Atual ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, possui um plano que resultará na desvinculação dos valores dos benefícios previdenciários do salário mínimo. Mas o que de fato significa isso?
Deise Lilian Lima Martins
Fonte: Le Monde Dipomatique
Data original da publicação: 23/05/2024
É importante entender que os valores dos benefícios previdenciários são corrigidos anualmente com base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), apurado pelo IBGE, e não acompanham o reajuste do salário mínimo. Então, considerando este ano como exemplo, o reajuste do salário mínimo em janeiro foi de 6,97% (Decreto nº 11.864/2023), enquanto o reajuste dos benefícios foi de 3,71% (Portaria MPS/MF nº 2/2024). Dessa informação decorrem dois pontos importantes.
O primeiro deles é que essa disposição atrai como consequência o rebaixamento dos valores dos benefícios que são concedidos com cifras acima do salário mínimo. Ou seja, em alguns anos, considerando a não correspondência do índice com o reajuste do salário mínimo, os benefícios acabam sendo achatados ao valor do próprio salário mínimo.
Disso decorre o segundo ponto. A nossa Constituição atualmente determina que nenhum benefício que substitua a remuneração do trabalho terá valor mensal inferior ao salário mínimo. Significa que no processo de concessão de um benefício, se o cálculo resultar em valor inferior, este será elevado ao valor do salário mínimo, passando, portanto, a obedecer o reajuste aplicado anualmente ao mínimo. Pode parecer algo incomum, mas não é: em muitos casos o cálculo dos benefícios resulta em montante inferior ao piso previdenciário.
O projeto incompleto de achatamento dos benefícios previdenciários
A forma de cálculo dos benefícios previdenciários é um tema complexo, que envolve médias aritméticas, porcentagens, entre outros componentes relativos ao campo atuarial, incompreensíveis a uma pessoa comum que está diante da sua carta de concessão quando um benefício previdenciário lhe é concedido. Certo é que existe um projeto de conformação da forma jurídica previdenciária em curso (Silva, 2021) desde o primeiro respiro da Constituição de 1988 (Martins, 2018).
Para ficarmos apenas em dois grandes exemplos, a fim de que compreendam o que significa o atual debate sobre a desvinculação, temos (i) a criação do famigerado fator previdenciário e (ii) as novas regras de cálculo criadas pela reforma da Previdência de 2019 (Emenda Constitucional nº 103).
O fator previdenciário nada mais é do que uma fórmula matemática criada em 1999 para reduzir o valor das aposentadorias. Ele leva em consideração a idade, a expectativa de sobrevida e o tempo de contribuição da pessoa que vai se aposentar, a fim de que quanto mais “cedo” a pessoa se aposentar, menor será o valor do seu benefício, independentemente de todo o seu suor e desgaste em relação a longos anos de trabalho. Desde então o fator previdenciário vem sendo o grande redutor do valor dos benefícios de aposentadoria.
O segundo exemplo se refere às recentes alterações nas regras de cálculo dos benefícios, promovidas pela última reforma da Previdência. O cálculo dos benefícios possui o que chamo de camadas redutoras que, em linhas gerais, considerando a aposentadoria, leva-se em conta uma média aritmética com base em todos os salários de contribuição do/a trabalhador/a desde julho de 1994, incluindo as contribuições mais baixas (anteriormente se excluíam as 20% menores no período), o que na média resulta na redução do valor final. Ainda, sobre essa média aritmética, o valor do benefício tem por base inicial 60%, não a sua integralidade. No caso das pensões por morte, feito esse cálculo, aplica-se outra vez um redutor em cotas, sendo 50% do valor, mais 10% por dependente, rebaixando ainda o montante final.
Em razão da forma complexa como os cálculos são realizados (entre as várias camadas redutoras existentes), muitos benefícios resultam em valores inferiores ao mínimo e acabam sendo elevados ao mínimo, exclusivamente, em razão da determinação constitucional. Ocorre que esse projeto está inconcluso, falta a cereja do bolo: a desvinculação do valor dos benefícios do salário mínimo.
Qual o estado atual do debate?
Para compreendermos a amplitude e a gravidade do atual debate sobre a desvinculação do valor dos benefícios do salário mínimo, é necessário entender qual o cenário de concessão dos benefícios. Dados compilados no Boletim Estatístico da Previdência Social (BEPS) apontam que 67% dos benefícios pagos correspondem ao valor de 1 salário mínimo, com referência a fevereiro de 2024, e desse montante, cerca de 70% são benefícios previdenciários (BEPS, 2024).
Além disso, um fator a ser considerado é que o maior grau de precarização e informalidade nas relações de trabalho acarretam na redução da vinculação e do aporte de contribuições das trabalhadoras e trabalhadores com contribuições para a Previdência (Silva; Martins, 2024), as quais, se forem realizadas, dificilmente estarão acima do valor mínimo. Nesse sentido, sendo bastante otimista, caso venham a contribuir e quiçá terem direito a receber algum benefício previdenciário no futuro, certo é que o terão com base no salário mínimo, pois não haverá condições reais de contribuir com valores altos, resultando, assim, em benefícios com prestações rebaixadas. E com os avanços da precarização das relações de trabalho, a tendência é que essa realidade aumente significativamente ao longo dos anos.
Esses apontamentos revelam que atualmente a maioria dos benefícios concedidos pela Previdência Social tem por base o valor do salário mínimo, com a tendência de aumentar no futuro, observando os mesmos índices de reajuste do mínimo, não do INPC. Qualquer política de valorização do salário mínimo que seja realizada pelo governo precisará encarar o aumento, sob o mesmo índice de reajuste, do valor de cerca de 70% dos benefícios pagos no geral, cuja maioria é de natureza previdenciária. Um dos mecanismos de popularização dos governos é a valorização do salário mínimo, porém, na situação atual ela vem acompanhada da pressão relacionada aos gastos da Previdência Social. Então, como articular uma agenda de valorização do salário mínimo se ela esbarra no aumento dos gastos com os benefícios previdenciários?
Por essa razão têm crescido os rumores sobre os riscos para o futuro da Previdência Social (Martins, 2024), bem como rapidamente surgem propostas de desvinculação dos benefícios do salário mínimo. E nesse contexto surge a notícia de que a ministra Simone Tebet está mirando essa medida.
Consequências da desvinculação e o caso do Chile
Considerando que cerca de 70% dos benefícios concedidos possuem renda mensal de 1 salário mínimo e que a atualização pelo INPC costuma não acompanhar as atualizações do mínimo, é certo que haverá uma enorme catástrofe para o patamar protetivo previdenciário das trabalhadoras e trabalhadores, especialmente para as pessoas que ao longo de sua vida contributiva aportaram baixos valores. E essa desvinculação será grave não apenas se considerarmos cada segurado da Previdência, mas será muito mais grave para famílias inteiras que dependem dos benefícios previdenciários para sobreviver (Silva, 2024).
Uma medida dessas não poderia encontrar espaço no cenário de precarização das relações de trabalho, mas considerando as necessidades do atual estágio do modo de produção capitalista (Correia, 2021), perfaz-se como o momento de conformação do conteúdo normativo para a adequação às novas formas de exploração da força de trabalho. Com a consolidação dos efeitos da referida reforma trabalhista e sua projeção na Previdência Social, já teremos um futuro de desproteção de uma parcela imensa de trabalhadoras e trabalhadores, e com a desvinculação dos benefícios do salário mínimo a tendência é piorar. Isso porque se hoje os benefícios concedidos são em sua maioria no valor de 1 salário mínimo, a tendência é que com a precarização das relações de trabalho esse número aumente exponencialmente.
Então, a desvinculação dos benefícios do salário mínimo terá como consequência uma imensidão de trabalhadoras e trabalhadores que receberão da Previdência, após anos de trabalho árduo e precarizado, valores inferiores ao salário mínimo.
Para termos uma noção mais concreta sobre essas consequências, é imprescindível trazer a situação da classe trabalhadora chilena que é, sem sombra de dúvidas, o caso que precisamos analisar. Um recente estudo da “Fundación Sol” – centro de investigações no Chile que se propõe a produzir conhecimento crítico e ações para potencializar as lutas sociais – denominado “Pensiones bajo el Mínimo”, apontou um cenário preocupante em relação ao montante de benefícios que possuem valores inferiores ao mínimo.
Entre os vários enfoques da pesquisa, ressalta-se que quase 85% das pensões pagas são menores que 1 salário mínimo. Ainda, mais de 60% das pessoas que recebem pensão se encontram abaixo da linha da pobreza para lares unipessoais (Gálvez, et al, 2024). Como consequência disso, mesmo se cumpridos os requisitos para obter o valor ínfimo da “Pensión Garantizada Universal” (PGU), a população necessita continuar trabalhando por longos anos, mesmo sendo idosos, no intuito de aumentar o montante das suas contas individuais antes de se aposentar ou então continuar trabalhando mesmo após a sua aposentadoria (Fuentes, 2018; Luna, 2020).
Importante frisar que no Chile vigora o sistema de capitalização individual, operada pelas Administradoras de Fundos de Pensão (AFPs), por meio das quais se constituem contas individuais e o montante aportado ao longo da vida laborativa é revertido em pensões após o cumprimento de determinados requisitos. Ocorre que, considerando o reduzido potencial de aportes individuais pelas trabalhadoras e trabalhadores, somando-se às taxas de administração das AFPs, resultam saldos pequenos e, consequentemente, benefícios com valores irrisórios. E como as pensões não são vinculadas ao salário mínimo chileno, grande parcela da população acaba tendo como pensão valores muito inferiores, que chegam a ser cerca de 40% do salário mínimo (Gálvez, et al, 2024).
Esse cenário torna a experiência chilena uma referência de análise crítica sobre qualquer proposta de desvinculação dos benefícios do salário mínimo. Isso porque a precarização das relações de trabalho não é uma realidade apenas brasileira, sendo o aumento da informalidade uma tendência da América Latina. No caso do Brasil essa situação ocasiona, igualmente, no menor potencial contributivo, mas reflete na sistemática de cálculo dos benefícios, resultando em valores inferiores ao salário mínimo.
Com isso, a ausência da vinculação dos benefícios ao salário mínimo, especialmente no contexto em que há solidariedade social no financiamento da seguridade social, é assombrosa e acarretará prejuízo irreversível para a “proteção social” no Brasil.
A cereja do bolo está por vir
Com a maior precarização das relações de trabalho e o aumento do contingente de trabalhadoras e trabalhadores informais, o cálculo do valor dos benefícios dificilmente resultará em montante acima do salário mínimo. Por consequência, ocorrendo a desvinculação em questão, a “proteção social” ganha mais um passo para o seu fim. Os ataques à Previdência Social nunca cessam e a base de uma nova reforma começa dessa maneira. O projeto de achatamento dos benefícios se iniciou com a instituição do fator previdenciário, chegou a um novo ápice com a reforma da Previdência em 2019, porém, ainda falta a cereja do bolo, ou seja, desatrelar os benefícios do salário mínimo. Essa é a destruição da Previdência Social em curso.
Deise Lilian Lima Martins é mestre e doutoranda em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Centralidade do Trabalho e Marxismo da USP e professora assistente no Grupo de Estudos sobre Seguridade e Marxismo da USP. Autora do livro Mulheres e Previdência Social: equivalência e crítica à forma jurídica. Atualmente realiza Intercâmbio na Universidade do Chile. Contatos: @deisellmartins | deisellmartins@gmail.com.