Clemente Ganz Lúcio
“Passa mal a terra, de lestos males presa
Onde se acumula a riqueza e declinam os homens”
Oliver Goldsmith, The Deserted Village (1770)
citado por Tony Judt,
“Um Tratado sobre os Nossos Actuais Descontentamentos”
Para além do medo e da insegurança que pairam sobre a vida moderna, cresce a sensação de que há algo que segue mal. O que soma diminui e o que é mais nos faz menor! Cresce a desumanização no processo civilizatório. O trabalho urgente de reflexão complexa perde espaço para instantaneidades vaporizadas de um clique.
No pós-guerra (meados dos anos 1940), acelerou-se o processo que, no Ocidente, ocorria desde meados do século XIX, de redução das desigualdades. Como escreveu Tony Judt, em Um Tratado sobre os Nossos Actuais Descontentamentos:
“Graça ao imposto progressivo, subsídios estatais para os pobres, fornecimento de serviços sociais e garantias contra infortúnios mais severos, as democracias modernas libertavam-se dos extremos da riqueza e pobreza.”
As sociedades foram incorporando à cultura econômica, social e política a intolerância à desigualdade, para a qual desenvolveram, como antídoto à insuficiência privada, os amplos sistemas de seguridade, proteção e promoção social. Acreditou-se que era possível, progressivamente, avançar nesse caminho de redução das desigualdades, sem recuos, pois a democracia sustentaria o percurso e os resultados alcançados. Ledo engano!
Desde os anos 1970, o movimento de redução da desigualdade se inverteu em diferentes países. Como registra Judt, a título de exemplo, em 1968, o diretor-geral da GM recebia como remuneração e benefícios o equivalente a 66 vezes o salário médio do peão da fábrica. Em 2005, estima-se que essa equivalência saltou para 900 vezes! Que produtividade!
Estudo recente divulgado pela Oxfam (disponível em www.oxfam.org) revela que atualmente a desigualdade segue crescendo. A comparação da evolução da riqueza nos países que compõem o G20 indica que, no último ano, a riqueza desses países aumentou em 17 bilhões de dólares, 1/3 apropriada por 1% dos mais ricos, o equivalente a 6,2 bilhões de dólares. Outro exemplo: nos EUA, no início da década de 1980, os 1% mais ricos se apropriavam de 8% da renda; em 2012, essa participação subiu para 19%. A Oxfam estimou que a evasão fiscal nos países em desenvolvimento promovida pelas grandes empresas é da ordem de 100 bilhões de dólares por ano, recursos suficientes para escolarizar todas as crianças do mundo quatro vezes!
A desigualdade é um fenômeno complexo de disparidades de renda e riqueza, de poder, de oportunidade, de condições, observada entre homens e mulheres, entre negros e não negros (ou com outro recorte racial ou populacional), entre países; entre continentes, entre regiões dentro dos países, entre os que vivem no centro e na periferia das cidades, entre o rural e o urbano, contra os deficientes, contra os povos indígenas. A lista segue e é longa. Como insiste Judty: “A desigualdade é corrosiva. Ela apodrece as sociedades a partir de dentro […] O legado da criação da riqueza não regulada é realmente amargo.”
Será verdade que processos de redução da desigualdade levam as sociedades a quererem reduzi-la ainda mais? O processo de concentração da riqueza torna-a invisível ou uma “condição divina e natural da vida”. A subjetividade coletiva do mal-estar tem causa!
O desafio é descortinar as ilusões do crescimento, da prosperidade e da geração de bem-estar material. Primeiro, porque o bem-estar material não é homogêneo (há enormes desigualdades de condições, capacidades e oportunidades); segundo, porque bem-estar material não conduz, necessariamente, à qualidade de vida; terceiro, porque bem-estar material e qualidade de vida estão predominantemente em desacordo com o equilíbrio ambiental; quarto, porque o bem viver é um paradigma que requer outro equilíbrio entre bem-estar material, qualidade de vida e sustentabilidade ambiental.
Recolocar a centralidade da igualdade de oportunidades, condições e capacidades para todos, ampliar os limites da regulação econômica dos mercados, qualificar o debate público sobre as escolhas coletivas e construir unidade em torno dessas questões são algumas das nossas tarefas!
Clemente Ganz Lúcio é sociólogo, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES).