Desigualdade social: esclarecendo a confusão

J. Celso Cardoso Jr.
Eduardo Fagnani

Fonte: Plataforma Política Social
Data original da publicação: 03/10/2014

No Brasil, por quaisquer critérios (fontes de dados e metodologias), as desigualdades sociais, de renda e de riqueza são extremamente altas, tanto historicamente como em comparação internacional.

Neste sentido, são muito relevantes os dois trabalhos recém-publicados por Medeiros, Souza & Castro (2014a e 2014b) com base em dados do Imposto de Renda de Pessoas Físicas (IRPF), até então inacessíveis a maior parte dos pesquisadores. Ambos apontam corretamente para uma situação de estabilidade na distribuição dos rendimentos totais da população brasileira, isto é, quando considerados de maneira mais ampla e fidedigna (embora ainda assim não censitária) os rendimentos do topo da pirâmide social, ou seja, os 0,1%, 1% e 5% mais ricos da população que declararam o IRPF entre 2006 e 2012 no Brasil.

Este é um resultado esperado (diríamos nós, óbvio!) da forma pela qual foram computados os dados de rendimentos totais e de sua distribuição pessoal, pois, de fato, o IRPF captura de forma muito mais próxima da vida real as diversas fontes de rendimentos regulares (sejam eles sujeitos à tributação exclusiva ou isentos e não tributáveis) dessa parcela mais rica da população. É preciso sublinhar que grande parte desses rendimentos não são provenientes das formas clássicas e ainda dominantes de inserção das pessoas no mundo do trabalho (como o assalariamento ou a inserção laboral por conta-própria, etc.). O IRPF também captura as fontes derivadas do não-trabalho direto, vale dizer, decorrentes dos ganhos de capital, lucros, aplicações financeiras, bolsa de valores, alugueis, doações, heranças, etc.

Obviamente, os dados do IRPF expressam mais de perto a realidade econômica dos indivíduos que estão no topo da pirâmide social (os 5% mais ricos) e, claramente, não captam totalmente a posição daqueles que estão na base (os 95% mais pobres). Daí, a explicação dos autores para a relativa estabilidade entre 2006 e 2012 da distribuição dos rendimentos totais da população brasileira. Em outras palavras, a redistribuição de renda positiva em favor dos 95% mais pobres da pirâmide social ocorrida no período recente – fruto da geração de empregos, da valorização do salário mínimo e das políticas sociais de transferência de renda (Seguridade Social e combate à pobreza extrema) – estaria sendo mitigada pelos rendimentos patrimoniais e financeiros dos 5% mais ricos, em função do seu maior peso relativo na composição total dos rendimentos auferidos pelo IRPF.

Isto posto, é preciso alertar que os dados e conclusões dos autores, porquanto corretos e inovadores, não poderiam ser comparados com os cálculos tradicionais realizados historicamente pelo IBGE, seja por meio da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD), da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) e do próprio Censo Demográfico. Isso porque, nesses casos, os cálculos da distribuição da renda levam em consideração basicamente os rendimentos clássicos do mundo do trabalho, o que, de fato, subestima a renda e a concentração de riqueza no país. Ocorre que os determinantes de cada tipo de rendimentos (se provenientes do trabalho ou do não-trabalho) são estruturalmente diferentes entre si. E, como se sabe, os ricos não têm por hábito declarar corretamente nem sua renda nem sua riqueza em pesquisas de qualquer tipo. Em muitos casos, escondem tais informações da própria Receita Federal.

Então, para não comparar alhos com bugalhos, evitando análises meramente contábeis da distribuição de renda no Brasil, é necessário afirmar que a distribuição de rendimentos medida pela PNAD (onde o peso dos rendimentos do trabalho é determinante de primeira ordem e há a já citada subestimação dos rendimentos totais dos mais ricos) vem sim diminuindo no Brasil de forma especialmente virtuosa ao longo da década 2003-2013. De forma virtuosa, bem dito, porque apenas nesta década é que a redução do índice de Gini se deu em simultâneo com taxas de crescimento econômico médias mais elevadas que nas décadas de 1980 e 1990, manutenção da estabilidade monetária, crescimento da ocupação total, formalização dos vínculos de emprego, aumento dos rendimentos reais de praticamente todas as categorias ocupacionais e correspondente aumento das contribuições previdenciárias e da arrecadação tributária de maneira geral. Esta última, sem que para tanto tivesse havido majoração de alíquotas de qualquer tipo; pelo contrário, inclusive com surtos de desonerações, ainda que de eficácia duvidosa.

Por outro lado, é claro que a distribuição total, que considera, além dos rendimentos típicos do trabalho, todas as demais fontes de rendimentos declaradas pelos mais ricos no IRPF, deve estar de fato aumentando no país. Mas não são resultados contraditórios, apenas precisam ser tratados e interpretados de forma tecnicamente adequada, dentro dos marcos de uma abordagem de economia política da distribuição da renda e da riqueza no Brasil. Isso porque não só os determinantes de cada fonte de rendimentos são qualitativamente diferentes entre si, como porque cada qual provém de (e implicam em) políticas públicas de natureza e escopo muito diversas, com grande impacto sobre o debate político-eleitoral em curso no país. Senão, vejamos.

A inequívoca queda da desigualdade dos rendimentos provenientes, sobretudo, do mundo do trabalho, verificada ao longo da última década (2003-2013), é fenômeno inédito e ainda incipiente no país, pois veio associada à aplicação virtuosa de políticas econômicas e sociais específicas e combinadas, tais como: políticas de aceleração do crescimento econômico, valorização real do salario mínimo e sua vinculação à enorme base assalariada do mercado laboral e às políticas de assistência (BPC), previdência social urbana e rural (RGPS) e trabalho (seguro-desemprego e abono salarial), além da política em curso de transferência direta de renda para os mais pobres (bolsa-família e Pronaf, por exemplo), políticas de expansão e diversificação do crédito pessoal e produtivo, etc.

Já a estabilidade ou relativa piora distributiva constatada por Medeiros et alli a partir da inclusão e cômputo de rendimentos provenientes também de outras fontes, é – este sim – fenômeno antigo e mais estrutural da economia brasileira. Muito provavelmente, deve estar em curso há muitos anos no país, não sendo obviamente um fenômeno restrito ao período 2006-2012 estudado pelos autores. Essa situação, contrariamente à outra citada acima, está diretamente associada ao viés rentista e patrimonialista daquela parcela da sociedade brasileira situada no topo da distribuição de rendimentos, cujos 0,1%, 1% e 5% mais ricos se acostumaram a auferir rendimentos mais das aplicações financeiras, juros, bolsa de valores, alugueis, ganhos de capital e ganhos patrimoniais (doações e heranças) do que propriamente do trabalho. É claro que essa fração de classe, se perguntada, dirá que ganha o que ganha pelo suor de seu trabalho!

Bem, tudo somado, o fato é que o poder de redistribuição de renda em curso está perto de ver esgotado o seu potencial transformador, ficando a continuidade desse processo na dependência de políticas públicas de outra natureza. Sem que se possa sequer pensar em abandonar as políticas redistributivas em curso, a questão é que o enfrentamento mais incisivo à abismal desigualdade brasileira apenas se fará possível com políticas de tributação mais ampla e progressiva sobre fluxos e estoques reais e financeiros de renda e riqueza, de um lado, e de outro, com políticas de desenvolvimento produtivo que consigam desfinanceirizar os ganhos rápidos e fáceis do capital rentista, acoplando essa enorme massa de recursos ao circuito do financiamento produtivo, socialmente justo e ambientalmente sustentável.

Do debate eleitoral em curso, cabe perguntar: quem se habilita a enfrentar esta questão?

Referências Citadas

MEDEIROS, M; SOUZA, P; CASTRO, F. O Topo da Distribuição de Renda no Brasil: primeiras estimativas com dados tributários e comparação com pesquisas domiciliares, 2006-2012. Disponível em SSRN: <https://ssrn.com/abstract=2479685>, agosto 2014.

MEDEIROS, M; SOUZA, P; CASTRO, F. A Estabilidade da Desigualdade de Renda no Brasil: 2006 a 2012. Disponível em SSRN: <https://ssrn.com/abstract=2493877>, setembro 2014.

J. Celso Cardoso Jr. é economista pela FEA/USP, com mestrado em Teoria Econômica e doutorado em Desenvolvimento (área de concentração: Economia Social e do Trabalho), ambos pelo IE/Unicamp. Desde 1996 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA, tendo ao longo deste período produzido vários estudos que redundaram no livro Mundo do Trabalho e (Des)proteção Social no Brasil: do governo FHC ao governo Lula – ensaios selecionados em 15 anos (1995/2010) de pesquisa aplicada e assessoramento governamental (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2013).

Eduardo Fagnani é economista, professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho e coordenador da rede Plataforma Política Social – Agenda para o Desenvolvimento (www.plataformapoliticasocial.com).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *