No que tange à cultura no sentido amplo, o Brasil não é e nunca será um só. É grande demais, diverso demais para que se pretenda um comportamento unificado.
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva
Fonte: GGN
Data original da publicação: 08/11/2022
Um produtor do Cerrado Mineiro conseguiu terras no Projeto Jaíba, que foi financiado pelos japoneses nos anos 1990, para a produção de frutas com água do Rio S. Francisco. Por tratar-se de uma região esquecida por Deus e pelo Estado em pleno noroeste de Minas Gerais, os trabalhadores locais ainda não tinham sido influenciados pela ideia de maximização. Depois de cumprida a produção que igualava o rendimento por tarefa à diária baseada no salário-mínimo acordado em dissídio sindical, todos deitavam-se à sombra e não moviam mais uma palha sequer. Para eles, considerando seus anseios e o nível local de preços, estava bom, para que mais? Todos na administração do empreendimento, inclusive eu, estranhamos muito a atitude desse grupo de trabalhadores que, celeremente, foram substituídos por boias-frias oriundos de outras regiões do país. Para o nível local de emprego, o resultado do projeto foi nulo. É preciso conhecer História para entender o cenário em que se deu esse episódio.
No que tange à cultura no sentido amplo, o Brasil não é e nunca será um só. É grande demais, diverso demais para que se pretenda um comportamento unificado. Na edição passada, apontaram-se algumas razões para o conservadorismo da Região Sul, só que, como as eleições comprovaram, ela não forma a maioria, nem demográfica, nem política. A região em foco nesta matéria é uma transição entre a tradição econômica do Sudeste e a do Nordeste, com um tempero do Centro-Oeste de antes da migração gaúcha. Para ilustrar o que aqui se vai expor, a sugestão é ler as obras de Autran Dourado (1926 – 2012), Guimarães Rosa (1908 – 1967) e Mário Palmério (1916 – 1996). Trata-se de uma região em que a terra não é para produzir, é para ter. Tê-la representa poder sobre o que está sobre ela, mesmo que dali não saia nada porque não há nada a sair mesmo, segundo seus proprietários. É uma região em que terra e viventes são largados à própria sorte, vivendo do que a terra dá e morrendo do que a terra não dá. Há casos em que o morador sequer sabe a quem pertence o solo em que vive, muito menos qual é a extensão da propriedade.
A introdução de um projeto de irrigação massiva, em que se cavaram canais de quilômetros de comprimento, semelhantes aos do Nilo, cuja água é bombeada para plantações de uvas, maracujás e bananas, onde elas são servidas às plantas por gotejo ou por pivôs centrais, há de ter sido um choque cultural. Em vez de produzir o suficiente para abastecer moradores e, quando excedente houvesse, vender-se ou trocar-se por gêneros de primeira necessidade em vilarejos, passou-se à perspectiva de abastecer o mundo, suprindo, de passagem, os grandes centros nacionais. Coisas como taxa de juros ou de câmbio, que não faziam parte do imaginário local, tornaram-se comandantes da economia da região. Os viventes de então não entendiam o novo sistema, muito menos por que foi implantado. Não percebiam que, ou entravam no jogo, ou seriam empurrados para o subemprego nos grandes centros urbanos para os quais estava ainda menos preparados. Seu espaço foi ocupado pela mão de obra volante, aquela que produz, mas não consome, pois tudo o que amealha é enviado para a região de origem e, ali, sustenta famílias cujo entendimento do mundo não difere muito do das famílias recentemente expulsas.
A invasão gaúcha, ao contrário, visa a não ter de lidar com a mão de obra local, muito menos com a volante. Trata-se de empresários para quem a terra não é para ter, é para usar. São pessoas que veem a aquisição da terra como uma saída em fluxo de caixa que torna o investimento numa verdadeira prisão por falta de liquidez. A subversão dos valores, em oposição, começa pelos proprietários, seduzidos pela perspectiva do arrendamento. Também nesse caso, expulsam-se moradores com comportamento semelhante ao já discutido, só que o substituto é o maquinário dia a dia mais poderoso. O caminho é a periferia das grandes cidades. Várzea Grande separada da capital pelo Rio Cuiabá, não passa de uma favela com proporções épicas.
Trata-se de uma onda invisível de migração. É invisível porque o grandes centros urbanos já são populosos o suficiente para que novos moradores não sejam capazes de influenciar costumes e introduzir sotaque ou termos novos. Ao contrário, são pessoas cujo passado é renegado, cuja origem é algo para se esquecer. O grande desafio da administração pública é introduzir essas pessoas no mercado de trabalho num cenário de destruição das instituições. A mão de obra oriunda do Sudeste mercê discussão à parte, caso queiramos entender o tamanho do desafio que nos é proposto.
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.