Congresso aprova, em tempo recorde, EC 109, que congela salários de servidores por 15 anos — em troca auxílio emergencial pífio. Próxima da lista é a “reforma” Administrativa. Como articular um basta a este inferno ultraliberal?
Paulo Kliass
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 16/03/2021
Os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal comandaram um ato solene do Congresso Nacional para anunciar a promulgação da Emenda Constitucional nº 109. Com pouco mais de um mês à frente de suas novas funções no parlamento, ambos parecem estar seguindo à risca o figurino de obediência cega aos ditames do financismo e das más intenções do superministro Paulo Guedes.
Essa nova alteração no corpo de nossa Carta é fruto da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 186. A peça foi apresentada ainda em novembro de 2019, portanto antes do início da pandemia. O documento era resultado de uma articulação suprapartidária de um conjunto de senadores conservadores, já preocupados em oferecer a Guedes um instrumental para a promoção acelerada das reformas destruidoras das capacidades estatais em nosso país. A preocupação era com a consolidação de mudanças nas estruturas das finanças públicas, com a centralização de recursos no âmbito da União e a com a oferta de meios para aprofundar ainda mais o corte nas despesas orçamentárias.
Na verdade, era um trio de proposições (PECs 186, 187 e 188) com finalidades distintas, mas todas compondo um pacote de destruição de garantias constitucionais ainda remanescentes para salvaguardar a sociedade em momentos de crise. Elas passaram a ser chamadas de PEC “Emergencial”, PEC da “Revisão dos Fundos” e PEC do “Pacto Federativo”. Com o advento da covid-19, os textos ficaram solenemente adormecidos nas gavetas do Senado Federal. No entanto, Paulo Guedes viu ali uma oportunidade de retomar o debate e votação dessa nova constitucionalização do austericídio com a pauta da retomada inescapável do auxílio emergencial.
E assim foi feito. Depois de 16 meses parada nas mãos dos relatores (inicialmente Oriovisto Guimarães e posteriormente Marcio Bittar), em menos de 2 semanas o Senado votou as mudanças, em ritmo aceleradíssimo. Na sequência, o texto é enviado rapidamente à Câmara dos Deputados, que também o aprova no tempo recorde de 8 dias. Ou seja, os parlamentares terminaram por dar seu aval à interpretação equivocada de que a votação do novo formato do auxílio emergencial exigiria como contrapartida esse arrocho na austeridade, agora constitucionalizada. Na verdade, tratava-se de mais uma das inúmeras falácias propagadas aos quatro ventos por Paulo Guedes.
EC 109 e o engodo do auxílio emergencial
Em primeiro lugar pelo fato de que a concessão de mais uma rodada de benefícios à população de baixa renda não depende de nenhuma mudança na Constituição. Basta tão somente a vontade política de implementar essa medida, aliás mais do que urgente e fundamental. Se esses valores vão provocar um déficit ainda maior nas contas públicas de 2021, haveria outras maneiras de contornar o problema. O mais adequado seria promover a revogação da EC 95, aquela que congela os gastos públicos por longos 20 anos. Ou então a prorrogação do estado de calamidade por conta da pandemia, para que esses gastos não impliquem em crime de responsabilidade. Esse é, na verdade, o grande receio do “old chicago boy”.
Mas é importante ressaltar que, apesar de todo o desastre, as intenções de Guedes eram ainda mais graves e foram refutadas pelo Congresso Nacional. Ele desejava eliminar as vinculações obrigatórias de gastos mínimos com educação e saúde, além de retirar de forma sub-reptícia a principal fonte de financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Mas permaneceu no espírito do texto a identificação equivocada dos salários dos servidores públicos como sendo a principal causa do déficit fiscal. E com isso a Constituição passa a contemplar um dispositivo que permite o congelamento de vencimentos de funcionários no plano federal, estadual e municipal por 15 anos. Uma loucura!
Quanto ao auxílio emergencial em si, as notícias são igualmente muito ruins. O governo insistiu para que fosse incluído no texto constitucional o valor máximo para ser gasto com esse fim no exercício de 2021. Esse expediente por si só já seria uma aberração jurídica, não fosse o montante apontado muito reduzido para fazer face às reais necessidades da população de mais baixa renda. O dispositivo mencionado estabelece um teto de R$ 44 bi das contas do Orçamento para despesa com o benefício restaurado. Ocorre que as estimativas de valores mencionam um intervalo entre a prestação mínima de R$ 150 e uma máxima de R$ 375 ao longo de apenas quatro meses. Como a grande maioria dos beneficiários recairão sobre a faixa mais baixa, pode-se afirmar que o valor foi reduzido a um quarto daquilo que havia sido aprovado em abril de 2020 – R$ 600/mês.
PEC 32 – desmonte da administração pública
Finda a missão dessa primeira “reforma”, o governo volta agora suas baterias para buscar a aprovação da PEC 32 – a chamada Reforma Administrativa. Nesse caso também identifica o servidor público como o vilão a ser combatido. A peça não se propõe a alterar regras ou dispositivos constitucionais com o objetivo de aperfeiçoar a capacidade da administração pública brasileira. Na verdade, vem se somar a esse conjunto de intenções de destruir a administração estatal e de eliminar as suas capacidades de implementar políticas públicas. Ela sintetiza a intenção de implementar o Estado mínimo, esse fetiche tão caro a Paulo Guedes e sua tropa do financismo. É impressionante que nem mesmo a experiência trágica que a sociedade brasileira vem experimentando desde março do ano passado tenha sido capaz de abrir os olhos desse pessoal. Imaginemos o quão agravadas estariam nossas condições, já terríveis, não fosse a existência de instituições públicas como o Sistema Único de Saúde (SUS) ou entidades de pesquisa como a Fiocruz e o Instituto Butantã.
Mas eles não cedem. E a PEC introduz novidades extremamente perigosas para o futuro da nação. É o caso, por exemplo, da extinção da conquista aprovada pelos constituintes em 1988 – o Regime Jurídico Único (RJU). Esse modelo introduziu a impessoalidade no ingresso no serviço público por meio de concurso e o direito à estabilidade para que os funcionários não ficassem à mercê dos desejos ou desvarios do governante de plantão. Imaginemos o que não seria o governo Bolsonaro nessas condições autoritárias previstas na proposta. Pois ao eliminar o RJU, o texto acaba com o instituto da estabilidade para o servidor público e torna possível o ingresso na administração pública sem a exigência prévia e republicana do concurso público.
Por outro lado, a versão original da PEC 32 confere poderes inimagináveis ao chefe do Poder Executivo. Ele passa a ter direito de extinguir órgãos, empresas e instituições públicas ao seu bel prazer, sem necessidade de que tais medidas sejam aprovadas pelo poder legislativo, como ocorre atualmente. Enfim, um modelo de país bem ao agrado da forma autocrática com que Bolsonaro aprecia governar. Não gosta do IBAMA? Basta uma canetada. Ficou incomodado com os dados desmatamento divulgados pelo INPE? Publique-se um decreto acabando com o órgão. Tem recebido reclamações do povo do agronegócio a respeito das ações da FUNAI? Leia amanhã o resultado no diário oficial. Uma loucura!
Basta de desastres!
Em meio ao recrudescimento das mortes e número de casos da pandemia, a sociedade ainda parece assistir incrédula à tragédia em curso. Não bastasse o governo insistir no discurso negacionista e no estímulo a práticas que só fazem aumentar a mortalidade, Bolsonaro pretende seguir com a estratégia de reformas atrás de reformas. Uma após a outra, abrindo a vala para a consolidação do desastre.
É fundamental fortalecer a oposição ao governo e suas medidas. É essencial organizar a reação e sensibilizar o Congresso Nacional a não mais aceitar estes desmontes. Basta!
Paulo Kliass é Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.