por Igor Natusch
Fenômeno que se consolida em meio a uma profunda modificação nas relações de trabalho em escala global, a plataformização vem atrelada a uma precarização crescente das condições de vida de trabalhadores e trabalhadoras. Garantir que as pessoas que nos levam aos compromissos e fazem nossas entregas recebam pagamento adequado, tenham boas condições de trabalho e descanso, direitos básicos preservados e espaços para que suas reclamações sejam ouvidas: todos esses são desafios crescentes em um cenário no qual as conexões entre quem emprega e quem trabalha se mostram cada vez mais difusas. Sem contar as empresas que atuam concretamente para desmobilizar trabalhadores em busca de direitos, como recentemente revelado pela Agência Pública em reportagem sobre o uso de perfis falsos pelo iFood contra o chamado Breque dos Apps.
É nesse cenário que atua o projeto Fairwork, uma pesquisa-ação coordenada mundialmente pela Universidade de Oxford e realizada em 30 países, que estabelece e fiscaliza o cumprimento de critérios para o trabalho decente nas plataformas. Em março, o Fairwork Brasil lançou um relatório com a primeira avaliação das principais plataformas atuantes no Brasil – Uber e 99, que atuam no transporte de passageiros; iFood, Rappi e Uber Eats, que gerenciam entregas de refeições; e GetNinjas, voltada a prestadores de serviço. O resultado foi, no mínimo, preocupante: em uma escala de 1 a 10, nenhuma das empresas atingiu nota acima de 2 em nenhum dos parâmetros investigados pelo projeto.
Além de atuar na coordenação do Fairwork no Brasil, Rafael Grohmann é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unisinos e coordenador do Laboratório de Pesquisa DigiLabour. Em conversa com o Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT, ele explica de que modo o Fairwork atua para pressionar plataformas no sentido de melhorarem as condições de trabalho e remuneração de seus trabalhadores – algo que se mostra ainda mais urgente a partir dos dados negativos do primeiro levantamento. Ele também fala sobre as particularidades do trabalho mediado por aplicativos no Brasil, em particular no que se refere às chamadas plataformas de cliques, que vendem interação nas redes sociais e que, na visão de Grohmann, são uma renovação e radicalização do trabalho informal em nosso país.
DMT – Gostaria de começar pedindo para que você nos explicasse um pouco melhor o Fairwork, com quais diretrizes o trabalho que o envolve é desenvolvido etc. De que modo o projeto atua?
Rafael Grohmann – Fairwork, que em português significa “trabalho justo”, é um projeto coordenado pela Universidade de Oxford e dirigido pelo professor Mark Graham, presente em 28 países e que avalia as condições de trabalho nas principais plataformas do mundo. A nossa definição de trabalho decente não é nova, vem de 1999 da OIT, mas sentia-se a falta de um projeto que fosse uma pesquisa-ação a respeito disso. Então, o Fairwork não é apenas uma pesquisa acadêmica para avaliar condições de trabalho, mas, a partir dessa avaliação, determinar como a gente pode batalhar por uma outra economia de plataforma, ou por outros trabalhos por plataforma. Nós construímos cinco princípios, pilares básicos do que seria trabalho decente em plataforma, que obviamente não são coisas que acontecem apenas em plataformas, que podem ser expandidos para outros lugares: remuneração, condições de trabalho, contratos, gestão e representação. Cada um desses pilares ou princípios têm dois indicadores, um básico e um avançado.
Esses indicadores foram construídos a partir de workshops com a OIT e com organizações de trabalhadores, que são atualizados periodicamente, a cada dois anos. Um exemplo disso: na nova versão, a gente pergunta como as empresas lidam com a gestão de dados dos trabalhadores, algo que não estava presente nas primeiras versões. A gente considera que essa economia de plataformas é tão mutante que acaba exigindo de nós uma atualização constante desses princípios.
DMT – De que modo são construídos (e aprimorados) esses princípios?
Rafael Grohmann – Vou dar um exemplo dentro do que seria um desses princípios, a remuneração. No princípio básico, as plataformas têm que garantir que pagam um salário mínimo por hora aos trabalhadores, considerando os custos que eles têm para trabalhar: tempo de espera, gastos com equipamento etc. No princípio avançado, elas têm que comprovar que pagam a todos os trabalhadores um salário mínimo ideal, algo que em inglês é chamado de living wage, e que, nessa primeira rodada, nós consideramos como o salário mínimo ideal indicado pelo Dieese. Esse é um exemplo de que nós não estamos apenas avaliando o cenário atual, mas também pressionando na direção do tipo de cenário que gostaríamos de ter.
(Em cada rodada), a gente entrevista dez trabalhadores por plataforma. Aí você vai me perguntar: “mas Rafael, isso é representativo?”. A questão é que não somos uma pesquisa de perfil de trabalhador: a gente considera que, se há três trabalhadores reclamando que foram bloqueados injustamente, a plataforma tem que ser capaz de responder a todos eles. Também fazemos a pesquisa documental, e, por fim, ouvidos e pedimos evidências das empresas, promovemos reuniões com os gestores e gerentes das plataformas. Quando se recusam, ou não nos respondem, a gente trabalha com as duas outras fontes, a pesquisa documental e as entrevistas com trabalhadores. A partir desses dados, é feita uma avaliação de como está o cenário atual, que é validada com pesquisadores de outros países. Com isso consolidado, a gente manda o resultado para as plataformas e diz “olha, a sua nota é essa, a gente dá dois meses para você fazer mudanças que a gente considere que vão reverter em uma melhora nessa sua nota, isso está nas mãos de vocês”. É uma oportunidade para mudar e melhorar a nota em uma segunda rodada, se quiserem e, como eles mesmos dizem, tiverem força de vontade.
Então, como pesquisa-ação, a gente está sempre preocupado em garantir que as pontuações, ao mesmo tempo que sejam um fim, atuem também como um meio para construir formas eficazes de pressão – o que envolve também a opinião pública, considerando que, para as plataformas, essa coisa de imagem é algo que elas zelam muito.
DMT – Você mencionou a questão da pontuação das empresas, de como isso funciona como mecanismo de pressão etc. Nesse sentido, o que se pode falar a respeito das plataformas que atuam aqui no Brasil, a partir do trabalho que vem sendo feito pela Fairwork? Há particularidades perceptíveis no modo como a atuação delas se dá no Brasil, a partir de um comparativo com resultados que vêm de outros lugares?
Rafael Grohmann – O primeiro relatório mostra um cenário que, dentre os países que já tiveram relatórios lançados pelo Fairwork, coloca o Brasil acima apenas de Bangladesh. É interessante notar que boa parte das pontuações que as plataformas tiveram, mesmo que as notas não tenham passado de 2, vieram depois dessa rodada de pressão, ou seja, quando a gente volta e diz “olha, você tem zero, o que você consegue mudar, efetivamente, nas suas prática em dois meses para cumprir esses critérios?” Às vezes são ajustes, outros casos demandam algo mais efetivo e sistêmico que só vai ter efeito em uma segunda rodada, mesmo.
Nessa primeira rodada (no Brasil) nós só avaliamos as grandes plataformas, porque na segunda rodada a gente quer avaliar também plataformas regionais ou locais, algumas cooperativas. Uma das coisas que as pessoas mais comentaram quando lançamos o relatório no Instagram foi “zero surpresas”, sabe? Óbvio que para nós também não houve surpresa, mas agora é importante mostrar que talvez possa haver alguma alternativa, que há a possibilidade de termos outra situação em plataformas que sejam menores ou locais, ou mesmo ver a forma como essas outras plataformas vão lidar com a pressão pública.
Na América Latina, lançamos até agora relatórios em Brasil, Chile, Equador e Argentina, e em breve vamos lançar na Colômbia e Paraguai. . Até semana passada, nos relatórios lançados, nenhuma plataforma na América Latina tirou mais que 3, em uma escala que vai até 10. Aí recentemente lançamos o Fairwork Argentina. O resultado foi DiDi com 4 e todas as outras plataformas com 0. Aliás, um dado geral que temos observado é que é bem mais fácil termos boas pontuações de plataformas locais do que de plataformas globais. Se você acompanhar a Uber, em quase todos os países que nós incluimos (nos levantamentos) a plataforma pontua 1 ou 2, dificilmente vai além disso, o que demonstra como ela atua globalmente. Mas, se a gente for buscar os resultados em países nos quais estamos na África, como África do Sul, Gana, Quênia, e na Ásia, como Indonésia e Índia, você vai ver que há notas 7 ou 8. O que explica esses resultados, considerando que na América Latina nós praticamente não temos notas que passem de 3?
Uma das hipóteses se baseia no fato de que, na África especialmente, eles têm muitas plataformas ligadas ao afro-empreendedorismo, que, ao invés de simular um modelo de negócios tipo Vale do Silício, tentam fazer algo mais adequado àquela região e que não replica esse discurso. E na América Latina, talvez até pela proximidade cultural e geográfica com os Estados Unidos, mesmo as plataformas locais tentam simular essas práticas do Vale do Silício. É só pensar que, por exemplo, o iFood é uma plataforma nacional, mas se você pegar as práticas dela mesmo em termos de organização e imagem pública, ela não difere muito de plataformas dos Estados Unidos.
DMT – É interessante você mencionar o iFood, porque essa plataforma nos puxa para uma discussão sobre a atuação pública dessas empresas. Recentemente, uma matéria da Agência Pública revelou os esforços do iFood para sabotar o Breque dos Apps, com criação de perfis falsos para tentar forçar mudanças de discurso etc. Ao mesmo tempo, sabemos que o iFood fez esforços para melhorar seu escore na avaliação do Fairwork. Que ferramentas o Fairwork adota para que as empresas tenham mais dificuldade para tentar usar o projeto como mero mecanismo de legitimação?
Rafael Grohmann – A gente tem feito uma campanha maciça contra o fairwashing, que é o fato de empresas quererem limpar suas imagens posicionando-se publicamente como justas quando na verdade não são. Como professor da área de Comunicação, analiso como as estratégias de comunicação são importantes para as plataformas, e como elas se colocam nas comunicações institucionais – e o iFood é o maior exemplo disso no Brasil – não só como uma empresa, mas como algo que está transformando a vida das pessoas, com um espírito inovador e cidadão. Isso está na raiz do discurso do Vale do Silício, no discurso de Mark Zuckerberg e até mesmo antes, no que se chamou de Ideologia Californiana dos anos 1990, essa mistura de uma coisa meio contracultural com um neoliberalismo mais acirrado. Se a gente for pegar um filme como A Rede Social, ele vai tratar o Mark Zuckerberg como um punk, e isso se praticou também com Elon Musk e outros tantos. Esse discurso de “estou aqui mudando o mundo, estou salvando vidas”, é muito forte para as plataformas de trabalho.
No fundo, temos no Brasil ou empresas que tentam o tempo todo posicionar-se publicamente como inovadoras, cidadãs e justas ou aquelas que não estão nem aí para a própria comunicação institucional. São as contradições de viver em um país que, como dizia o Álvaro Vieira Pinto, é um vale de lágrimas. Um exemplo de estratégia de comunicação se deu naquele período da greve de julho de 2020, quando uma plataforma viu que (a paralisação) tinha apoio popular. Um dia antes (do início da greve), eles colocam uma postagem no Instagram, que já foi deletada, que dizia algo do tipo: “bloqueio injusto não, entregador, estamos do seu lado”. E a greve era contra a própria plataforma! Olha como a comunicação atua no sentido de inverter isso. Há toda uma estratégia de patrocinar produtos midiáticos onde há potenciais consumidores resistentes às plataforma. Quando os entregadores começam a bater mais forte no termo empreendedorismo, você pode ver que a palavra ‘empreendedor’ sumiu dos sites das plataformas. Além disso, essas empresas leem e monitoram os trabalhos acadêmicos para identificar possíveis pontos de resistência, além de financiar pesquisadores que possam estar de alguma maneira ligados a esses temas. No ano passado, um think tank chamado Instituto Ethos lançou uma consulta pública sobre trabalho decente e plataformas digitais – bem interessante, inclusive. Mas cabe perguntar: qual é o interesse em se construir uma agenda alternativa ao Fairwork e que seja, de certa maneira, abrandadora do que o Fairwork é?
Todas essas são ações, tanto de mitigação de danos à imagem pública quanto de gestão dessa imagem. E acho que no Brasil as plataformas são um caso paradigmático disso a nível mundial.
DMT – E como o Fairwork busca se acautelar contra isso? Quais são as estratégias de defesa do projeto para não ser usado como ferramenta de fairwashing?
Rafael Grohmann – O Fairwork atua em um terreno limítrofe, e até certo ponto delicado, entre o avaliar, o pressionar e o correr risco de ser cooptado. E é por isso que a gente tem uma rede de pessoas comprometidas com o tema, para evitar que vire uma questão individual. Eu acho que o fato de sermos uma rede de 28 países capitaneada pela Oxford traz, por si só, uma repercussão que, se fosse só o Rafael da Unisinos, certamente seria outra. E acho que (defender a integridade do projeto) tem muito a ver com o fortalecimento desses princípios, identificar quais podem ser burlados ou contornados. A gente tem um exemplo, que é clássico em vários países: no ponto 4.2, que é gestão, as plataformas têm que garantir que tenham políticas de combate a desigualdade ligada a raça e gênero dentro da plataforma, discriminação de usuários contra trabalhadores na plataforma etc. E o que mais aparece são plataformas mandando campanhas de carnaval para a gente. E a gente fala que isso não é uma política constante, isso é uma campanha ligada ao carnaval.
A ideia de ‘washing’ não é nada nova dentro das estratégias comunicativas das empresas. Você tem o greenwashing, que é se mostrar como verdes, sustentáveis etc; o ‘diversity washing’, que é aquela questão de dizer que se é muito diverso e, quando você vai ver a foto da equipe, é aquela coisa meio Faria Limer, todo mundo do mesmo padrão; e o ‘fairwashing’, que é quando as empresas querem se mostrar muito decentes e justas, se colocarem como se estivessem transformando o mundo, e isso ser muito mais uma estratégia de comunicação institucional do que práticas de fato. Então, a gente tem falado muito sobre isso e incentivado a própria imprensa a falar sobre isso, para que (as empresas) não coloquem coisas como “estamos em parceria com o Fairwork”. Não, vocês não estão em parceria, vocês estão sendo avaliados pelo Fairwork. Se não quiserem colaborar, problema delas, porque vão ser avaliadas do mesmo jeito. Logo que lançamos a plataforma, uma das empresas protestou dizendo “nós não fomos ouvidos”, e bom, vocês não responderam os nossos e-mails, e o fato de não terem respondido não invalida (a avaliação), porque é interesse de vocês colaborarem com a gente. Óbvio que temos por princípio ouvir diferentes lados, mas, quando há desacordo, é sempre o lado do trabalhador que vai pesar mais. A gente só marca um ponto para a plataforma quando tem muito claro que aquilo está sendo cumprido; quando há dúvidas, não se pontua.
A gente tem tentado também promover workshops com movimentos sociais, com sindicatos, com o Ministério Público do Trabalho. Vamos pensar políticas públicas a partir dos princípios de trabalho decente? Vamos ver como os sindicatos podem atuar para fazer pressão a respeito disso? Vamos fazer uma pesquisa com cidadãos brasileiros para ver o que eles acham disso tudo? Vamos usar esse esforço para fomentar cooperativas de plataforma, que possam nascer já incorporando esses princípios? Para que não seja apenas algo do tipo “OK, estamos aqui avaliando e pontuando”, que vá além disso.
DMT – Você mencionou há pouco as cooperativas de plataforma, e acentuou que, em determinados países, a regionalização das plataformas, com empresas calcadas em lógicas locais, produzia melhores resultados no que se refere a trabalho decente. Esses dois elementos são saídas para um enfrentamento sistemático do processo de precarização associado às plataformas? O quanto a parte ‘ação’ da pesquisa-ação depende de iniciativas como essas?
Rafael Grohmann – Eu, como pesquisador, tenho o Fairwork como um dos projetos nos quais estou envolvido. E um dos outros projetos em que trabalho é justamente sobre cooperativismo de plataforma. Estamos fazendo uma série de eventos online, tivemos um especificamente sobre Trabalho Decente e Cooperativismo de Plataforma, que colocou integrantes do Fairwork junto a pessoas ligadas a cooperativas para dialogar.
Realisticamente, acho que o cooperativismo de plataforma teria dificuldade para substituir as outras plataformas, por uma série de questões, envolvendo desde estratégias de comunicação até lobby e poder financeiro. As plataformas de trabalho tendem à oligopolização. Mesmo as de streaming, se formos analisar, tendem a formar oligopólios, e é muito difícil enfrentar isso. A gente promoveu um evento em abril deste ano com várias (cooperativas), e elas têm oito, dez entregadores. A força não está nelas em si, mas talvez na intercooperação entre elas para construir elementos mais fortes. Na Europa, o mesmo software pode ser base para várias cooperativas, o que daria para se fazer no Brasil. Seria algo local e que, ao mesmo tempo, construiria uma faceta nacional mais forte.
Agora, é possível que o cooperativismo de plataforma vislumbre diferentes circuitos de produção e consumo. Não só de trabalho decente, mas, por exemplo, de pensar alimentação saudável, de não entregar (alimentos vindos) de restaurantes de fast food, propor um debate sobre como isso se liga a outras lógicas de espaços urbanos ou o que significa de fato sustentabilidade, coisas assim. E acho que o cooperativismo de plataforma tem a possibilidade de pensar gestão de dados de uma forma que não seja extrativista, que esses dados coletados possam ser utilizados para o bem comum e até mesmo reutilizados pela gestão pública, para planejar espaços urbanos etc. Então, o cooperativismo de plataforma pode não ser um enfrentamento direto, mas pode ser uma forma de vislumbrar outras políticas públicas para esse setor.
DMT – Mas há problematizações possíveis em torno do próprio cooperativismo em si…
Rafael Grohmann – Os meus colegas de Direito do Trabalho, sempre que vou falar sobre cooperativismo, torcem o nariz, por causa do contexto brasileiro dos anos 1990, na qual surgiram iniciativas de cooperativa que, na verdade, eram quase um fairwashing. No ano passado, nós chegamos a fazer 20 vídeos sobre cooperativismo de plataforma, e o último deles foi Contra as Falsas Cooperativas, que é essa coisa que nós já estamos vendo igualzinho nas plataformas cooperativas. A gente já viu plataformas ao redor do mundo colocando coisas do tipo “nós somos a sua alternativa”, e quando você vai olhar não é bem assim, não é bem uma cooperativa… Há, de fato, toda essa problemática no cooperativismo de plataforma, e que acaba respingando nas definições de trabalho decente.
Eu comecei estudando o mundo do trabalho do jornalista, e estou terminando agora uma pesquisa sobre cooperativas de jornalistas. Às vezes, os próprios arranjos alternativos de trabalho não significam necessariamente mais trabalho decente. (É preciso considerar) o quanto há também de reprodução de autoexploração, e também até que ponto a gente pode ajudar a fomentar arranjos alternativos de trabalho em plataforma – cooperativas, coletivos, plataformas autogestionadas, plataformas públicas – que possam garantir a aplicação de princípios de Fairwork. Eu acho que isso, mais do que uma garantia, é um desafio, também. Porque, olhando do alto, a gente até pode pensar que isso é óbvio, mas não é óbvio. A gente vai começar agora a avaliar cooperativas ao redor do mundo para começar a sentir esse drama, para verificar até que ponto esses arranjos se colocam como reais alternativas.
DMT – Queria falar um pouco sobre as chamadas fazendas de cliques. É um assunto que começa a ter uma presença maior nas esferas de discussão, mas que ainda é nebuloso para muita gente, muitos ainda não dominam os conceitos em torno dessa modalidade de trabalho. Qual seria a fotografia de momento das fazendas de cliques no Brasil? É um fenômeno crescente? Há algum diferencial no modo como essas fazendas se estruturam em nosso país?
Rafael Grohmann – Primeiro, o que são fazendas de cliques e por que esse nome? A denominação nasce no sudeste asiático, onde estão as fazendas de cliques mais conhecidas; se você pesquisar ‘fazenda de cliques’ no Google, vai aparecer um monte de celulares juntos e uma mulher mexendo neles, como se fosse uma espécie de lan house, ou de call center, em que você contrata pessoas para ficarem em vários celulares ou várias máquinas ao mesmo tempo. Você só acha essas questões no sudeste asiático ou na América Latina – alguma coisa na África, mas só. É muito interessante como esse movimento parece não dizer respeito ao norte global. E eu estou tentado a achar – estou quase afirmando, na verdade, mas ainda um pouco receoso – que o Brasil tem um modelo único de fazendas de cliques. Porque, primeiro, os trabalhadores não trabalham a partir de call centers, eles trabalham de casa. A gente acaba usando o termo fazenda de cliques nem tanto como um conceito: é mais como uma analogia ao modo como isso funciona, com trabalhadores que são pagos para curtir, comentar e compartilhar.
Eu tinha uma pesquisa sobre pessoas que trabalham em plataformas que alimentam inteligência artificial, que treinam algoritmos de reconhecimento facial, desde recaptcha até tirar foto de si mesmo, essas coisas. Quando a gente começou a mapear essas plataformas no Brasil, naturalmente caímos nas plataformas de cliques, como um subproduto disso. São empresas brasileiras, muitas vezes com nomes muito literais tipo Ganhar No Insta, e que se vendem como empresas de marketing digital focadas em redes sociais. São sites, trabalhando como plataforma – tanto que os trabalhadores não chamam de fazenda de cliques, eles chamam de “trabalho no site”. Tem uma delas que na apresentação, na descrição de seu próprio serviço, fala mais ou menos assim: “somos uma startup inovadora que descobriu uma forma de tirar a dor de pessoas que desejam ser famosas, e tirar a dor de pessoas que desejam ganhar uma renda extra”.
O que fazem essas fazendas de cliques – ou essas empresas, esses sites, enfim? Elas prometem para os clientes seguidores reais, e não bots. “Nós vendemos para você seguidores reais, não são bots, não é um golpe nem uma pirâmide, são seguidores de verdade”. Isso à custa de uma multidão de trabalhadores, dentro do que a gente chama de automação falsa ou de heteromação, que recebem, como se fosse um pedido do iFood, um comando tipo “clique no perfil tal, siga o perfil tal, comente no perfil tal”, a troco de R$ 0,006. As empresas mesmo falam nos seus sites: “pode parecer pouco, mas é bem rápido o seu trabalho, você vai ganhar bastante dinheiro assim” – ou seja, tudo dentro de um discurso de renda extra e fácil. E os trabalhadores descobrem as plataformas por meio de canais do YouTube com vídeos tipo “ganhe uma renda extra”, que também são de gente ligada a marketing digital e que vão ensinar táticas de como entrar nesse negócio. Há quem venda cursos de como trabalhar nesse tipo de plataforma, coaches mesmo. E muitos desses trabalhadores vêm de um histórico de mercado informal.
DMT – Imagino que isso se conecte naturalmente a esse ecossistema das fazendas de cliques, já que a informalidade é uma realidade histórica no mercado de trabalho brasileiro.
Rafael Grohmann – Totalmente. E tem um ponto que não está na nossa pesquisa exatamente, mas no qual fiquei pensando esses dias, que são as pessoas que trabalhavam vendendo CDs piratas nas feiras livres – o que, além de ser uma atividade totalmente informal, tinha esse caráter meio low tech envolvido. Eu não entrevistei ninguém que tenha trabalhado vendendo CD pirata e que hoje trabalhe em fazenda de cliques, mas é curioso ver como essas coisas se misturam, como esse espírito permanece nas fazendas de cliques. De modo que eu penso que essas fazendas radicalizam e renovam a realidade do trabalho informal no Brasil.
Seja como for, os trabalhadores descobrem esses sites por meio de canais no YouTube e são levados para grupos de WhatsApp, vários, com nomes tipo Crescendo nas Plataformas, Renda Extra, Hackeando o Instagram/TikTok, dos mais variados tipos. Eles vão trocando dicas, e é daí que eu falo que começa a abrir a porta do inferno (risos). Porque assim, quem é que consegue se sustentar, operando um único perfil e ganhando R$ 0,006 por tarefa? O que acontece é que os trabalhadores começam a criar vários perfis para isso – e as próprias plataformas fazem simulação de ganhos, perguntam com quantos perfis a pessoa quer trabalhar, ao mesmo tempo em que dizem “não toleramos perfis falsos, nós temos um sistema avançado de detecção de contas fake, não nos engane”. Mas gente, né? (risos) A coisa já meio que pressupõe que essas contas sejam fake. Os trabalhadores são compelidos e até certo ponto ensinados a fazer contas fake, e aí se abre a porta do inferno, como eu digo, porque você tem todo um mercado paralelo de contas fake, que sustentam a relação com as fazendas de cliques. Quanto mais fotos, mais seguidores etc, mais caras as contas ficam. Você tem contas falsas que custam R$ 0,05 e outras que custam R$ 5,00 ou até mais, dependendo do número de seguidores.
Quando o Instagram bloqueia uma dessas contas, o trabalhador não ganha por aquilo que ele clicou, comentou e curtiu. Então, eles criam bots, porque, cansados de ficar clicando, comentando e curtindo, eles acabam automatizando parte dessas tarefas. Ou seja, o cliente compra seguidores reais achando que não são bots, e os trabalhadores, cansados de ficar fazendo a mesma coisa o tempo todo, criam bots e aí conseguem trabalhar com 300 contas ao mesmo tempo. Se alguma delas é bloqueada, ao menos você segue ganhando algum dinheiro com as outras. Com isso, as fazendas de cliques transformam cada trabalhador também em revendedores de contas fake, para poderem melhorar os seus ganhos. Não é mais a simples relação com os sites, é todo um ecossistema ou circuito que envolve as fazendas de cliques, a partir dessa radicalização da informalidade somada à renovação do que significa ser revendedor – não mais de Natura, por exemplo, mas de contas fake.
DMT – Quem são, de modo geral, as pessoas que acabam atraídas por esse tipo de atividade? E o que esse perfil nos diz enquanto caminho para uma eventual regulamentação (ou, pelo menos, maior grau de proteção aos trabalhadores e trabalhadoras) no setor?
Rafael Grohmann – São especialmente pessoas que já têm vivência no mercado informal. Há também uma parcela de trabalhadores que perderam o emprego recentemente, mas, acima de tudo, pessoas que já estão inseridas na informalidade. Há um recorte de gênero também, muitas mulheres estão nesse universo. Mas eu não acho que, necessariamente, (essa situação de precariedade) tenha a ver com regulamentação ou com um maior grau de proteção no setor. Há um elemento nas fazendas de cliques, algo que, na verdade, está na raiz delas: como regular algo que nasce com várias dimensões de fake? Você parte do princípio de que, para regular um espaço, é preciso que ele tenha algo de concreto. É claro que nós queremos trabalhadores com maior grau de proteção social, em todos os setores, mas o problema é: a que se destina esse negócio? É por isso que vejo as fazendas de cliques como algo que renova e radicaliza a informalidade do trabalho no Brasil, e é por isso que é tão difícil pensar formas de atuar sobre um ecossistema com distintas e múltiplas camadas de fake em sua distribuição e organização. É um desafio quase distópico, que vai exigir bastante esforço da nossa parte.