O empreendedorismo popular não resolverá todos os problemas socioeconômicos brasileiros, mas pode ser elemento fundamental para um novo projeto desenvolvimentista.
Jorge Alexandre Neves
Fonte: GGN
Data original da publicação: 22/12/2021
Quem já estudou as políticas de desenvolvimento dos chamados “Tigres Asiáticos” sabe bem que uma parte fundamental do seu “milagre econômico” estava ancorada na associação entre investimento intensivo em educação, do lado da oferta, e políticas industriais com foco no empreendedorismo popular, em inovação tecnológica e em agregação progressiva de valor à produção, do lado da demanda. A revolução tecnológica e econômica da Coreia do Sul, por exemplo, não foi feita por empresas que eram originalmente grandes. Os chamados Chaebols foram formados nesse processo, não existiam antes dele.
Vindo para mais perto de nós, olhemos nossos vizinhos da Bolívia, que tem sido o país com maior taxa de crescimento do PIB na América Latina nas duas últimas décadas. Uma das características mais marcantes do desenvolvimento socioeconômico boliviano é a enorme proporção do microcrédito no sistema bancário do país como um todo, e a enorme quantidade de microempreendedores.
É óbvio que o Brasil não tem a estrutura social que emergiu da guerra da Coreia, levando à formação de um país como a Coreia do Sul, onde, na década de 1960 – quando se deu o início de sua transformação socioeconômica – inexistiam fortes grupos de interesse, com poder de pressão para arrancar privilégios do Estado (rent seeking, no jargão dos economistas), nem também jamais fomos beneficiários das políticas de doações financeiras bilionárias da USAID, só possível em função da guerra fria (aqui, nosso chamado “milagre econômico” foi financiado por “petrodólares” emprestados a juros flutuantes). Também é óbvio que o baixo nível de desenvolvimento da Coreia do Sul da década de 1960 ou da Bolívia de duas décadas atrás torna mais fácil o crescimento econômico estatisticamente relevante, pois se parte de uma base muito baixa.
Todavia, penso que os progressistas brasileiros têm o que aprender com as políticas de desenvolvimento da Coreia do Sul das décadas de 1960 e 1970, bem como com as políticas de desenvolvimento que o MAS tem implementado na Bolívia. A economia brasileira precisa passar por um “choque” baseado no empreendedorismo popular!
O Brasil tem sido apontado como o caso mais significativo de desindustrialização do mundo, desde a década de 1980. Reverter esse processo não será algo fácil, até porque as elites industriais brasileiras tornaram-se, ao longo das últimas décadas, totalmente rentistas.
A classe empresarial brasileira parece ter hoje uma aversão patologicamente elevada ao risco. Por outro lado, vemos um comportamento diferente deste em boa parte da população mais pobre. A explicação talvez esteja na própria construção de um colchão de proteção social criado a partir da CF-88 e, principalmente, com a chegada do PT ao poder, em 2003.
Há alguns anos, li um artigo de Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia, no qual ele levantava uma hipótese extremamente interessante, a de que o extraordinário padrão de inovação tecnológica dos países escandinavos se devia ao seu robusto sistema de proteção social. A certeza de que elevados níveis de privação estão totalmente fora do radar reduziria sobremaneira a aversão ao risco por parte dos trabalhadores e empreendedores escandinavos.
Obviamente, o empreendedorismo popular está longe de ser uma panaceia que irá resolver todos os problemas socioeconômicos brasileiros. Por outro lado, penso ser um elemento fundamental para um novo projeto desenvolvimentista, no Brasil, podendo, inclusive, contribuir para uma reversão da desindustrialização de nossa economia.
De certa forma, temos hoje, provavelmente, todos os fundamentos necessários para um grande programa de empreendedorismo popular, a saber:
– Uma enorme quantidade de jovens e adultos oriundos dos estratos populares que ainda não chegaram à maturidade de suas vidas produtivas com níveis relativamente elevados de qualificação, resultantes das políticas de formação em institutos tecnológicos e no ensino superior desenvolvidas pelos governos petistas.
– Boa parte desses indivíduos estão hoje em situação de desemprego ou subemprego, muitos trabalhando como motoristas ou entregadores para aplicativos. Eles podem ser facilmente retreinados, pois têm níveis relativamente elevados de qualificação. Da mesmo forma, podem formar grupos solidários com projetos conjuntos de empreendimento a ser financiados com crédito público.
– Uma tecnologia organizacional extremamente bem sucedida de operação de crédito junto a empreendedores populares, que é o CrediAmigo, do Banco do Nordeste. Este programa entrou há pouco na mira da máquina de destruição do governo Bolsonaro (1). Todavia, sua tecnologia organizacional continua de pé, assim como é totalmente possível recuperar e expandir sua estrutura institucional. Essa tecnologia organizacional e sua base institucional precisam ser expandidas para todo o país.
– Uma empresa estatal (criada no final do governo Dilma), a EMBRAPII, que já acumulou uma significativa experiência na indução de projetos de inovação, e que pode, agora, adicionar à sua atuação, um foco no empreendedorismo popular.
– O crescimento exponencial da produção em C&T (um efeito inercial das políticas de expansão dos governos petistas), com parte dela podendo ajudar a alavancar a capacidade de inovação do empreendedorismo popular.
– Um sistema bem desenhado e eficaz de formalização do pequeno empreendedor, qual seja, o Micro Empreendedor Individual (MEI), também criado nos governos petistas.
– Um sistema de proteção social que, embora também tenha sido parcialmente desmontado, pode ser rapidamente reestruturado e expandido para permitir que os empreendedores populares se mantenham com baixa aversão ao risco.
– Uma grande quantidade de recursos financeiros em fundos federais (ex.: o FAT), alguns até com uma trajetória de apossamento, que podem ser utilizados para financiar uma política robusta de empreendedorismo popular (2).
O mercado de trabalho, a estrutura ocupacional e o sistema produtivo brasileiros se transformaram de maneira profunda desde o golpe de estado de 2016. Hoje, estamos mergulhados no que tenho chamado de pós-industrialismo periférico (3). Precisaremos reverter esse processo de forma rápida. Não será fácil criar a quantidade de empregos que precisaremos gerar em pouco tempo. O empreendedorismo popular é um dos caminhos mais seguros e eficazes de alcançarmos esse objetivo.
Notas
(1) https://jornalggn.com.br/destaque-secundario/ataque-ao-crediamigo-por-jorge-alexandre-neves/.
(2) Em um artigo do qual sou co-autor (https://www.scielo.br/j/rsocp/a/YgsNw3gz9hywSmghfJgtyvk/abstract/?lang=pt), mostramos como o empreendedorismo popular é extremamente barato de ser financiado e traz um resultado com ótima relação custo/benefício.
(3) https://jornalggn.com.br/artigos/gotejamento-versus-pos-industrialismo-periferico/.
Jorge Alexandre Barbosa Neves é Ph.D, University of Wisconsin – Madison, 1997. Pesquisador PQ do CNPq. Pesquisador Visitante University of Texas – Austin. Professor Titular do Departamento de Sociologia – UFMG – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas