Grandes guerras, revoluções, colapso de Estados, epidemias. Depois de estudar a distância que separa ricos e pobres nos últimos 3 mil anos, Walter Scheidel, professor da Universidade de Stanford, chegou à conclusão que, dos romanos até aqui, foram episódios de violência que ajudaram a reduzir a desigualdade de renda de forma significativa.
E não foi qualquer tipo de violência. Em seu último livro, The Great Leveler: Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the Twenty-First Century (A Grande Niveladora: Violência e a História da Desigualdade da Idade da Pedra ao Século 21, sem edição no Brasil), o pesquisador destaca episódios que mataram milhões de pessoas, como a Peste Negra e as duas Guerras Mundiais, ou que desmantelaram completamente regimes de governo, como a queda do Império Romano e as revoluções comunista e chinesa.
O nivelamento, de forma geral, é por baixo: os choques de violência fazem com que todo mundo fique ‘mais pobre’ do que antes, mas, como os ricos têm mais a perder, destaca Scheidel, a distância entre as classes mais abastadas e as menos favorecidas diminui.
Em entrevista à BBC Brasil, o historiador austríaco explica por que não espera arrefecimento da escalada da desigualdade que tem marcado o século 21, rebate as críticas à sua tese e admite que o processo recente – e pacífico – de redução do espaço entre o topo e a base da pirâmide social em países da América Latina, inclusive o Brasil, pode ser uma “esperança”.
Muito antes do capitalismo
A desigualdade existe desde que o homem deixou de ser nômade e que lhe foi possível acumular recursos, diz Scheidel. Isso aconteceu mais ou menos há 10 mil anos, quando nasceu a agricultura e o processo de domesticação de animais. “Ela é uma condição inerente à civilização”, ele observa.
No decorrer da História, o abismo entre ricos e pobres foi estreitado de forma significativa em poucos episódios, ele defende, desencadeados por quatro “niveladores”: grandes guerras, revoluções, colapso de Estados e epidemias.
Antes do século 20, diz, apenas os dois últimos estavam atuantes. O efeito “nivelador” das epidemias se dava, segundo Scheidel, porque, ao matarem tanta gente de uma vez só, reduziam drasticamente a oferta de mão de obra e empurravam os salários para cima. Esse movimento foi observado, por exemplo, após a Peste Negra, nos séculos 14 e 15, que dizimou praticamente um terço dos europeus.
Quanto ao colapso de governos, o historiador ressalta que boa parte das civilizações mais antigas foi construída em torno de Estados concentradores de renda. Eram sociedades bastante estratificadas, em que uma pequena parcela privilegiada explorava o restante. Quanto mais tempo esses Estados duravam, maiores ficaram, o que aumentava as chances de aprofundamento das desigualdades, inclusive de renda.
No Império Romano, um dos temas de especialidade do historiador, os ricos ficavam ricos cada vez mais rápido à medida que o Estado crescia. O mesmo vale para a China da dinastia Tang, entre os séculos 7 e 10, e a civilização Maia, ele exemplifica.
Quando modelos de Estado como esses desmoronam – e, com eles, as leis e as instituições que permitem que o topo da pirâmide multiplique com mais facilidade seu patrimônio -, abre-se espaço para equalização. Em geral, todo mundo fica “mais pobre” do que antes – mas, como os ricos têm mais a perder, destaca Scheidel, a desigualdade diminui.
O pesquisador usou diferentes bases de dados para comparar períodos distintos da História. Quando não havia informação especificamente sobre renda, como foi o caso com as civilizações mais antigas, foram usados dados que se relacionavam de forma indireta com patrimônio, como os registros oficiais de recolhimento de impostos sobre a riqueza ou sobre salários e as pesquisas domiciliares que apontavam, por exemplo, o tamanho das propriedades.
Era moderna
O século 20, por sua vez, foi marcado pelos outros dois “niveladores”: grandes conflitos armados – a Primeira e Segunda Guerras Mundiais – e revoluções transformadoras – a comunista, a chinesa, a cubana, por exemplo.
O historiador destaca os dados relativos à Segunda Guerra para dar uma dimensão do impacto desses episódios sobre a distribuição de renda.
De 1935 a 1945, a fatia da riqueza concentrada pelos japoneses que estavam entre os 1% mais ricos despencou de 20% para quase 6%, observa Scheidel. Na França, a queda foi de 16% para 8% e nos Estados Unidos, de 18% para cerca de 11%.
O fenômeno do pós-guerra tem diversas razões – algumas mais ou menos preponderantes a depender do país. Entre elas, estão a redução da rentabilidade dos investimentos e a cobrança de pesados impostos sobre renda e propriedade, que afetaram os mais ricos, e a necessidade de mão de obra menos qualificada, que proporcionou melhora na remuneração dos mais pobres.
Comum a todos os países foi o choque de violência da guerra, que, para o austríaco, foi catalisadora de movimentos que poderiam até ter acontecido, mas de forma muito mais lenta.
Os níveis de desigualdade se mantiveram relativamente estáveis pelo menos pelas três décadas seguintes, com a ajuda do avanço da democracia, já que regimes autoritários tendem a ser mais concentradores de renda, a expansão dos sindicatos – com efeito positivo sobre os salários -, e a adoção de modelos de Estado de bem-estar social.
E voltaram a aumentar depois da década de 1980, em um fenômeno já descrito pelo economista Thomas Piketty em O Capital no Século 21: o avanço do mercado financeiro fez com que os investimentos passassem cada vez menos pela “economia real” (os mais ricos ganham dinheiro, por exemplo, arbitrando preços na bolsa de valores), favorecendo a concentração da riqueza.
A esperança latinoamericana
A desigualdade na América Latina é anterior à chegada dos colonizadores, diz o historiador, que estudou dados do continente desde 1400, referindo-se, por exemplo, à civilização asteca, no México, e aos incas, no Peru.
Em um primeiro momento, os espanhóis interromperam a trajetória ascendente da concentração de riqueza quando espalharam doenças em larga escala. Grandes epidemias de gripe e de varíola mataram milhões de indígenas em pouco tempo. Na sequência, contudo, os colonizadores instituíram novos regimes concentradores, que pioraram significativamente a distribuição de riqueza.
As guerras de independência no início do século 19 aliviaram esse processo, que retomou fôlego pelos dois séculos seguintes até o início dos anos 2000, quando o continente passou a experimentar uma redução pacífica da desigualdade em países como Argentina, Bolívia, Equador e, inclusive, o Brasil.
As razões, diz o pesquisador, ainda não estão claras. De um lado, diversos países passaram a adotar medidas pontuais redistributivas, especialmente de alívio à pobreza. De outro, o boom de commodities até 2010 engordou a arrecadação de impostos e permitiu que os governos aumentassem as despesas com seguridade social.
“A América Latina pode ser uma esperança, mas não está claro ainda se esse processo é sustentável. Nós estamos muito próximos (temporalmente) para saber”, diz, ressaltando a perda de fôlego desse processo em países como o Brasil.
De 2004 a 2015, o chamado Índice de Gini do rendimento mensal dos brasileiros com mais de 15 anos recuou de 0,555 para 0,491. De acordo com a medida, hoje uma das mais usadas no mundo, quanto mais próximo de 1, mais desigual é o país.
Apesar de os dados disponibilizados pelo IBGE só chegarem até 2015, especialistas acreditam que a desigualdade pode ter estagnado ou mesmo crescido nos últimos dois anos, como consequência do aumento expressivo do desemprego durante a recessão.
Com ou sem esse retrocesso, o Brasil segue entre as nações mais desiguais do mundo. No ranking das Nações Unidas, o Relatório de Desenvolvimento Humano, ocupa o 10º lugar. Na América Latina, só Haiti, Colômbia e Paraguai têm desempenho pior.
A desigualdade pode ser melhor que a pobreza?
Em algumas situações, a ação dos “niveladores” não necessariamente cria uma situação melhor do que a anterior. Esse é o caso, por exemplo, da Somália, ilustra Scheidel, onde o colapso de um regime de governo colocou praticamente toda a população em estado de pobreza extrema.
Nesses casos, muita gente questiona o historiador se há um “nível de desigualdade tolerável”, se muitas vezes ela não é preferível aos cenários de pobreza generalizada, por exemplo.
Na China dos anos 1980, ele ilustra, todos eram de certa forma “igualmente pobres”. Agora, milhões de chineses formam uma classe média que não existia antes – e a desigualdade é duas vezes maior do que naquele período. “Qual o cenário mais desejável? Muita gente vai dizer: ‘o que temos agora'”, ele provoca.
Apenas nas últimas décadas o homem começou a estudar desigualdade de forma mais consistente, diz o historiador, e sua ligação com a pobreza. “É um trade off, com implicações políticas”.
“É suficiente que consigamos garantir que ninguém esteja fora da rede de seguridade social, com medidas que aliviam a pobreza, ou os Estados democráticos devem se perguntar se a riqueza gerada pelos países deveria ser melhor distribuída?”, ele acrescenta.
Sem os niveladores, como diminuir a desigualdade daqui pra frente?
As últimas três ou quatro décadas foram marcadas pelo aumento consistente da desigualdade em praticamente todo o mundo. Com a atenção cada vez maior dada ao tema, não faltam propostas de soluções para reverter a tendência, da taxação de fortunas e do combate a paraísos fiscais a projetos de educação universal (que seria um instrumento de qualificação da população mais pobre e um passaporte para uma vida melhor).
“O problema é que essas medidas funcionaram no passado, mas precisamos de fórmulas que funcionem para o mundo de hoje, que sejam executáveis do ponto de vista político”, ele destaca, ressaltando que, no século 21, nenhuma das quatro forças niveladores está ativa. “E isso é um coisa boa, ninguém quer guerras mundiais ou epidemias”.
A tese do historiador gerou uma série de reações polêmicas desde que o livro foi lançado, em meados do ano passado, levando parte dos leitores, por exemplo, a concluir que a desigualdade seria algo inexorável e que, portanto, haveria pouco a se fazer de forma deliberada – e pacífica – para reduzi-la de forma consistente.
“Não era a mensagem que eu queria passar. A História não determina o futuro. Ela mostra o que funcionou e ou não no passado. O que essa pesquisa faz é nos dar ideia do quão difícil é lidar com a desigualdade na ausência desses choques de violência.”
Especialmente agora, ele acrescenta, quando estão em ação uma série de forças que alargam o abismo entre ricos e pobres: o envelhecimento populacional, que reduz a arrecadação do Estado e o espaço fiscal para Estado de bem-estar social, a globalização e a automação, que diminui salários e coloca em risco a própria existência de algumas profissões.
Fonte: BBC Brasil
Texto: Camilla Veras Mota
Data original da publicação: 21/01/2018