Debate econômico superará velhas fórmulas?

Não há sentido em estatizar tudo, mas setor público precisa gerir a infraestrutura e as políticas sociais e deve regular a produção material e intermediações.

Ladislau Dowbor

Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 15/12/2021

Ainda que seja repetitivo, voltamos aqui ao resumo que fizemos no início desse trabalho*, porque as amarrações são essenciais na visão de conjunto. O que vimos são vinte setores, que agrupamos em quatro áreas: produção material, infraestruturas, serviços de intermediação e políticas sociais. Vimos alguns traços gerais de cada setor, o suficiente para entender a que ponto os diversos setores, e particularmente as diversas áreas, têm especificidades que levam a formas de organização diferenciadas. Resumir as formas complexas de organização econômica de uma sociedade moderna a alternativas entre o poder do Estado e o poder da corporação, com algum complemento de organizações da sociedade civil, simplesmente não resolve. As articulações são mais complexas, e sobretudo diferenciadas.

Retomando, a área de produção material é de forma geral organizada em unidades empresariais, baseadas em propriedade privada e reguladas por mecanismos de mercado – e crescentemente dentro de um marco regulador do Estado, particularmente nos setores que lidam com recursos não renováveis e de oferta limitada, como no caso das atividades com forte impacto ambiental. O mercado continua a desempenhar um papel importante na organização econômica e social, mas temos de entender as suas limitações, em particular quando vários setores passam a ser dominados por gigantes que eliminam a concorrência e se tornam forças políticas. Aqui passa a predominar a arbitrariedade, pois os interesses não são limitados nem por mecanismos de concorrência de mercado, nem por regulação e planejamento públicos.

As unidades empresariais, por sua vez, dependem, para a sua produtividade, de redes que as sustentem, constituídas por infraestruturas de transporte, de energia, de comunicação e de água e saneamento, que permitem que as unidades empresariais interajam e constituam um sistema econômico articulado. Essa área, que é a que pode assegurar a coerência estrutural de um tecido econômico composto de milhões de empresas, bem como serviços essenciais para as famílias, precisa responder a uma lógica sistêmica e de longo prazo. É constituída por redes que cobrem o território com suas diversas especificidades, e para não serem capturadas por interesses privados precisam obedecer ao interesse público mais amplo. Nesse sentido, é uma área de dominância do Estado, de propriedade ou controle público e regulada por uma mão muito visível, o planejamento democrático, que permite que a sociedade e os diversos agentes interessados tenham a visão dos projetos e possam equilibrar os interesses.

Essas duas áreas, por sua vez, dependem de uma área que se tornou dominante no conjunto da economia, crescendo e absorvendo recursos muito maiores do que a sua contribuição produtiva, que são os serviços de intermediação. Nessa área que facilmente se transforma em economia do pedágio, é essencial assegurar sistemas equilibrados de contrapesos. Onde funcionam, constituem sistemas mistos, com forte presença estatal, como, por exemplo, no caso da intermediação financeira, com grandes bancos públicos de investimentos e redes de bancos cooperativos ou de caixas locais de poupança, de maneira a reduzir os processos especulativos ou as práticas extorsivas de grupos privados. Além da constituição de sistemas mistos, é vital que haja sistemas de regulação muito operantes, obrigação legal de transparência (disclosure) e sistemas de auditoria correspondentes. É importante entender que a máquina pública deve participar das atividades como agente direto, sem o que não terá “dentes” para regular o conjunto. Sistemas ágeis de intermediação podem facilitar imensamente o funcionamento de todas as atividades econômicas, mas podem com a mesma facilidade passar a cobrar pedágios e travar o desenvolvimento, pois praticamente todas as atividades econômicas devem, de uma maneira ou outra, passar por suas mãos, como hoje constatamos tanto na esfera da finança internacional como no sistema bancário no Brasil. Essa necessidade de controle e regulação vale também para os outros intermediários, como os setores do comércio, de serviços jurídicos ou de informação.

A quarta área que vimos é a das políticas sociais, que constituem um investimento nas pessoas. Ainda há pouco tempo vistas como secundárias ou como representando “gastos”, hoje, com a complexidade cada vez maior de todas as atividades econômicas e das profissões, já se entende que as políticas sociais constituem uma condição prévia essencial do funcionamento de todos os setores, os sociais inclusive. Essa área está se agigantando, e pela sua dimensão de capilaridade – tem de chegar a cada indivíduo, a cada criança, a cada idoso – e pelo seu profundo enraizamento nas culturas locais ou regionais, necessita simultaneamente de uma forte dominância do setor público, ou comunitário não lucrativo, de sólidas articulações com movimentos sociais e de sistemas descentralizados de gestão participativa. A oportunidade que abre a urbanização, em termos de facilidade de gestão descentralizada e menos burocrática, é particularmente importante.

O que transparece também, nas quatro áreas e vinte setores analisados, é que, contrariamente ao ditado popular de que tamanho não é documento, em economia o tamanho importa muito. O dilema colocado pelos gigantes corporativos, que geram oligopólios suficientemente poderosos para se apropriar de ministérios, de segmentos do Legislativo, da grande mídia e até de áreas do Judiciário, e que passam a cooptar as instituições reguladoras como o Banco Central, ou as agências nacionais, como Anatel e outras, é que deformam profundamente o objetivo central da economia, que é promover um desenvolvimento equilibrado e sustentável. Assim a pequena e a média empresa, flexíveis e capilares em termos de adaptação às necessidades de cada localidade e nicho de mercado, podem perfeitamente ser deixadas à regulação pela concorrência, enquanto os gigantes têm de ser controlados, para evitar, por exemplo, a crise provocada pelas corporações financeiras ou os escândalos das grandes empresas farmacêuticas e dos planos de saúde, bem como das gigantescas plataformas de comunicação.

No conjunto, a ideia-chave que aqui trazemos é que precisamos evitar a redução das opções à privatização ou estatização, e entender que diversas áreas e setores de atividades econômicas exigem mecanismos diferenciados de regulação e pesos diferenciados da intervenção pública ou da iniciativa privada, ou ainda das organizações da sociedade civil, que passam a desempenhar um papel-chave nas políticas sociais. Frequentemente, quando os problemas nos parecem demasiado complexos, apelamos para muralhas ideológicas, nos tornamos ideologicamente privatistas ou estatistas, o que nos permite assumir posições sem precisar entender a complexidade. Diferenciar os problemas, entender as especificidades, ajuda a construir novos rumos no que temos chamado de articulação de mecanismos diferenciados de gestão, e que Ignacy Sachs, por exemplo, chama de economia mista. O bom senso e a busca mais equilibrada do que funciona melhor ajudam bastante. E temos excelentes exemplos internacionais em todos os setores.

Da mesma forma como analisamos previamente como os diversos setores da economia podem ser planejados e organizados de maneira mais produtiva, podemos apresentar os impactos negativos da fragilidade das políticas atuais, centradas nos interesses de curto prazo das elites em vez de uma visão de desenvolvimento sustentável de longo prazo. Em outros estudos, resumimos os desajustes atuais, em particular com os artigos “A burrice no poder”, “A economia desgovernada: novos paradigmas”. Lembremo-nos uma vez mais de que o problema do Brasil não é o de pobreza, de falta de recursos. Se dividirmos o PIB de 2019, 7,3 trilhões de reais, pela população, 212 milhões, constatamos que o que hoje produzimos é da ordem de 11 mil reais por mês por família de quatro pessoas. O que hoje produzimos é suficiente para assegurar uma vida digna e confortável para todos, bastando para isso reduzir moderadamente a desigualdade absurda que assola o país.

Nesse sentido, o nosso problema não é propriamente econômico, é essencialmente um problema de organização política e social. As elites que se eternizam no poder, com pequenos intervalos, simplesmente preferem se apropriar e se sentar em cima das riquezas do que desenvolvê-las. Isso nos leva a uma dimensão mais ampla. Pensando na análise das quatro áreas e vinte setores que vimos neste livro, trata-se, de certa maneira, dos diversos instrumentos, do piano, dos violinos, dos poderosos tambores, cada um com seus potenciais diferenciados. Mas, para termos uma música que faça sentido, uma orquestra afinada, é indispensável que tenhamos não só partituras claras, mas também um chefe de orquestra que harmonize o conjunto. E quando temos um chefe de orquestra que não conhece os instrumentos e não sabe ler partituras, o sistema desanda. Ou seja, as políticas setoriais têm de se desenvolver de maneira equilibrada, para que a complementariedade e sinergia das várias áreas permitam um desenvolvimento dinâmico e equilibrado. Para isso, temos de assegurar uma gestão que faça sentido, o que chamamos de políticas econômicas.

O maestro, nesse caso, é o Estado.

Nota

* Este texto é o sexto capítulo da obra O pão nosso de cada diade Ladislau Dowbor

Ladislau Dowbor é economista, professor da PUC-SP e consultor de várias agências da ONU, governos e municípios. Os seus trabalhos estão disponíveis online (OpenAccess) no site dowbor.org

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