São rudes os que negam a pandemia e a ciência. Mas vestem punhos de renda os que se beneficiam da estupidez. Barões das finanças, enriquecidos em meio às mortes, não querem serviços públicos, para não ter de pagar impostos.
Dão Real Pereira dos Santos
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 22/04/2021
Em um sequestro, a vida do refém fica, temporariamente, nas mãos do sequestrador, pois é nisso que consiste esse crime, prender alguém, sob ameaça de morte, para obter um resgate, ou seja, um benefício. Ainda que a vida seja um direito fundamental, inalienável, segundo a Constituição Federal, e que precisa ser protegida a qualquer custo, o sequestro de alguém caracteriza uma situação extrema e excepcional, além de criminosa, em que o sequestrador avoca para si o poder de decidir se a vida do refém (seu direito) continua ou se acaba. Mas, em tempos de fake news, diante de uma situação como essa, sempre há uma esperança de que se trate de um falso sequestro e que a ameaça à vida do refém seja apenas um blefe. Faço essas ponderações iniciais apenas para ajudar nas reflexões que vou propor a seguir.
Uma das muitas declarações do presidente da República, ocorrida recentemente, foi a de que ele estaria apenas esperando um sinal do povo, pois o Brasil estaria já no limite, segundo sua avaliação. Não disse exatamente para quê, mas deixou nas entrelinhas, e todo mundo entendeu, que ele estava sugerindo uma ruptura institucional como solução para o gravíssimo problema que estamos vivendo. Esqueceu-se, porém, de dizer que a maior parte do problema foi ele mesmo quem provocou ou agravou.
O aumento do número de mortes pela covid-19 está sendo causado, principalmente, pela falta de condições para manter um distanciamento social adequado, produzido, em grande medida, pela falta de pagamento de uma renda emergencial decente, pelas campanhas sistemáticas contra as medidas preventivas e pelo aprofundamento das restrições aos gastos públicos (PEC 186/2019), dentre outras razões. Com o acirramento das medidas de prevenção imposto por prefeitos e governadores, para tentar conter o avanço da doença, vem agora o presidente se apresentar como salvador, e propor um golpe de Estado para resolver os problemas, como se eles tivessem sido causados pela democracia e pelas instituições. Sempre é bom ter em mente a sabedoria dos velhos e conhecidos ditados: “onde há fumaça, há fogo”, portanto, é aconselhável “colocar as barbas de molho”.
Não é novidade para ninguém que a pandemia vem sendo tratada, pelo governo, de forma absolutamente irresponsável. Deixaram faltar os insumos mais elementares para o enfrentamento do flagelo, como medicamentos, equipamentos de saúde e até oxigênio, como ocorreu em Manaus, por exemplo; cortaram recursos das áreas estratégicas; fizeram pouco caso das medidas preventivas; dificultaram ao máximo o pagamento da renda emergencial; pressionaram os governadores contra as medidas restritivas implementadas; e dificultaram, tanto quanto puderam, a aquisição tempestiva de vacinas. Não é sem motivo, portanto, que a situação no Brasil já esteja sendo tratada como genocídio em várias partes do mundo.
Mas a declaração de Bolsonaro nos remete a uma outra, mais antiga, mas neste mesmo contexto, que ocupou vários espaços na mídia no início deste ano. Antes de falar dela, peço licença para abrir um parênteses: vejam a que ponto chegamos, de considerar antigo o que aconteceu há apenas três meses. É que os assuntos nos atropelam a cada dia e todos os dias, e nos deixam com essa sensação de distanciamento de coisas que recém aconteceram. Chego até a desconfiar que essa enxurrada diária de assuntos esteja sendo criada, na medida, para ofuscar a enorme tragédia humanitária que estamos vivendo, e “ir passando a boiada”.
O assunto a que me referia é a declaração dada pelo presidente, no início do ano, de que são as Forças Armadas que decidem se o povo vai viver numa democracia ou numa ditadura. Trata-se, sem dúvida, de uma afirmação estranha para um presidente que foi eleito democraticamente, mas ela vem carregada de muitos significados.
Passamos, há poucos dias, pela data de aniversário do golpe militar, ocorrido em 1964. Ninguém mais duvida que foi um golpe, pois, que outra coisa seria uma ruptura institucional como aquela, promovida pela força dos tanques e dos soldados nas ruas? O 1º de abril de 1964 poderia ter sido só mais um “Dia da Mentira”, mas não foi. O Brasil acordou, naquele dia, sob um golpe de Estado que deu início a um período de duas décadas de repressão, torturas, violências, desrespeito aos direitos humanos, desrespeito às liberdades e tantas outras atrocidades praticadas.
Num esforço voltado a redimir os militares e a ditadura, o presidente pleiteou e obteve autorização, no TRF da 5ª Região, para comemorar o golpe, agora sob a denominação de “movimento de 64”, o qual, nas palavras do seu novo ministro da Defesa, deve ser celebrado. Ressalto aqui, que costumamos lembrar e celebrar as coisas boas, mas lembrar e lamentar o que foi ruim. Negar, esquecer ou relevar os erros do passado pavimenta o caminho para repeti-los, e, aparentemente, não há falta de vontade para isso.
Mas a questão central para reflexão aqui é outra. O presidente está dizendo, em alto e bom som, que considera a democracia uma concessão das Forças Armadas, que no seu entendimento poderia ser revogada a qualquer momento. A Constituição Federal, ao contrário do que ele afirma, no entanto, é taxativa quando atribui ao Povo, entenda-se, à democracia, o poder soberano, e não às Forças, ainda que sejam armadas. Logo, seguindo o raciocínio lógico mais elementar, concluímos, inevitavelmente, que a democracia se sobrepõe e não pode ser condicionada à conveniência ou não das Forças Armadas. Ao contrário, é a democracia que poderia até mesmo decidir se teremos, ou não, Forças Armadas.
Mas, por outro lado, também não é novidade que o presidente, há muito tempo, defende a ditadura e a tortura, e é, ele mesmo, um admirador declarado de torturadores. Por mais ilógica que possa parecer aquela sua afirmação, de que as Forças Armadas teriam legitimidade para subjugar a democracia, ela serve ao propósito de manter as instituições sob ameaça permanente, tal como ocorre com a vida de um refém, e de ir naturalizando a ideia, fazendo com que esse seu recente chamamento ao povo não cause assim tanta estranheza. Será que a democracia foi sequestrada e não percebemos? Ou tudo isso não passa de um grande blefe?
O fato é que a nossa história é repleta de sinais, mas também de situações que nos ensinam que a indiferença em relação aos sinais pode produzir grandes tragédias. As declarações de um presidente nunca são vazias de sentido, mesmo quando pareçam absurdas ou ilógicas. Há sempre uma racionalidade que precisa ser compreendida, o que, muitas vezes, só é possível quando conseguimos identificar quais são os interesses contemplados pelos efeitos que delas decorrem.
Assim como, lá em 1964, os super-ricos de então, as “famílias de bem”, e de muitos bens, apoiados pelas mídias tradicionais, usaram o ímpeto das Forças Armadas e o medo inventado de uma ameaça inexistente de comunismo, para promover, de forma consciente e racional, aquele golpe contra as instituições e contra a democracia, e o fizeram por interesses bem localizados, dentre os quais, o de evitar a implementação das reformas de base propostas pelo então presidente João Goulart, os negacionistas de hoje, tanto da pandemia como da própria história, também parecem ser instrumentos úteis aos interesses daqueles mesmos setores da sociedade que não suportam qualquer medida que possa significar ampliação de direitos e redistribuição de renda e riquezas.
Negar ou minimizar a gravidade da pandemia, por exemplo, não são apenas declarações desconectadas com a realidade. Trata-se de um discurso que interessa a quem defende e sempre defendeu a redução do Estado e a privatização das políticas públicas, pois admitir a pandemia, significa ter de abandonar aqueles velhos dogmas neoliberais que têm sido utilizados para justificar os seus ataques contra o Estado e contra os direitos sociais. Admitir a pandemia significa ter que defender o fortalecimento das estruturas públicas, a revogação do teto dos gastos, a garantia de renda emergencial, a reversão dos cortes bilionários no orçamento da pesquisa, ciência e tecnologia, e a retomada da construção interrompida do Estado social.
Admitir, por exemplo, as carências e a falta de leitos e de insumos para tratar da pandemia significa ter que promover a ampliação do orçamento para saúde pública, ao contrário do que fez o governo no Orçamento de 2021. Admitir a gravidade da pandemia e da crise econômica impõe a necessidade urgente de tributar os super-ricos, para salvar vidas, conter o crescimento da desigualdade e impor limites ao escandaloso crescimento da concentração de riquezas.
Assim, o descaso em relação às vidas e em relação à própria crise econômica, e as insistentes e ameaçadoras declarações contra a democracia guardam uma relação muito próxima com interesses privados muito bem identificados. O presidente não está só nessa sua cruzada contra o Estado, contra as instituições públicas e contra os direitos sociais. Ele conta com o apoio de grande parte dos parlamentares, mas também daqueles que compõem as classes dominantes, que usam e sempre usaram o Estado para os seus próprios interesses.
Os bilionários brasileiros estão nadando de braçada, pois suas riquezas cresceram quase 40%, desde o início da pandemia. Alguns setores do empresariado brasileiro estão vendo seus lucros crescerem em níveis extraordinários nestes últimos anos, mesmo com o PIB em queda ou crescendo de forma insignificante. O setor financeiro, por exemplo, bate recordes de lucros quando a maioria das pequenas empresas está quebrando. Então, se o Estado e a democracia foram sequestrados, podemos ter uma boa ideia sobre quem são os sequestradores.
Enfim, a ditadura e a pandemia se encontram nos interesses privados imediatos dos super (e cada vez mais) ricos. Lá também se encontra negacionismo sistemático da realidade, do conhecimento e da ciência. São esses interesses privados, de um seleto grupo de privilegiados, com nome, sobrenome e CPF, que têm prevalecido sobre as vidas das pessoas, sobre o desenvolvimento econômico, sobre a geração de empregos e, até mesmo, sobre a própria sobrevivência da democracia. É preciso inverter urgentemente esta hierarquia das coisas, colocando a vida, os direitos sociais e a democracia acima dos interesses privados de alguns.
Dão Real Pereira dos Santos é vice-presidente do Instituto Justiça Fiscal e membro do coletivo Auditores Fiscais pela Democracia.