Como enfrentar práticas estruturalmente discriminatórias.
Thayná Yaredy, Adriana Vojvodic, Isabela Del Monde e Manuela Camargo
Fonte: Jota
Data original da publicação: 24/01/2021
O ano de 2020 foi decisivo para que mais setores da sociedade reconhecessem seu papel na luta contra a desigualdade social e racial no mercado de trabalho. Diversas empresas e organizações passaram a buscar formas para integrar práticas de diversidade e inclusão.
As manifestações nacionais e internacionais de que vidas negras importam fizeram com que a perspectiva em relação aos assuntos sobre segurança pública, interseccionalidade e atravessamentos de subalternidade se tornasse foco no mundo todo, norteando, também, ações na seara do trabalho contra as desigualdades que o racismo estrutural promove na vida de pessoas negras.
No Brasil, de acordo com dados do IBGE, 54%[1] da população brasileira é negra. No entanto, de acordo com os dados do mesmo Instituto, boa parte desta população está relegada a trabalhos informais. Isso significa que, grande parcela da sociedade deixa de acessar direitos básicos relacionados à esfera do trabalho.
Além do pouco acesso à formalidade no campo do trabalho, a própria remuneração da população negra, quando comparada com os proventos de pessoas não negras, é bastante desproporcional, mesmo quando considerados os trabalhos formais. Dados do Ipea que analisam a situação de mulheres em empregos formais, com contrato e registro em carteira de trabalho, apontam que mulheres brancas percebem cerca de 76% do salário de homens brancos, enquanto as mulheres negras recebem 46% menos do que homens brancos[2].
O perfil de discriminação observado a partir dos dados do mercado de trabalho expõe as desigualdades de gênero, raça e as intersecções que existem entre esses marcadores de identidade.
Diante disso, é importante levarmos em consideração as estruturas que constituem a realidade de sociedades complexas como a brasileira para que possamos reconhecer que práticas estruturalmente discriminatórias terão impacto, ainda que de forma inconsciente, na forma com que são construídas relações profissionais. Quando compreendemos e passamos a considerar o elemento racial como estrutura basilar de nossos processos de empregabilidade é possível o desenrolar de alguns processos essenciais para seu enfrentamento.
Em primeiro lugar, um debate focado em identificar os efeitos do racismo no mundo do trabalho permite o reconhecimento de quais estruturas de subalternização dificultam o acesso e, por vezes, a permanência de pessoas negras em espaços de poder nos ambientes de trabalho, e consequentemente impulsiona a construção de estratégias voltadas à mudança e à promoção do acesso e permanência de pessoas não brancas em cargos de liderança.
Além disso, debates públicos, promovidos na internet e na sociedade civil em geral, voltados a reconhecer práticas de racismo dentro do ambiente profissional têm possibilitado que mais pessoas negras compreendam como se dão assédios raciais e subalternidades no trabalho.
Um reflexo disso é o crescente número de ações impetradas por trabalhadores denunciando atos de racismo em seu local de trabalho nos tribunais trabalhistas brasileiros, conforme noticiado pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), organização que promove há mais de trinta anos debates sobre a lógica de discriminação racial no Brasil.
O que poderia ser visto, num primeiro olhar, como um cenário de risco para organizações que não se prepararam para estarem alinhadas a essa transformação cultural, pode ser encarado como um cenário de oportunidade para que incorporem técnicas e pessoas que impulsionam a equidade. Dessa forma, atuariam para reduzir discriminações, fomentar o negócio e reduzir riscos.
São verdadeiras oportunidades e inovações que podem ser geradas a partir de reflexões que procuram compreender de que maneira os atravessamentos da questão racial operam no mercado de trabalho. Elas permitem o desenvolvimento de ações que aumentam chances de ingresso e permanência de pessoas diversas, promovem mais qualidade e estabelecem parâmetros de aplicação da discriminação positiva para toda a sociedade.
Um exemplo de inovação nesse campo são as políticas de liberdade religiosa, já incorporadas por algumas empresas e organizações bastante afinadas com ferramentas internas capazes de fomentar a diversidade nos ambientes de trabalho.
Essencialmente, essas políticas reforçam a garantia constitucional da liberdade de crença e regulamentam formas de conciliação entre atividades profissionais e práticas religiosas. Desse modo, permitem que profissionais não tenham que escolher entre sua fé e seu trabalho caso haja coincidências entre as datas de rituais religiosos e dias úteis.
Para pessoas que praticam religiões de matriz africana, como o Candomblé, é importante reconhecer que o letramento do ambiente em que trabalham contribui para a compreensão e o respeito aos seus cultos e costumes.
Empresas que se colocam como responsáveis por respeitar a diversidade religiosa e o culto de seus colaboradores permitem que a pessoa não seja apartada do ambiente, coagida ou estigmatizada por alguns rituais como, por exemplo, usar roupas brancas às sextas-feiras ou cumprir obrigações religiosas como a não ingestão de pratos determinados ou outras práticas específicas da religião.
Uma política como essa, respeita e valoriza a multiplicidade religiosa de nossa sociedade e fomenta o orgulho e a autoestima de pessoas de fé, uma vez que encontram amparo institucional para viverem sua plena autenticidade. O que antes poderia dar causa a constrangimento, hoje é fonte de orgulho.
Reconhecer a sobreposição dos efeitos que a questão racial desenvolve na cultura do trabalho é, portanto, fundamental para que pessoas historicamente apartadas de postos formais e cargos elevados no mercado de trabalho passem a interagir e incidir em organizações que se dispõem a pensar e construir equidade, formando um círculo virtuoso de direitos e excelentes resultados.
O aprofundamento dos debates raciais, suas ramificações e consequências práticas dentro do mercado de trabalho é um passo fundamental para a diminuição das desigualdades. Esses debates estão ocorrendo nas redes sociais, nas ruas e em diversos ambientes.
Cabe às lideranças, a cada gestora ou gestor e às organizações como um todo reconhecerem o papel inovador que podem adotar diante desses debates e a sensibilidade de bem incorporá-los na cultura e, até mesmo, no compliance de sua organização.
Ser aliada a uma causa que não lhe atinge diretamente, como por exemplo o enfrentamento ao racismo, é um exercício de desconforto e que exige abertura para fazer e responder perguntas difíceis. O resultado pode mudar o mundo, acreditamos que vale a pena!
Notas
[1]Prudente, Eunice. Dados do IBGE mostram que 54% da população brasileira é negra. Disponível em: https://jornal.usp.br/radio-usp/dados-do-ibge-mostram-que-54-da-populacao-brasileira-e-negra/
[2] Mulheres ganham 76% da remuneração dos homens. O papel feminino na história foi debatido em evento na sede do Ipea em Brasília. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34627
Thayná Yaredy é advogada, mestranda em Ciências Humanas e Sociais na UFABC e fundadora da Gema Consultoria em Equidade.
Adriana Vojvodic é doutora em Direito do Estado pela USP, fundadora da Gema Consultoria em Equidade e advogada no Barros Pimentel, Alcântara Gil e Rodriguez Advogados.
Isabela Del Monde é formada em Direito pela USP, fundadora da Gema Consultoria em Equidade e coordenadora do MeToo Brasil.
Manuela Camargo é formada em Direito pela USP, fundadora da Gema Consultoria em Equidade e sócia da SBAC Advogados.