A taxa de desemprego continua em queda, mas sem um salto na economia a tendência pode se reverter.
Luiz Antonio Cintra
Fonte: Carta Capital
Data original da publicação: 06/01/2014
Dois mistérios rondam o mercado de trabalho brasileiro. A economia cresce pouco desde 2011, mas a taxa de desemprego continua a bater sucessivos recordes de baixa. Na última pesquisa divulgada pelo IBGE, de outubro, houve novo recuo e o desemprego no mercado brasileiro foi calculado em 5,2%. Por outro lado, crescem regularmente os desembolsos do seguro-desemprego, que, ao menos em tese, deveriam cair diante do mercado de trabalho aquecido.
Uma perspectiva mais ampla permite perceber com mais nitidez os contornos da situação atual, que, para os especialistas, têm a ver com mudanças estruturais da sociedade e da economia. Comparado a outubro de 2003, o quadro de fato mudou radicalmente. Àquela altura o desemprego era mais de duas vezes maior que o do mesmo mês deste ano, estava em 13%. Entre um momento e outro, a massa de trabalhadores ocupados passou de 80 milhões para os atuais 95 milhões, crescimento de 19% na década, segundo calcula o economista Naercio Menezes Filho, coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper. “Vários fatores explicam a dinâmica atual do mercado, a começar pelo crescimento menor da população, principalmente das camadas mais jovens e com menor grau de instrução”, diz Menezes Filho. “E também devido ao fato de a ascensão da classe C ter aumentado muito a procura por serviços, setor que demanda muita mão de obra de baixa escolaridade.”
Outra mudança estrutural foi a redução da taxa de informalidade, traço característico do mercado de trabalho no País, ainda elevada quando comparada aos países desenvolvidos, mas também em declínio: os trabalhadores com carteira assinada representam hoje 63% dos assalariados, ante 53% em 2003.
Uma das resultantes do novo contexto foi o maior fôlego dos sindicatos nas negociações anuais de recomposição salarial. Em 2012, a despeito do crescimento do PIB ora em revisão para 1,5%, a maioria esmagadora (95%) dos acordos monitorados pelo Dieese conseguiu reajustes superiores à inflação do período anterior. Em 2001, apenas 20% das negociações iam além das perdas inflacionárias.
“Vivemos outro momento, com mudanças estruturais importantes, que tornaram o mercado menos sensível à conjuntura. No ano passado, a renda dos assalariados cresceu 5%, apesar do PIB relativamente fraco”, avalia o economista Marcelo Manzano, pesquisador do Cesit-Unicamp. Mesmo a indústria, que não tem ido bem, conseguiu manter o nível de emprego. “Também por conta da escassez de mão de obra, muitas empresas preferem segurar o funcionário e aguardar a retomada.”
Segundo Manzano, outro dado relevante e aparentemente contraditório é a leve queda do tamanho da População Economicamente Ativa, fruto das mudanças demográficas da sociedade brasileira, com o progressivo envelhecimento. Além da demografia, pesariam fatores estritamente econômicos. “Com o aumento da renda daqueles que ganham menos, cresce o número de famílias que podem adiar a entrada dos mais jovens no mercado de trabalho. E alguns dos mais velhos, aposentados, também puderam deixar de procurar uma segunda fonte de renda. Certamente nada a ver com o crescimento do desalento, como ocorria nos anos 1990 e início dos 2000, quando muitos nem sequer procuravam emprego.”
Outro aspecto virtuoso desse movimento, visto como parte de um processo de reconstrução do mercado de trabalho, é o crescimento da renda dos assalariados, diretamente relacionada à política para o salário mínimo, fortalecida nos últimos anos, mas iniciada no período de estabilização, a partir de meados dos anos 1990. Os levantamentos periódicos do Dieese captam bem a dimensão da mudança ocorrida. Em 1994, quando o salário mínimo era de 70 reais, a renda necessária para fazer frente aos gastos de uma família era calculada em 728 reais, dez vezes maior. Em 2002, essa diferença caiu para seis vezes. E, segundo a estimativa mais recente, de outubro passado, é hoje de quatro vezes.
“A recuperação dos últimos anos tem a ver com as políticas de renda colocadas em prática, com o carro-chefe da recuperação do salário mínimo, mas ainda não voltamos ao patamar de rendimentos de 1990”, afirma a economista Lucia Garcia, coordenadora da pesquisa mensal do Dieese. “Além de ter um aspecto distributivo importante, a recuperação do mínimo repercutiu na massa salarial e fortaleceu as vendas do comércio e dos serviços, retroalimentando o próprio mercado de trabalho.”
Segundo a pesquisadora do Dieese, a persistência da alta rotatividade resulta da baixa qualidade dos postos de trabalho oferecidos à maioria dos trabalhadores com pouco acesso à educação. “São empregos que não exigem qualificação, remuneram mal, possuem baixa proteção social e são funções muito repetitivas. Tudo isso contribui para aumentar a rotatividade, principalmente na base da pirâmide”, diz a pesquisadora. Estudo divulgado recentemente pelo Ipea concluiu que 7 em cada 10 trabalhadores deixam o emprego em menos de um ano, índice ainda maior no caso dos mais jovens e de baixa qualificação.
Em alguns casos, o assalariado com rendimento menor prefere sair temporariamente do mercado formal. Com registro em carteira e salário de 900 reais, após um ano de trabalho, receberá cerca de 2,7 mil reais, em caso de demissão sem justa causa. E poderá, com o seguro-desemprego, ganhar um salário mínimo durante três meses ou até encontrar um novo emprego registrado. Como o mercado informal ainda é grande, ele poderá trabalhar sem registro. Também há casos de fraudes, a partir de acertos informais entre empregadores e empregados, que aceitam devolver a multa de 40% para sacar o FGTS. O governo tem estudado meios para reduzir essas fraudes e estuda mudar as regras para tornar mais difícil o acesso ao seguro-desemprego, principalmente no caso dos trabalhadores reincidentes.
De acordo com Maria Beatriz David, professora da Uerj, o “apagão da mão de obra” nos segmentos menos qualificados, que, avalia, seria um fato, em breve atingirá também as posições que requerem mais anos de estudo e treinamento. O fenômeno já ocorreria em alguns segmentos, inclusive da indústria, caso da cadeia petrolífera. “Muitas empresas de engenharia têm importado trabalhadores, ainda que sob o disfarce de vagas temporárias, mas eles vieram para ficar.”
A especialista chama atenção para outra alteração na estrutura do mercado, ligada à perda relativa de participação dos postos de trabalho industriais, em sintonia com o peso crescente das importações de manufaturados. “A produção industrial mantém-se estável há quase um ano, e até aqui as indústrias conseguiram segurar as demissões, inclusive por ser caro demitir, mas isso tem chegado perto do limite. Se não houver reação da produção industrial, ela provavelmente fará demissões em 2014.”
Segundo os especialistas consideram, atingiu o limite o aumento da renda dos trabalhadores acima dos ganhos de produtividade das empresas, à exceção do agronegócio, em que os investimentos em tecnologia e gestão, aliados ao preço compensador das commodities no mercado internacional, garantiram a produtividade em alta. “Na indústria, a produtividade não cresce há três décadas. Em serviços também é preciso investir em tecnologia e produzir mais por funcionário, pois sem isso não será possível elevar os salários como foi feito”, diz Menezes Filho.
A nova rodada de mudanças virtuosas implica ainda mais investimentos, de empresas e do setor público, em cursos técnicos e de qualificação, nos moldes do realizado pelo Sistema S e o Pronatec, porém atualizados para as demandas atuais do mercado de trabalho, o que nem sempre acontece na prática.
Luiz Antonio Cintra é editor de economia da revista Carta Capital.