Não negamos que o teletrabalho pode constituir-se como uma oportunidade em certas fases dos ciclos de vida. Importa, contudo, ter presente que se trata de uma oportunidade que exclui muitos/as profissionais, não sendo indiferente às desigualdades sociais, incluindo as assimetrias marcadas pelo gênero.
Sara Falcão Casaca
Fonte: Esquerda.net, com Público
Data original da publicação: 07/02/2021
Com a atual crise sanitária, várias/os profissionais ficaram temporariamente em regime de teletrabalho. É sabido que nem todas as profissões são compatíveis com o mesmo, a que acrescem as assimetrias nas condições e nos meios para que o trabalho possa ser realizado a partir de casa. Em Portugal, a expressão tem sido residual, sobretudo quando se trata especificamente da forma contratual de teletrabalho. Na UE, segundo dados da Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de vida e de Trabalho (EUROFOUND), é na Dinamarca que a modalidade se encontra mais disseminada. As razões subjacentes não surpreendem. Entre nós, é ainda evidente o peso de um padrão de especialização produtiva assente em trabalho intensivo, coexistindo com princípios tradicionais de gestão e de organização do trabalho; por conseguinte, encontra-se relativamente difundida a preocupação da gestão com a prestação de trabalho presencial que seja compatível com a supervisão e o controlo direto. O teletrabalho requer, em alternativa, modelos de organização do trabalho assentes na qualificação e na descentralização da autonomia. Exige ainda elevada acessibilidade às tecnologias e literacia digital.
Mas será que o teletrabalho é realmente facilitador da conciliação trabalho-família e da qualidade de vida? E pode estimular uma maior igualdade entre mulheres e homens na distribuição do trabalho pago (profissional) e não pago (doméstico e relativo ao cuidar)?
Um estudo exploratório que realizamos há uns anos permitiu constatar que o controlo sobre o tempo das pessoas em teletrabalho pode ser bastante exíguo. Esta questão colocava-se fundamentalmente no caso das mulheres, cuja autonomia era particularmente reduzida pelos vários constrangimentos familiares e domésticos com que em geral se deparavam. Mulheres e homens evocaram razões distintas relativamente à “opção” pelo teletrabalho: enquanto elas salientaram a necessidade de flexibilidade na gestão do tempo de forma a atender às responsabilidades familiares e profissionais – e a maioria destacou a maternidade e a existência de crianças pequenas como a principal razão -, eles evocaram sobretudo a possibilidade de aumentar a concentração, a eficiência e a produtividade. Muitas teletrabalhadoras-mães, dada a sobrecarga de tarefas domésticas e familiares – e as interferências a este nível -, reportaram ter de trabalhar (profissionalmente) à noite, aproveitando o sono das crianças e sacrificando o seu próprio tempo de descanso. De destacar, ainda, que nem todas dispunham de uma divisão da casa exclusivamente dedicada ao exercício da atividade profissional, sincronizando o tempo e o espaço com o das crianças ou outros/as familiares. Esta contingência, associada à simultaneidade de tarefas, ora domésticas ora profissionais, era percebida como particularmente desgastante. Um dos riscos associados ao teletrabalho, na percepção das pessoas inquiridas, prendia-se ainda com o isolamento social.
Se me atrevo a recuperar estas conclusões (a investigação foi concluída em 2004) é porque muitos estudos atuais apontam no mesmo sentido, ajudando a desmistificar as ilusões relativamente ao teletrabalho (ou ao trabalho à distância em sentido lato). Há poucos dias, a CoLABOR divulgava alguns resultados do estudo sobre a situação presente (Trabalho e Desigualdades no Grande Confinamento), evidenciando que são as mulheres (em teletrabalho) com crianças quem mais relata dificuldade na gestão dos tempos. A este propósito, sugiro também a leitura do estudo conjunto da EUROFOUND e da OIT – Working anytime, anywhere: The effects on the world of work -, de 2017, onde se evidencia que a intensidade de trabalho associada ao teletrabalho (em sentido estrito) ou ao trabalho remoto com apoio de tecnologias móveis (em sentido lato) é superior àquela verificada nos locais de trabalho convencionais, assim como é agravado o potencial de conflito com a vida familiar/pessoal.
Não negamos que o teletrabalho pode constituir-se como uma oportunidade em certas fases dos ciclos de vida. Admite-se que possa ser útil em determinadas circunstâncias, sejam as de natureza excecional (o contexto atual assim o expõe…) sejam as necessidades e imprevistos que ocorrem no plano familiar/pessoal. Importa, contudo, ter presente que se trata de uma oportunidade que exclui muitos/as profissionais, não sendo indiferente às desigualdades sociais, incluindo as assimetrias marcadas pelo gênero. Aliás, pode mesmo reforçá-las. E expõe, uma vez mais, a necessidade de partilha do trabalho não pago (doméstico e relativo ao cuidado) entre mulheres e homens. A minimização dos riscos (e aqui só referimos alguns…) parece recomendar a alternância entre trabalho à distância e presença física nas instalações da entidade empregadora. É aqui que estão (ou melhor, deveriam estar…) as condições de trabalho em igualdade, as oportunidades de socialização e de construção/consolidação da solidariedade coletiva, assim como os momentos formais e espontâneos de partilha de experiência e conhecimento que favorecem o desenvolvimento profissional. Não surpreende, pois, que hoje muitas mulheres e muitos homens estejam a vivenciar as ambivalências do teletrabalho. A expressão de desilusão será – igualmente sem surpresa – moldada pelas desigualdades sociais, incluindo as que têm a marca do gênero.
Sara Falcão Casaca é professora universitária na ISEG-Universidade de Lisboa.