Democracia e capitalismo em tempos de desigualdade crescente

Hoje está nítida a associação entre uma piora da distribuição de renda nos países desenvolvidos e a progressiva implantação da pauta neoliberal. A crise de 2008, ao invés de deter o processo, como nos anos 1930, veio a acelerá-lo.

Carlos Silveira

Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 01/03/2018

O tema da desigualdade para muitos economistas, digamos ‘mainstream’, é um não tema. Não deveria fazer parte, consideram das preocupações desses especialistas ungidos à categoria de profetas do pensamento pelo Deus Mercado. Uns veem até uma séria ameaça à teoria econômica, como o Nobel da Teoria das Expectativas Racionais, Robert Lucas[1]. Outro, nosso autóctone, ridiculariza: “Desigualdade, para mim, é inveja”[2]. Outros ainda afirmam que problema é apenas a pobreza, não a desigualdade, até porque depois o bolo cresce e dá para todos[3], em versões da célebre frase com que Delfim Netto, em seus tempos de ministro da ditadura enunciou e, agora nega: primeiro vamos fazer o bolo crescer, depois o distribuímos. E ainda há os que vêm não só naturalidade na desigualdade, mas virtuosidade. Von Mises chega a escrever a um político: “Você tenha a coragem de dizer às massas o que nenhum politico disse: vocês são inferiores e todas as melhorias em suas condições de vida que você simplesmente assume como garantidas, você deve ao esforço de homens melhores do que você.”[4]

Uma versão mais moderna do darwinismo econômico e social das versões do primeiro parágrafo é apresentada sob a máscara da “meritocracia” que Thomas Piketty critica com dados e conhecimento em seu mais conhecido livro[5], lembrando que ela seria antes uma “heritocracia”, palavra, aliás, que ele não escreveu, mas que podemos derivar de sua narrativa.

Entretanto, o tema, razoavelmente esquecido até por volta do ano 2010, ressurgiu com muita força nesta década. As razões são complexas, mas, sem dúvida, o aprofundamento da desigualdade nos países centrais do Ocidente (com a China o cenário não é tão nítido, mas nos últimos anos já se manifesta uma tendência à concentração) explica o porquê do interesse crescente por essa discussão antes restrita a um “gueto” de acadêmicos de fora do “mainstream”. Thomas Piketty foi o símbolo dessa virada na discussão pública. Seu livro vendeu como água– um compêndio de mais de 500 páginas, muitas vezes maçante e com um excesso de gráficos de mais difícil digestão pelo grande público. Sua influência foi enorme e, creio, contribuiu para que a receita federal que, até então, se recusava a permitir estudos a partir dos dados do imposto de renda, o autorizasse a partir da crítica que Piketty fez a absurda negação.

Hoje está clara a associação entre uma piora da distribuição de renda nos países desenvolvidos e a progressiva implantação da pauta neoliberal. Em qualquer medida que se use, o formato de “sino invertido” aparece quando se toma um período histórico longo entre desde os anos anteriores á crise de 1929-33 até os anos recentes para os países anglo-saxões, Estados Unidos à frente, vanguarda. Seja utilizando o índice Gini, seja o valor do 0,1 % do extrato superior de riqueza ou os 10 % do extrato superior da renda. Em qualquer das três medidas usuais, o formato nos gráficos é aproximadamente o mesmo. O Gráfico 1, encontrado em Piketty (2014) e que toma os 10 % superiores na escala de distribuição para países anglo-saxões, mostra que a apropriação da renda (mas também da riqueza) pelas camadas superiores cai nos anos 30 e 40, estabiliza-se entre os 40 até o início dos 80. O Gráfico 2 da WID (2017), mostra que o mesmo se dá quando se toma o 1 % superior. De 1980 em diante, quando se inicia o período neoliberal cujos demiurgos foram Reagen e Thatcher, há uma forte e crescente tendência ao aprofundamento da concentração da renda e da riqueza nas camadas superiores.

E a crise de 2008, ao invés de deter, ou inverter o processo, como acontecera nos anos 30, inclusive pela desvalorização da riqueza causada pelo “crash”, ao contrário, veio a acelerar o processo. Os números da Oxfam, por mais que se possa criticar aspectos metodológicos e dificuldades com os dados tomados no plano mundial, são tão extremos que não há como acreditar na forte tendência à concentração da renda e da riqueza. Desde quando passaram a usar o indicador que mostraria o número de bilionários que concentra o equivalente à riqueza de 50 % da riqueza dos mais pobres no mundo, esse número caiu de 280 em 2010 para 8 em 2017[6]. O Credit Suisse não traça o histórico, mas também conclui que apenas 1 % da população mundial detém 50 % da riqueza. São números assustadores e confirmam Piketty que mostrava uma regressão aos padrões do século XIX da Europa.

E, mais ainda, o que nem sempre é associado aos números da renda e da riqueza, a concentração do capital assume números espantosos. Na maioria dos setores mais avançados são três, duas e até uma só empresa a dominar o mercado mundial. As novas tecnologias só têm acelerado esse processo, confirmando a visão de Marx de que o processo de concentração e centralização do capital é processo inerente a essa forma de produção sob o acicate da concorrência e o poder do capital acumulado. Esse fator é ainda mais importante para explicar a concentração nos fatores em que se concentram as medições: a renda e a riqueza. E mais, é fator fundamental para entender aqueles fatos da vida econômica, social e política em que a medição é muito difícil, senão impossível: o poder político; o poder de comunicação; o poder na mídia; o poder no sistema judicial.

Na Europa continental, o “sino invertido” não foi observado (Gráficos 3), estendendo-se o período virtuoso até anos mais recentes, mas a tendência concentradora já começa a se manifestar porque a maior força política dos trabalhadores e a experiência terrível da Segunda Guerra Mundial trouxeram uma noção de igualdade mais poderosa e que só agora, nos ventos da crise de 2008 e da globalização, começam a ser desmanchados[7]. A social democracia que juntou capitalismo e democracia nesse período já mostra sérias fraturas e as estatísticas de concentração já começam a revelar uma inclinação para cima.

As reformas trabalhistas e previdenciárias que, nos anos 2000, alcançaram os países europeus em diferentes graus, desde a Alemanha e os países nórdicos, em versão digamos “light”, chegando mais radicalmente à Grécia, à Espanha e, mais recentemente, com Macron, à França, evidenciam a quebra do arranjo político e social que permitiu domar até há pouco as leis férreas do capitalismo em suas tendências intrínsecas à concentração[8] durante muito tempo no pós-guerra.

Em livro de 2010, Wilkinson e Pickett[9] estabeleceram correlações para os países da OECD entre o índice de Gini medido para cada país e o grau de negatividade de aspectos da vida material e social. A sintonia entre melhores índices e menor desigualdade e vice-versa é impressionante. Os índices são bastante variados, como por exemplo: doenças mentais; mortalidade infantil; taxa de homicídios e de aprisionamento; questões sociais e de saúde; obesidade; taxa de gravidez na adolescência; dentre outros. Ao discutir desigualdade estamos, portanto, discutindo o grau de civilidade de uma sociedade, de seu bem estar.

Entendo que o palco da discussão, nos dias que correm, entre esquerda e direita, nos termos de Bobbio, qual seja, a esquerda atua em favor da maior igualdade, enquanto a direita acha a desigualdade natural[10], terá nessa questão um elemento central da luta cultural e ideológica. O neoliberalismo precisará reforçar os mecanismos culturais e ideológicos com que foi vitorioso até a crise, mecanismos esses que Dardot e Laval descreveram extensivamente em seu livro[11].

As reações já começaram, mas têm sido insuficientes para deter o movimento pró-capital sem barreiras. O desmonte do Estado de Bem Estar Social está em pleno andamento com uma oposição crescente, mas ainda dividida entre um fascismo de direita atualizado, e uma esquerda que ainda não soube, de fato, reagir.

Acho que o Brasil e a América Latina estão no mesmo diapasão, mutatis mutantis. Macri e Temer, o primeiro eleito, o segundo produto de um golpe “moderno”, estão progridem na pauta neoliberal. No Brasil, a resistência é travada por uma subsistência, inclusive nos maiores prejudicados com a pauta regressiva de Temer, em razão da subsistência de uma crença no indivíduo, na proscrição do Estado como o mal sob o manto da anticorrupção, e a incapacidade de integração orgânica da população trabalhadora para defender seus direitos. Lula é um ponto da resistência, mas a situação do Brasil e do Mundo já não é a mesma de 2003.

O projeto socialdemocrata parece desaparecido no quadro ideológico do empresariado no Brasil e no mundo. O conjunto de elementos que possibilitaram aquela experiência única na história do capitalismo vem se dissolvendo como areia na água. Força dos sindicatos, experiência de crença num país que aceito preço a ser pago por uma “sociedade civilizada”[12] que leva a uma tributação altamente progressiva, regulação das atividades econômicas, particularmente, as financeiras, compromisso social com do combate à pobreza à preocupação com a saúde, educação e velhice, não constam mais da pauta dos interesses dominantes. Parecem considerar que o cassetete é um substituto mais barato e mais eficiente para uma “gestão” competente de domínio social e político. Na nossa sociedade, à qual se junta, ademais, as heranças de um sistema escravocrata, maravilhosamente representada pela Escola Paraíso do Tuiuti no desfile de domingo de carnaval no Rio de Janeiro[13], os capitães do mato darão conta do recado, na mídia, nas polícias, no Judiciário, na política e, por suposto, nas relações de trabalho.

A esquerda precisa reconhecer seu enfraquecimento diante da blitz conservadora em termos políticos, sociais e culturais, e neoliberal em termos econômicos. 2003 não se repetirá, sequer como farsa. E, encontrar o seu eixo diante do desgaste dos três grandes padrões organizatórios da sociedade que caracterizaram os tempos do pós-segunda guerra mundial: a experiência do socialismo real; a experiência social democrata; e a mais recente, em crise, mas ainda dominante, experiência neoliberal. É uma tarefa difícil e que, sem dúvida custará sangue, suor e lágrimas. O que não chega a ser um fato novo, olhando-se o passado mais longínquo.

Notas

[1] “Entre as tendências mais daninhas à sólida teoria econômica, a mais sedutora e, na minha opinião, a mais venenosa, é o foco nas questões distributivas”. In Wade, 2014.

[2] José Márcio Camargo em uma de suas aulas. Duvidam? Aqui o trecho: https://www.youtube.com/watch?v=ZJKn6CHxBb8

[3] Deirdre McCloskey em entrevista ao Valor Econômico, 24/11/2017.

[4] In Wade, 2014.

[5] In Capital no Século XXI, 2013

[6] oxfam

[7] Segundo o WID, a concentração nos 10 % superiores da Europa passa de 33 % em 1980 e 1995 para 37 % em 2015. E nos 1 % superiores sobe de 9 % em 1982 para 12 % em 2014.

[8] Streeck, 2013

[9] Wilkinson e Pickett, 2010.

[10] ““O igualitário parte da convicção de que a maior parte das desigualdades que o indignam, e que gostaria de fazer desaparecer, são sociais e, enquanto tal, elimináveis; o inigualitário, ao contrário, parte da convicção oposta, de que as desigualdades são naturais e, enquanto tal, inelimináveis.” (Bobbio, 1995 )

[11] Dardot e Laval, 2013

[12] Oliver Holmes, juiz da Suprema Corte dos EUA, 1919: “Impostos são o que pagamos para ter uma sociedade civilizada”.

[13] O enredo se chamou : “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?”

Referências

OXFAM, Na economy for the 99 %.  Capturado em https://d1tn3vj7xz9fdh.cloudfront.net/s3fs-public/file_attachments/bp-economy-for-99-percent-160117-en.pdf

BOBBIO, Norberto, Left and right – the significance of a political distinction. The University of Chicago Press, 1993.

Wade, Robert H. The Piketty phenomenon and the future of inequality. In Real World Economic Review, n.69. 2014.

Keynes, J.M. The economic consequences of peace. Freeland Press, 2015.

Dardot, P. e Laval, The new way of the World: on neoliberal society. French Voices, 2013.

treek, W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. Coimbra: Actual. 2013

Wilkinson e Pickett. The Spirit Level: Why More Equal Societies Almost Always Do Better, New York: Allen Lane. 2009.

Piketty, T. Capital no Século 21. Intrínseca Editora. 2014

WID – World Wealth and Income Database. Dados disponíveis em http://wid.world/

Carlos Silveiraé economista. M.A pela New School for Social Research. Doutor pelo IE/Unicamp;

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