Persiste na mídia especializada a memória de uma só política como causadora de um fenômeno tão complexo quanto a desindustrialização.
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva
Fonte: GGN
Data original da publicação: 13/09/2022
Se há algo que incomoda muito no jornalismo econômico é a tendência de explicar os fatos como tendo uma só causa. Se nas ditas ciências exatas, é preciso supor condições ideais de temperatura e pressão, nas ciências sociais, que englobam a Economia, a multiplicidade de variáveis é ainda mais gritante. Daí Léon Walras ter introduzido, mesmo que indiretamente, a ideia de modelo. Trata-se da seleção das variáveis mais importantes, ou mais significativas, na construção de um fato. Mesmo assim, reconhece-se que não é possível abranger todos os ângulos e dá-se o nome de “Ceteris paribus” (para o resto parado). Essa técnica espalhou-se por todas as ciência. Cada uma lida com suas formas de construção de modelos, bem como de testar sua aderência com a realidade. É a Medicina por evidências, é a Geologia deduzindo o que está por baixo da terra e assim por diante. O próprio pré-sal foi descoberto via modelos matemáticos desenvolvidos pelos cientistas da Petrobras.
A mídia trata os acontecimentos, em âmbito econômico, como equações com uma só variável. Se há corrupção na Petrobras e ela é estatal, que se privatize; se há uma perspectiva de aumento na inflação, que se tomem medidas contracionistas, tudo muito fácil, tudo muito simples. Ora, se simplório é o indivíduo que tem uma visão reducionista do mundo que o cerca, a imensa maioria dos profissionais do jornalismo é simplória. Um exemplo disso o enunciado da pergunta, na sabatina de 12 de setembro na CNN, ao candidato Lula. Foi sobre como o ele se comportaria diante da necessidade de aumentar gastos, ao mesmo tempo em que o cenário inflacionário a ser herdado pelo presidente eleito requer medidas contracionistas. Não se discute o motivo da provável inflação antes de pressupor que somente medidas contracionistas serão capazes de preservar a moeda.
Da mesma forma, criou-se o mito de que tenha sido a âncora cambial do primeiro mandato de FHC a responsável pela desindustrialização do país. Será que não ouve mais motivos? Será que a âncora cambial foi o maior deles? Em História diz-se que o distanciamento seja capaz de isentar de paixões a visão a partir do presente. Pode não ser o caso. Passados quase trinta anos e persiste na mídia especializada a memória de uma só política como causadora de um fenômeno tão complexo quanto a desindustrialização. Aqui serão elencados dez, alguns internos, alguns externos.
- O ciclo de industrialização intensificou-se a partir da II Guerra e os capitães de indústria, como eram conhecidos os industriais, raramente prepararam sua sucessão, de sorte que a empresa ficava acéfala, ou o sucessor agia intempestivamente, a ponto de levar o negócio à bancarrota. Um exemplo disso foi a própria Semco que, de tanto virar a mesa, tonou-se locadora de galpões. Em outros casos, como o da Tênis Iris, a administração foi interrompida pela morte do empreendedor. Esse tipo de onda é comum em toda economia industrializada, mas como diria Belchior, o novo sempre vem.
- Nos anos 1970, a crise do petróleo interrompeu o milagre econômico e, na ânsia de manter o Brasil como uma ilha de prosperidade, Mário Henrique Simonsen patrocinou a lei 6404/1976. Ela, a fim de atrair capitais, facilitou a conversão de S. A. para empresas limitadas. Imediatamente, as multinacionais presentes fecharam seu capital, desvencilhando-se de seus sócios brasileiros. Foi o caso da VW, separando-se do grupo Souza Aranha. Isso deixou o Estado refém, pois “ir embora” ficou fácil demais e “ficar” dependia de proteção de mercado e benefícios fiscais, o que se encerrou com a abertura de mercado.
- A Lei de Informática criou a CEI (Comissão Espacial de Informática) que impediu a modernização da indústria, deixando-a décadas desatualizada. Um simples computador pessoal chegava a custar tanto quanto um carro médio. Um leitor de discos custava mais que uma geladeira.
- Por conta da crise da dívida externa, importar máquinas e equipamentos era quase impossível. Nâo havia crédito interno pois o Finame minguou e a resolução 63, que regulava as importações de máquinas e equipamentos foi quase extinta. Isso defasou tecnologicamente nossa indústria, tirando-lhe qualquer chance de sobrevivência num mercado aberto.
- Collor arrombou nosso mercado. Em vez de revogar a lei de Informática, reativar a importação de bens de capital e aparelhar nossa indústria para, depois, abri-la, ele começou pelos bens de consumo imediato e duráveis. Importava-se tudo, desde absorventes femininos até embalagens flexíveis para a indústria de alimentos. Empresas que mascaravam a falta de tecnologia via proteção de mercado, viram-se sem chão.
- O estouro da bolha japonesa e os ataques especulativos, aliados a uma desvalorização relativa do dólar, tudo somado aos subsídios dados pelos Estados Unidos aos países do extremo oriente, aniquilaram nosso mercado externo, especialmente, por não se poder mais exportar mão de obra barata.
- O Plano Real jogou para baixo a margem média do varejo. Antes, os supermercados compravam a prazo e vendiam à vista. Com a estabilização da moeda e a popularização dos cartões de crédito, passaram a vender num prazo maior do que o de compra e os consumidores passaram a ter memória de preço, não se dispondo a pagar qualquer valor por qualquer produto. Pelo seu poder de compra, os supermercados apertaram o torniquete da indústria, tirando-lhe a capacidade de financiar sua modernização e induzindo à importação.
- As parcas reservas levaram o Estado a financiar as exportações, no que se chamou de âncora verde, drenando recursos da indústria para a agricultura.
- O capital disponível concentrou-se nas privatizações, notoriamente financiadas pelo BNDES, não sobrando recursos para modernização do parque industrial.
- Finalmente, a âncora cambial, que era irmã da âncora verde, pois, de fato, visando a aprovar a PEC da reeleição, FHC segurou a taxa de câmbio o quanto pôde, o que levou a uma maxidesvalorização no primeiro dia útil do segundo mandato. O dólar estava tão baixo que o industrial remanescente nem apresentava orçamento, partia diretamente para importar.
Como demonstrado no quadro 1 do penúltimo capítulo da série sobre economia comparada, o valor do PIB nominal sobre o em paridade do poder de compra subiu de 21,73% para 27,79%, denotando uma valorização relativa do real em 30%, o que é muito para quem está despreparado para produzir a custos competitivos. Por outro lado, aos olhos do investidor estrangeiro, essa valorização do real foi altamente atrativa, mantendo o influxo de moeda estrangeira no período. Resumindo, sim, a âncora cambial foi má para a indústria nacional; não, não foi ela que desindustrializou o país. Os outros nove motivos são de muito mais longo prazo e de muito mais difícil reversão, como demonstra a História. O mito da âncora cambial deve ser combatido para evidenciar os demais motivos.
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.