação, que é muito complexa, pode, é claro, colocar em risco trabalhadores e trabalhadoras”, declarou.
O esvaziamento do cumprimento da lei, na prática, leva certas exigências a não implicar em resultados, de acordo com a advogada. “Há impunidade no setor corporativo. Muitas vezes, as penas impostas às empresas não são cumpridas. Há uma sensação de impunidade que faz com que as corporações continuem desrespeitando a legislação.”
Neiva ainda disse que uma nova regra precisaria não só melhorar mecanismos legais já previstos nacional e internacionalmente, mas incluir incentivos. “Essas questões precisam ser tratadas de forma séria e inovadora. Talvez pudéssemos pensar em uma legislação que contemplasse, em alguma medida, as preocupações de sigilo comercial que as empresas sempre alegam, mas colocar também uma forma de elas se interessarem em adotar medidas de transparência”, concluiu.
Trabalhador rural deve ter visibilidade
Pessoas empregadas no campo estão entre as principais vítimas de violações de direitos, de acordo com Gabriel Bezerra Santos, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar). Ele afirmou que as discussões sobre devida diligência precisam dar visibilidade a estes trabalhadores. “É uma categoria que produz alimento, que é essencial. Ela tem um papel fundamental, e a sociedade precisa protegê-la e valorizá-la.”
O representante da Contar lembrou que, historicamente, empregados rurais se encontram em uma situação mais frágil. Disse que, quando a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) foi promulgada em 1943, não incluiu essa categoria. Inclusive, também mencionou que as melhorais em favor dos trabalhadores rurais não perduram. “Chegamos a construir um compromisso salarial para o setor, mas foi desconstruído pelo governo Michel Temer”, recordou.
Santos também afirmou que, enquanto a legislação não avança, os sindicatos rurais vem tentando recorrer à Justiça trabalhista para solucionar problemas. No entanto, essa é uma frente de atuação limitada. “Os acordos coletivos tentam repor alguns déficits, tentam mediar e auxiliar os trabalhadores, mas nos últimos tempos tem sido difícil. O ataque governamental é muito forte, e a retirada de direitos vem de forma intransigente”, observou.
“Precisamos chegar a um consenso e ter políticas que resguardam. Tem empresa com trabalho escravo exportando e dizendo que produz com qualidade e excelência, mas você vai olhar a qualidade de vida dos trabalhadores e eles têm jornadas de 12 horas, sem condições de segurança e com baixa remuneração”, acrescentou, reiterando que os empregos rurais se encontram na posição mais frágil das cadeias produtivas.
Leis estão sujeitas às relações de poder na sociedade
Para que uma lei de devida diligência obtenha resultados, o coordenador de setor privado e direitos humanos da Oxfam Brasil, Gustavo Ferroni, afirmou que ela não pode cair em formulações generalistas. “Existem instrumentos, precisamos consolidar práticas, gerar jurisprudência, a despeito da dificuldade de produzir uma legislação progressista. Mas não podemos ficar na primeira camada. Temos que lembrar que existem questões mais profundas e estruturais que afetam a vida dos trabalhadores rurais e dos povos do campo.”
Ele disse que a legislação precisa tocar em pontos que mudem de fato a situação laboral. Mencionou a regularização do trabalho por safra, a desigualdade entre homens e mulheres no campo e as normas que regulamentam as condições de trabalho. Ele exemplificou a importância disso ao mencionar um trabalhador de cana de açúcar, que chega a dar “130 mil golpes com podão para a colheita, abaixar e levantar 800 vezes, andar oito quilômetros.” A partir desse exemplo, Ferroni mencionou que é necessário problematizar o ganho por produtividade, um mecanismo de exploração bastante sofisticado.
“Quando a gente fala em criar legislação, a gente tem que lembrar que as leis vão estar sujeitas às relações de poder que existem na sociedade, tanto na sua formulação quanto na sua aplicação. Os procuradores, advogados e os juízes que aplicam a lei não vão vir de Marte e cair aqui. As empresas têm muito poder. Não existe solução mágica. Não basta repetir que a gente precisa de uma lei e ignorar isso”, acrescentou.O seminário “Transparência na cadeia produtiva: rumo à devida diligência?”, realizado nos dias 17, 24 e 31 de agosto, foi organizado pelo Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos, Conectas Direitos Humanos, Iniciativa Cristã Romero, e Repórter Brasil, com apoio do Ministério Federal da Cooperação Econômica e do Desenvolvimento (BMZ) da Alemanha.
Fonte: Repórter Brasil
Texto: Guilherme Zocchio
Data original da publicação: 01/09/2021