Os efeitos deletérios das crises sanitária, social e econômica de que somos testemunhas se não são bastante claros à maior parte das pessoas, ao menos evidenciam a múltipla catástrofe que vivemos. Por outro lado, em momentos de agudização dessas crises é que o “impossível” deixa de ser inconcebível. “Abolicionistas, sufragistas, movimentos de mulheres e de minorias, sindicalismo e movimentos socialistas de várias matizes foram essenciais para dotar de sentido social e politicamente progressista as possibilidades que se abririam com as várias conjunturas críticas ao longo dos últimos séculos”, pondera a professora e pesquisadora Celia Lessa Kerstenetzky, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Nesse sentido, para usar uma imagem rural, quando o cavalo da história passa encilhado, precisamos estar prontos para não deixá-lo escapar. Isto é, as soluções para nossos desafios precisam estar previamente elaboradas para torná-las reais em momentos políticos favoráveis. “As soluções precisam estar pensadas para quando o momento político as torne viáveis. Claro, é preciso investir em convencimento também: tributação progressiva não é jogo de soma zero, pode ser o arranjo que nos permita prosperar como sociedade, o bilhete de ingresso na civilização”, complementa.
E o convencimento é algo fundamental e desafiador ao mesmo tempo, mas cuja dificuldade é efeito das profundas desigualdades que atrapalham a coesão social. “Desigualdades extremas impedem o desenvolvimento, têm impactos negativos sobre coesão social, democracia, segurança pública, saúde, confiança interpessoal e qualidade do governo, o crescimento de alternativas populistas no mundo (a vitória eleitoral de partidos de extrema direita em países desenvolvidos e menos desenvolvidos) é sintoma de que se faz urgente a retomada de agendas igualitaristas, negligenciadas pelos tradicionais partidos social-democratas” sustenta.
Celia Lessa Kerstenetzky é doutora em Ciências Políticas e Sociais pelo European University Institute, doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ, mestre em Economia pela UFRJ, graduada em Economia pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Foi pesquisadora visitante na Columbia University, no MIT, na Universidade de Illinois e na Universidade Pompeu Fabra em Barcelona e professora visitante na Universidade de Siena na Itália e no INAG em Cabo Verde. Atualmente é professora titular do Instituto de Economia da UFRJ e coordenadora do Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento – CEDE.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que inspirações o livro “Capital e Ideologia”, de Thomas Piketty, oferece para pensarmos saídas para as crises social, sanitária e econômica no Brasil?
Celia Lessa Kerstenetzky – Uma mensagem central do livro é que crises agudas se abrem a mudanças até então inconcebíveis. Os exemplos históricos são abundantes. Guerras, epidemias, crises, depressões, espirais inflacionárias são desafios à imaginação e à ousadia, momentos em que velhos modos de resolver (antigos) problemas se revelam inúteis e insistir no costume é estratégia irracional. É necessária certa “preparação”, contudo: que ideias “utópicas” (aos olhos da época) tenham circulado, que movimentos políticos portadores delas ou inspirados por elas se tenham forjado. E, ainda que estes fatores (ideias e pressões) não sejam as causas únicas da mudança, na ausência deles a mudança não teria adquirido o sentido que acabou prevalecendo. Abolicionistas, sufragistas, movimentos de mulheres e de minorias, sindicalismo e movimentos socialistas de várias matizes foram essenciais para dotar de sentido social e politicamente progressista as possibilidades que se abririam com as várias conjunturas críticas ao longo dos últimos séculos. A primeira inspiração, eu diria, é, pois: não desista de sua ambição, muna-se de ideias, manifeste-se.
Outra inspiração tem evidentemente a ver com a própria direção da mudança: crises nessas dimensões simultâneas (sanitária, econômica, social) colocam em xeque o precário e altamente insatisfatório acordo social sob o signo do qual temos vivido no Brasil, onde desigualdades extremas e em várias dimensões campeiam, desigualdades que nos tornam mais socialmente vulneráveis a choques como pandemias. Dito isto, as tarefas são várias e talvez possamos enfeixá-las na noção de que é preciso, com a maior urgência, um novo contrato ecológico-social. O antigo nos trouxe até aqui; de certo modo nos conduziu à tripla crise que estamos enfrentando, com as desigualdades sociais e ambientais insustentáveis das últimas décadas.
IHU On-Line – Como a desigualdade evoluiu no último século e meio, segundo as fontes utilizadas pelo economista em sua obra?
Celia Lessa Kerstenetzky – A obra documenta o famoso retorno da desigualdade no final do século XX para praticamente a situação de desigualdades extremas que tínhamos na virada do século 19. Isso é verdade seja para países de economias avançadas seja para países menos desenvolvidos, como o Brasil. O capital retorna com força, como proporção da riqueza nacional, como concentração em poucas mãos e transmissão praticamente dinástica de pai para filho ao longo de gerações. O interessante é a análise do século XX, um século no qual o capital encolheu como proporção da riqueza nacional e sua distribuição se tornou mais equilibrada, momento que viu a emergência de uma classe média patrimonial, uma classe de proprietários de suas moradias. Vários choques contribuíram para esse acontecimento, as conjunturas cruciais a que me referi acima, que foram muito bem aproveitadas politicamente: governos na América do Norte e na Europa e, em menor medida, na América do Sul, encetaram políticas que derrubariam o capital e sua concentração extrema.
O século XX progressivo não foi apenas decorrência da destruição física de capital nas guerras, o que também ocorreu, mas de uma verdadeira reconfiguração do equilíbrio entre capital e trabalho. Perderam os detentores de renda de capital, ganharam os trabalhadores. Foi o século dos impostos progressivos – incluindo os impostos corporativos, que agora despencam no mundo -, foi o século dos sindicatos, do salário mínimo e da legislação de proteção ao trabalho, foi o século da regulação dos alugueis e do capital financeiro, foi ainda o século dourado dos estados de bem-estar europeus que passaram a destinar mais de 30% da riqueza social à redistribuição. Quase tudo isso regride a partir dos anos 1980, na esteira da desaceleração econômica mundial à qual se segue um período de intensa re-mercantilização das economias mundiais, incluindo a globalização. A exceção importante é o estado de bem-estar social que quase nenhum governo de país de economia avançada conseguiu desmontar.
IHU On-Line – Como, segundo Piketty, é possível frear ou inverter o atual quadro das desigualdades sociais?
Celia Lessa Kerstenetzky – De certo modo, a receita é simples: ao lado da expansão do estado do bem-estar tradicional (seguridade social, educação e saúde, entre outras políticas), com reformas publicizantes da saúde e da educação (incluindo, com destaque, o ensino superior universal de qualidade) e uma renda mínima garantida, reintroduzir regulamentações, tributação progressiva, inclusive da riqueza financeira. Além de tudo isso, há que se introduzir algo pouco enfatizado na literatura de economia política recente e pouco ou nada experimentado nas economias reais das últimas décadas, a democratização do capital.
A ênfase na riqueza e no capital decorre do diagnóstico de que as desigualdades extremas das últimas décadas se manifestam como concentração de renda e riqueza nos muito ricos. Isto, em parte, decorre de tratamento tributário privilegiado concedido à riqueza, o que facilita seu acúmulo, em parte, do incremento relativo de heranças e doações, o que mantém a riqueza concentrada em poucas mãos. A tributação desta poderia contribuir para dispersá-la sob a forma de uma herança social, a garantia a todos os cidadãos de uma herança mínima. Atualmente, mais de 50% da população é totalmente privado de riqueza líquida (uma boa parte, tem mais dívidas do que ativos). Por um lado, os cerca de 50% do PIB necessários, na estimativa de Piketty, para dar conta desse plano de justiça social se constituem em um baita desafio político; por outro lado, é cada vez mais clara a ausência de justificativas decentes para desigualdades tão intensas. Por exemplo, desigualdades extremas impedem o desenvolvimento, têm impactos negativos sobre coesão social, democracia, segurança pública, saúde, confiança interpessoal e qualidade do governo, entre outras dimensões já estudadas. Para o autor, o crescimento de alternativas populistas no mundo (a vitória eleitoral de partidos de extrema direita em países desenvolvidos e menos desenvolvidos) é sintoma de que se faz urgente a retomada de agendas igualitaristas, negligenciadas pelos tradicionais partidos social-democratas.
IHU On-Line – No artigo “Piketty 2.0, impostos progressivos e reforma tributária no Brasil pós-coronavírus”, a senhora diz que o enfrentamento das desigualdades requer um “esforço intelectual”, além de uma “decisão política”. Do ponto de vista intelectual, como a temática das desigualdades tem sido discutida no país?
Celia Lessa Kerstenetzky – Apenas recentemente o tema da tributação progressiva entrou no radar do pensamento crítico sobre a política social no Brasil. Durante muito tempo, estivemos capturados pela noção de que política social se faz com gasto, não com tributação. Criar impostos progressivos teria impactos negativos indiscutíveis sobre investimentos, empregos e renda. Se por um lado, avançamos razoavelmente na imaginação de políticas sociais redistributivas, a agenda tributária ficou refém dessa crença e nossa política social ficou dual, assim como a nossa distribuição de renda: uma parte bastante redistributiva, outra bastante regressiva, justamente a estratosfera onde residem os muito ricos.
Apenas com os dados recentes sobre a concentração da renda nos mais ricos, cuja divulgação por parte da Receita Federal e análise detalhada devem muito à publicação do livro de 2014 do Piketty (uma verdadeira revolução intelectual), é que está havendo correção de rota: busca de dados fiscais, proposição de políticas tributárias progressivas. Mesmo assim, tenho a impressão de que apesar de haver mais consciência e produção de dados e narrativas enfatizando a dimensão tributária, e mesmo revisão de teorias como a teoria da tributação ótima que previa a punição com menores investimentos e empregos aos impostos progressivos inclusive com fuga de capitais, ainda prevalece um certo derrotismo, uma convicção mal disfarçada de que não é politicamente viável tentar nada nessa direção em um país como o Brasil.
Sempre me vem a cabeça o trabalho do Gabriel Zucman sobre paraísos fiscais, que tem dado frutos extraordinários, como o recente esforço de coordenação de 135 países capitaneado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE para introduzir um imposto corporativo mínimo mundial e impor tributação às multinacionais nos países em que fazem negócios e não nos locais em que têm residência (os paraísos fiscais). Zucman não permitiu que a máxima “nada tente porque não é politicamente viável” interditasse sua imaginação, bem como impedisse a livre utilização de seus neurônios na busca de uma solução. As soluções precisam estar pensadas para quando o momento político as torne viáveis. Claro, é preciso investir em convencimento também: tributação progressiva não é jogo de soma zero (vide o século redistributivo), pode ser o arranjo que nos permita prosperar como sociedade, o bilhete de ingresso na civilização.
IHU On-Line – E do ponto de vista político, qual sua análise?
Celia Lessa Kerstenetzky – Como disse, precisamos de ideias que nos conduzam na direção desejada. A política é feita de interesses, certamente, mas também de valores e ideologias, além de crenças e avaliações. Interesses existem em diferentes dimensões temporais: há pessoas que se preocupam com as questões ambientais pensando no futuro de seus entes queridos, enquanto seus interesses imediatos, seus estilos de vida, não são sequer afetados. Há bilionários que desejam ser tributados mais do que os demais porque consideram isso mais justo, há outros que ponderam suas perdas pecuniárias, relativas ou absolutas, em termos de reputação ou mesmo concepções de vida boa, o desejo de viver entre iguais.
Seja como for, precisamos de um discurso em defesa de uma agenda redistributiva que seja capaz de sensibilizar amplos segmentos da população, incluindo os mais pobres e a classe média, que, mesmo esses, os “ganhadores” imediatos, não dispõem de informações e interpretações suficientes sobre os benefícios desses tributos para toda a sociedade. Os pobres desconhecem que pagam por cada real que ganham e a classe média desconfia que em uma reforma tributária progressiva seguirá pagando o pato apesar de não se beneficiar. O importante é esclarecer que financiar estavelmente todos os bens públicos sociais (que deverão estar disponíveis para todos sem exceção) compatíveis com um contrato eco-social mais justo requer uma contribuição bem maior dos mais ricos do que a que eles têm sido convocados a oferecer.
IHU On-Line – Os efeitos da crise pandêmica trouxeram à pauta a discussão sobre a implementação de uma renda básica universal sem condicionantes. Como a senhora avalia esse tipo de proposta?
Celia Lessa Kerstenetzky – Sou favorável à introdução de uma renda mínima garantida, como direito social, algo cuja necessidade ficou patente na crise pandêmica. Filosoficamente, sou favorável ao universalismo na política social, mas acho que a tradução do universalismo em política social concreta é polissêmica. Minha preferência por uma renda básica universal (e não exclusivamente uma renda mínima garantida, à qual terão acesso apenas os que dela necessitarem) é lexicamente inferior à minha preferência por serviços sociais públicos universais.
Isto significa que se o alcance da primeira prejudicar o alcance da segunda, é a primeira que deve se ajustar. Nas minhas contas, o déficit em serviços de educação e saúde no Brasil para realizarmos os direitos sociais consagrados na Constituição equivale a cerca de 8% do Produto Interno Bruto – PIB; uma estimativa do IPEA para uma renda básica de cidadania relativamente generosa no Brasil alcançaria algo em torno de 7% do PIB – somando as duas parcelas, um adicional de tributos da ordem de 15% do PIB teria que ser arrecadado, de forma progressiva, para fazer frente aos dois desafios simultaneamente. Contrato social é acordo, prefiro que os 8% do PIB para os serviços sejam a parcela inegociável do trato. Justifico minha posição por crer que os benefícios dos serviços são múltiplos – bem-estar, realizações, bons empregos e salários, sociabilidade e igualdade social –, além de se constituir em uma forma indireta de renda (exigindo menos renda para a satisfação de necessidades e aspirações).
IHU On-Line – Que tipo de políticas precisariam ser implementadas no Brasil para enfrentarmos as desigualdades sociais, para além da desigualdade de renda?
Celia Lessa Kerstenetzky – Há algum tempo venho escrevendo sobre um modelo de desenvolvimento mais igualitário no Brasil, baseado justamente na expansão dos serviços sociais públicos, financiados por tributação progressiva. Trata-se de atender a necessidades sociais longamente reprimidas por meio da expansão de empregos públicos em serviços sociais, que são empregos de boa qualidade, formais e com rendimentos médios elevados e desigualdades salariais não muito elevadas. Há vários benefícios relacionados a essa via, que é capaz de sustentar uma coalisão social e politica ampla, incluindo os beneficiários de serviços de qualidade que não precisarão buscar adequação na oferta de serviços privados. A ênfase em serviços, ademais, não é gratuita: hoje no mundo todo este é o setor econômico que mais se expande e onde tendem a se localizar os empregos que estão desaparecendo na indústria e na agricultura.
IHU On-Line – Quais são as críticas que Piketty faz à social-democracia? O que a impediu, em diferentes países, de enfrentar as desigualdades sociais?
Celia Lessa Kerstenetzky – Social-democracia para ele são os partidos de centro e centro-esquerda na Europa e América do Norte. Segundo ele, todos se envolveram de modo acrítico com a globalização, sem atentar, por exemplo, para a necessidade de coordenação internacional na área dos tributos, algo que teria viabilizado a (re)introdução de tributação progressiva sobre a riqueza. Esses partidos tampouco ousaram no âmbito de políticas de “circulação da propriedade”, algo que poderia ter mitigado a concentração da riqueza das últimas décadas.
A crítica ao socialismo real (ou ao estado do bem-estar do pós-guerra e sua onda inicial de estatizações) empreendida por esses partidos os teria empurrado para uma posição de adesão aos supostos benefícios dos mercados e mesmo a certas pautas da Revolução Conservadora (de Reagan e Thatcher), como a queima de riqueza pública via privatizações. Com a perda dessas duas pautas (tributação progressiva e democratização do capital), a agenda redistributiva teria minguado e esses partidos se teriam convertido nos partidos dos “ganhadores” da globalização, os trabalhadores mais escolarizados e os capitais, os dois “fatores econômicos móveis”. É uma crítica um pouco genérica e simplificadora de alguma heterogeneidade no campo social-democrata, mas com a qual eu tendo a concordar.
IHU On-Line – Piketty critica tributações que acentuam as desigualdades sociais. Como, através de novos modelos tributários, seria possível reduzir as desigualdades e viabilizar uma reforma fiscalmente justa? Que propostas se aplicariam ao Brasil?
Celia Lessa Kerstenetzky – Piketty propõe o retorno aos parâmetros tributários da revolução fiscal do século XX: aumento em importância e progressividade dos tributos progressivos – IR, imposto sobre herança e imposto sobre a riqueza, neste último caso com a introdução de impostos sobre a riqueza financeira, não apenas sobre o patrimônio. Ele propõe ainda a completa eliminação dos impostos indiretos, que são regressivos, de forma que a tributação incidisse exclusivamente sobre renda e riqueza. O impacto esperado é direto e indireto: diretamente, uma redução da desigualdade de renda e riqueza em função das alíquotas mais altas sobre as altas rendas e altos ativos; indiretamente, a arrecadação daí resultante poderá financiar as políticas redistributivas típicas do welfare state. Há um terceiro impacto esperado, que seria um impacto dissuasório: altas alíquotas podem desencorajar a busca por altos ganhos por parte dos agentes econômicos.
Todas essas ideias podem e devem ser discutidas no debate brasileiro. Por exemplo, a redução do peso dos impostos indiretos me parece imprescindível. Na situação atual, os mais pobres sustentam o estado fiscal de modo desproporcional (cerca de metade da tributação no país recai sobre impostos indiretos, na OCDE essa proporção é um terço). Nossos tributos diretos são muito pouco progressivos, a rigor apenas o IR é de fato progressivo e mesmo assim só até um certo ponto na distribuição de renda, pois os muito ricos pagam uma proporção inferior à classe média e grupos mais pobres da população. Isto ocorre porque boa parte da renda deles é formada por rendimentos do capital que são isentos de tributação. Impostos sobre propriedade são insignificantes na comparação internacional. Não é aceitável que uma reforma tributária no país das desigualdades extremas passe ao largo da introdução de progressividade tributária.
Fonte: IHU On-Line
Texto: Patricia Fachin
Data original da publicação: 28/01/2021