‘Deixa a molecada estudar, presidente’: a infância na mira da exploração do trabalho no Brasil

Fotografia: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A regulamentação da jornada de trabalho infantil em âmbito legal não pode ser considerada ‘normal’ ou desejável.

Julice Salvagni e Marilia Verissimo Veronese

Fonte: Sul 21
Data original da publicação: 18/02/2022

Em 2017, a ONU declarou que 2021 seria o “Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil”, iniciativa alinhada com a Agenda para o Desenvolvimento Sustentável (2015-2030). No Brasil, há uma legislação consistente que protege crianças e adolescentes, como é o caso da Lei nº 8.069 – Proteção da Infância e Juventude, também conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA. Além desta, há ainda como medida protetiva o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), no âmbito da Lei Orgânica da Assistência Social (nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993). Apesar dessas instâncias legais, na prática, lamentavelmente o Brasil caminha na contramão desses esforços internacionais. 

Jair Bolsonaro, que (absurdamente, dada sua total inépcia para o cargo) ocupa a presidência da república no Brasil, voltou a defender em transmissão ao vivo o trabalho infantil ao afirmar: “deixa a molecada trabalhar, poxa. Eu trabalhei, outro dia eu falei que aprendi a dirigir com 12 anos de idade”. Tal argumento é uma crítica ao ECA, que permite o trabalho apenas para adolescentes a partir dos 16 anos, abrindo precedente aos que tiverem 14 anos apenas na categoria de aprendiz.

A regulamentação da jornada de trabalho infantil em âmbito legal não pode ser considerada “normal” ou desejável. Há uma confusão, que não é espontânea, mas intencional, por parte os que defendem a regulamentação do trabalho infantil. Como no caso da fala do presidente, esses agentes políticos costumam usar exemplos próprios de “trabalho” exercido de forma precoce. Dirigiu o carro da família; fez brigadeiro para vender; colou uma barraquinha de limonada em frente de casa, são situações normalmente usadas para fazer referência às experiências tidas como laborais. Só esquecem, propositalmente, de mencionar que os trabalhos feitos por eles, como dirigir o carro dos pais ou ajudar na empresa familiar, eram atividades exercidas de forma pontual e supervisionada, o que normalmente não prejudica o desenvolvimento, os estudos ou o tempo livre da criança. Por outro lado, a regulamentação do trabalho infantil refere-se a regimes de um trabalho controlado, acelerado e fatigoso. Ou seja, presume-se estar falando do mesmo tipo de trabalho para defender, na verdade, modelos de práticas laborais totalmente diferentes. Ainda que seja totalmente inaceitável o trabalho infantil de caráter informal, a sua regulamentação tomaria proporções catastróficas.

A despeito da informalidade, as atividades em ascensão que são intermediadas pelas plataformas digitais têm se tornado um amplo espaço de pulverização do trabalho infantil. Sendo essas plataformas marcadas pela ausência de vínculo trabalhista, a relação de trabalho passa a ser informal e impessoal, podendo facilmente ser realizada por adolescentes com menos de 16 anos sem que haja qualquer tipo de fiscalização ou controle. O trabalho nas ‘fazendas de cliques’, por exemplo, que paga valores irrisórios por números de acessos, curtidas e comentários, é feito a partir de casa, por qualquer pessoa, em um formato anônimo e invisível. 

Cabe destacar que, apesar de ser um trabalho que usa um recurso digital, não passa de uma atividade meramente repetitiva, que pode estender-se em longas jornadas, sem qualquer garantia trabalhista. É certo que a informalidade, tão marcante ao contexto brasileiro, sempre abriu precedentes ao trabalho infantil, muito antes do advento da tecnologia. O risco agora é que essa possibilidade de trabalho precária possa ser ampliada exponencialmente, tornando-se mais um espaço predatório com potencial de cooptação das crianças e adolescentes, até mesmo sem manter o caráter explícito de ‘trabalho’.

Até mesmo a dinâmica de trabalho que é naturalizada no caso de crianças e adolescentes no contexto rural e nas populações ribeirinhas distancia-se em muito de um trabalho pesado e com compromissos de produção ou desempenho elevados. Ainda que possa ser considerado trabalho, ajudar a família com as atividades cotidianas supõe o acompanhamento dos pais ou responsáveis, situando-se num campo de socialização específico, em grupos sociais específicos. Está-se falando aqui de coisa diferente, de crianças que abandonam a escola para trabalhar e são eventualmente exploradas em atividades inadequadas para sua etapa do ciclo de vida. Assim, qualquer culpabilização dos pais ou responsáveis por crianças que exercem trabalho infantil é inadequada, já que eles/as também estão expostos à pobreza e à desigualdade de oportunidades, gerando-se um ciclo de pobreza intergeracional de difícil solução.

Ao defender a inclusão formal das crianças e adolescentes no modelo produtivo vigente, se está assumindo a possibilidade de expô-los a um contexto de sobrecarga de jornada, de risco iminente de acidentes e de pressão por produtividade. Tal apropriação do capital de um tempo tão singular da vida humana que é a infância, mostra-se como verdadeiro retrocesso, lembrando a primeira fase do capitalismo industrial, em que crianças trabalhavam nas fábricas sem qualquer cuidado, igualando-se aos adultos. A sociedade moderna, ao conceber um olhar distinto à infância e à adolescência, já compreendeu a importância do tempo do lúdico, do brincar e do aprender, que são opostos de uma jornada de trabalho adulta.

No período da primeira revolução industrial, crianças poderiam começar a trabalhar nas fábricas aos seis anos de idade em jornadas exaustivas. Os salários eram inferiores, correspondendo à quinta parte da remuneração dos operários adultos, já bastante baixa. Além disso, as condições de trabalho eram precárias e as crianças estavam expostas a acidentes graves, doenças ocupacionais e mesmo a castigos físicos por parte dos patrões ou da polícia, se tentavam fugir. 

Fundamental enfatizar que hoje, graças às lutas dos/as trabalhadores/as, o trabalho infantil é ilegal, representando uma grave violação dos direitos humanos e dos princípios fundamentais de dignidade humana básica. A ausência de fiscalização das cadeias produtivas e das condições de trabalho ao redor do mundo já abrem um precedente inadmissível à sua incidência. Só em 2020, 160 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos foram vítimas de trabalho infantil no mundo (97 milhões de meninos e 63 milhões de meninas). Ou seja, há uma urgente demanda em se adotar medidas protetivas a esse grave problema social. No entanto, por meio de pronunciamentos deploráveis, o atual governo brasileiro segue implicado na naturalização de um cenário que pode ser considerado criminoso, pois priva as crianças de sua infância tal como, jurídica e moralmente, a concebemos hoje.

Mas afinal, o que eles querem? Sendo o contexto atual de uma incabível escassez de postos de trabalho, por que ampliar a força produtiva? A resposta é aterrorizante: as crianças e adolescentes oferecem uma opção produtiva “mais em conta” ao capital. Para sobreviver, o modelo econômico neoliberal depende da manutenção de uma lógica de lucros baseada no crescimento exponencial. Assim, não basta só estar acumulando riqueza e ainda contar com um exército de reserva, parafraseando Marx. Eles querem ainda mais: o objetivo é ampliar a margem de lucros em um contexto de acumulação capitalista global. Com isso, o aumento das populações em situação de extrema vulnerabilidade gerado por essa dinâmica, parece não importar. Pelo contrário, em comum acordo com a elite financeira, o atual pacto político ignora veemente as desigualdades sociais brasileiras.

Ao invés de promover espaços de educação, recreação e lazer, a política retrógrada do atual governo prefere fomentar a via a exploração da força do trabalho infantil. O Brasil precisa de políticas públicas que garantam às crianças e aos adolescentes acesso à educação formal, às artes, ao esporte, aos eventos culturais e aos espaços reflexivos de ensino. Eles/elas precisam de espaços criativos e não opressivos, para que a profissionalização seja efetuada em condições de dignidade, adequadas à cada faixa etária. Precisam estar diante da apropriação de conhecimentos, não da exigência de metas produtivas. Merecem ser signatários da sua própria definição de liberdade, não cerceados por regras de cominação e controle.  A educação, neste caso, é o extremo oposto da exploração e o melhor caminho para combater as desigualdades a longo prazo. 

Julice Salvagni é Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Professora Adjunta no Departamento de Ciências Administrativas e no Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da UFRGS.

Marilia Verissimo Veronese é Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS). Professora Titular do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UNISINOS.

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