Adalberto Cardoso
No dia 15 de março de 2011 o motorista de um dos ônibus que transporta trabalhadores no canteiro de obras da usina de Jirau, no rio Madeira (RO), impediu que um operário tomasse a condução para voltar para casa, porque o trabalhador não trazia o documento de liberação de seu turno. Seguiu-se briga entre os dois, estopim de uma revolta que pôs fogo em 45 ônibus e em boa parte dos barracões que abrigavam metade dos 22 mil operários da barragem. O movimento pegou de surpresa o governo federal, a imprensa, o movimento sindical e, talvez, a Camargo Corrêa, responsável pelas obras.
Digo talvez porque a empresa tem histórico de conflitos com seus operários. Em outubro de 2009, por exemplo, os trabalhadores da usina de Foz do Chapecó, na divisa de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, cruzaram os braços por razões semelhantes. Nos dois casos denunciaram baixos salários, má qualidade da alimentação oferecida pela empresa, “aprisionamento” dos trabalhadores no canteiro de obras, más condições de trabalho expressas nas altas taxas de acidentes, mau atendimento dos acidentados… No caso de Jirau, os operários reclamaram ainda do preço dos bens que eram obrigados a adquirir no canteiro de obras e do não cumprimento da promessa de participação nos lucros, que a Camargo Corrêa alegava não ter tido.
Grandes obras de construção civil em áreas isoladas, insalubres, congregando milhares de trabalhadores, homens em sua maioria, submetidos a regimes desgastantes de trabalho a céu aberto, são potencialmente explosivas. Ninguém está disposto a trabalhar a qualquer custo, muito menos aceitar relações de trabalho percebidas como injustas. Num ambiente de virtual confinamento, como é o caso de uma usina no meio da floresta amazônica; sem canais institucionais de processamento de queixas (o sindicato não estava preparado para isso e até ali não havia apresentado reivindicações à Camargo Corrêa); e diante de uma gestão do trabalho percebida como despótica pelos operários, a revolta é reação mais do que provável. Tanto que o protesto se estendeu de Jirau para as obras da usina de Santo Antônio, também no Madeira e tocada por consórcio liderado pela Odebrecht. Vale lembrar que estes já haviam suspendido o trabalho por 12 dias em junho de 2010 em protesto contra más condições de trabalho. Ninguém pode dizer que o motim foi um raio em céu azul.
Não é o caso de entrar, aqui, no debate sobre a oportunidade ou correção das opções energéticas do governo brasileiro. No cômputo de custos e benefícios das diversas alternativas disponíveis (e as matrizes de custos e benefícios são muito complexas e sujeitas a inúmeras controvérsias), haverá sempre bons argumentos de todos os lados, de sorte que a decisão será, sempre, política.
Importa que, tomada a decisão por grandes barragens, o governo federal deveria, para dizer o mínimo, ter dedicado maior atenção às obras. A investida do PAC é de vulto, com impactos em múltiplas dimensões da vida na floresta. Entidades de direitos humanos e ambientais, tanto no Brasil quanto fora dele, estão mobilizadas para impedir a construção das barragens de Jirau e Santo Antônio, bem como Belo Monte, no rio Xingu, São Salvador no Tocantins, Balbina no Uatumã e outras tantas. Inútil fazer de conta que sua ação é puramente ideológica ou delirante. Inútil argumentar que parte dessas organizações quer “internacionalizar a Amazônia”. O que parece inadmissível é ver trabalhadores e seus representantes expressarem a percepção de que o Estado está ausente desses ambientes.
As obras estão sendo executadas por empresas privadas, mas estas são veículo de um projeto público. Elas são as mãos e os braços do Estado brasileiro na Amazônia. O que quer que ocorra por lá é, indiscutivelmente, de responsabilidade pública, e as empresas que executam as obras deveriam ser cobradas nesses termos precisos. No caso específico das relações de trabalho o Brasil consolidou políticas sólidas de defesa dos direitos humanos. Combate eficiente aos trabalhos escravo e infantil e políticas de ação afirmativa para pessoas com restrições físicas estão entre as muitas iniciativas louvadas aqui e lá fora como na vanguarda da proteção da pessoa do trabalhador, direito humano fundamental. Como aceitar queixas de “confinamento” ou superfaturamento de preços (que lembra o antigo “barracão” da escravização por dívidas) em relações de trabalho num canteiro de obras que é concessão pública?
Uma intervenção ambiental e social da envergadura das obras do PAC na Amazônia não deveria estar sob responsabilidade quase exclusiva de agentes privados, no caso grandes empresas interessadas em seus próprios fins, ou a maximização de lucros. Uma empresa privada pensará sempre em seu próprio bem-estar antes que no bem comum. Este só entrará em seu planejamento estratégico se negligenciá-lo for caro demais, tendo em vista os retornos esperados do investimento. Várias entidades podem aumentar o custo da negligência. O Estado e suas instituições (incluindo a Justiça do Trabalho) são as principais, obviamente. Normas reguladoras estritas, fiscalização rigorosa, multas contratuais pesadas, justiça célere capaz de executar as sentenças, agências de mediação dos conflitos, há várias maneiras, necessárias, de forçar o agente privado a ter em conta o bem público. Mas na ausência do Estado as ONGs, os sindicatos e outras organizações da sociedade civil ocuparão o espaço em nome, justamente, da defesa daquele bem, no caso os direitos das populações ribeirinhas e indígenas, os direitos ambientais das futuras gerações e os direitos dos trabalhadores, percebidos por eles mesmos como objeto de burla pelo empregador.
A ausência do Estado, real ou percebida, num ambiente reivindicado como bem de toda a humanidade (a Amazônia), abre espaços para uma entidade como a Organização dos Estados Americanos ver-se no direito de interferir nos assuntos internos do Brasil e exigir o fim das obras na floresta, usando como pretexto o justo motim dos trabalhadores, agora lido na chave da violação dos direitos humanos. Resultado não antecipado de um conflito trabalhista? Não creio. Ainda falta ao governo brasileiro dimensionar corretamente o que está em jogo nesses canteiros de obra. A pretexto dos direitos humanos, está em risco, dentre outras coisas, a integridade do território brasileiro.
Adalberto Cardoso é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (título obtido em 1995). Atualmente é professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ (IESP-UERJ), Pesquisador Associado do Centro Brasileiro de Análises e Planejamento e do Warwick Institute for Employment Research, e Cientista do Nosso Estado da FAPERJ. Publicou mais de 30 artigos em periódicos especializados e mais de 50 trabalhos em anais de eventos. Possui mais de 30 capítulos de livros e 11 livros publicados, além de vários itens de produção técnica e outras publicações.