O encontro em Davos coincide com a publicação do informe da Oxfam que revela que em 2017 82% riqueza gerada na economia mundial foi parar nas mãos de 1% da população, e para a metade mais pobre do planeta (3,7 bilhões de pessoas) a renda permaneceu sem mudanças.
Alejandro Nadal
Fonte: Carta Maior
Data original da pubicação: 26/01/2018
Nesta semana se reunirá a nata da nata da elite mundial em Davos, para assistir o Foro Econômico Mundial. O lema principal do encontro deste ano é revelador: “criar um futuro comum num mundo fraturado. Se oferece, assim, uma perspectiva otimista sobre a construção de um modelo com mais inclusão, ao mesmo tempo que reconhece a existência de profundas fissuras que hoje desgarram a sociedade humana a escala planetária.
Sessenta chefes de Estado, centenas de poderosos empresários e milhares de guardas armados estarão em Davos nestes próximos dias. Mais de 1,7 mil jets privados transportarão estas personalidades, que se hospedarão nos hotéis de luxo do pequeno povoado imortalizado por Thomas Mann em “A Montanha Mágica”.
Nessa magistral novela, Hans Castorp visita seu primo no Berghof, hospital especializado no tratamento de doentes com tuberculose. Mas o que deveria ser uma visita curta se transforma num período de sete anos no local, quando o jovem Castorp se vê exposto aos segredos da enfermidade e da morte. O que mais atrai sua atenção é que, em seu padecimento, alguns dos pacientes se transformam em pessoas mais sensíveis e com maior profundidade emocional, o que contrasta com a superficialidade de muitos dos que gozam de plena saúde.
O encontro iniciado em Davos, coincide com a publicação do informe da Oxfam sobre a desigualdade a escala mundial (oxfam.org). O estudo revela que em 2017 82% riqueza gerada na economia mundial foi parar nas mãos de 1% da população. Além disso, para a metade mais pobre do planeta (3,7 bilhões de pessoas) a renda permaneceu sem mudanças. Para a Oxfam, esta concentração de riqueza não é “sinal de uma economia saudável, e sim o sintoma de um modelo que está falhando e levando a bilhões de pessoas a não poderem sair da pobreza por meio do seu trabalho”, segundo palavras do próprio informe.
O estudo da Oxfam está apoiado em dados de várias fontes, incluindo o “Laboratório sobre desigualdade mundial”, da Escola de economia de Paris, criado por Thomas Piketty e Emanuel Sáez (wid.world). Entre suas principais recomendações para reverter este processo de desigualdade crescente, se encontra o controle e eliminação da sonegação fiscal e o aumento dos salários.
Para a Oxfam, o problema medular é que a economia mundial se comporta como um modelo de crony capitalism, termo que pode ser traduzido como capitalismo de compadres ou de conivência. Isso permite às grandes empresas tirar vantagens das operações em paraísos fiscais e dos salários miseráveis que pagam. Entretanto, mesmo esta crítica certeira está baseada num diagnóstico bastante superficial. Por exemplo, o capitalismo não é um modelo, como diz Oxfam. É um modo de produção (e consumo) historicamente determinado. As grandes corporações, que tanto aparecem no informe da organização, são centros privados de acumulação de capital que se enfrentam numa violenta competição por rentabilidade – por isso sua busca sistemática por mecanismos para deprimir os salários.
As recomendações da Oxfam estão condenadas a reverberar inutilmente como um eco perdido nas montanhas que cercam os participantes da reunião em Davos, que regressarão aos seus países em seus jets privados fingindo que não escutaram nada. Por exemplo, Oxfam sugere que os governos funcionem em benefício de toda a população em vez de fazê-lo em benefício das grandes corporações. Boa ideia, mas isso ignora tudo sobre a dinâmica do capitalismo contemporâneo e, em especial, sobre a política macroeconômica neoliberal.
Para dar um exemplo do âmbito da política monetária: um dos temas mais importantes ignorado pela Oxfam se relaciona com o funcionamento do sistema bancário. Em nenhuma parte do estudo aparece um levantamento sobre os bancos comerciais privados e sua função na criação de dinheiro. Hoje sabemos que 95% da oferta monetária em qualquer país do mundo está composta por títulos de dívida criados pelos bancos privados. Enquanto isso, os bancos centrais têm funções de regulação monetária muito restringida e em última instância são os responsáveis por criar reservas quando pedem aos bancos comerciais privados. O resultado final é um feudalismo monetário que subjuga toda a população mundial. Aqui, as recomendações teriam que ser mais ousadas, não ficando somente na ideia da regulação bancária, que sequer tem podido resolver o problema dos bancos usados para esconder dinheiro em paraísos fiscais. É preciso nacionalizar a atividade bancária e assim recuperar o controle sobre a criação monetária.
Davos é um bom lugar para uma reunião de ricos e poderosos. São as criaturas mais bem recompensadas do sistema, como diria Settembrini, um dos personagens da “A Montanha Mágica” que representa o legado intelectual humanista. Essas criaturas estão doentes de arrogância e soberba, mas diferente dos pacientes de Berghof, neste caso a enfermidade está ligada ao delírio e à decadência, não com essa maior sabedoria requerida para resolver os graves problemas pelos quais a sociedade humana se queixa.