Por trás da onda ultraconservadora, encampada pela classe média brasileira, a ruína da sociedade industrial e falta de futuro. Empobrecida, ela vê a asfixia da mobilidade social e queda no padrão de consumo – e sai às ruas, mas em nome do atraso.
Marcio Pochmann
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 09/08/2021
No final do século 20, o ingresso passivo e subordinado do Brasil na globalização passou a ser acompanhado pelo desmoronamento do que havia se constituído, até então, em sociedade industrial na periferia do capitalismo mundial. A fratura instalada atingiu a coluna sob a qual se estruturava o longo sonho aglutinador do brasileiro da ascensão socioeconômica, exemplificado pela funcionalidade da passagem da condição laboral rebaixada de inorgânico no agrarismo para a de orgânico superior no urbanismo.
Como expressão do projeto tenentista instalado pela Revolução de 1930, a modernização capitalista representada pela industrialização exprimiu-se em ampla e diversificada fração de classe média assalariada e proprietária. Nos postos de trabalho orgânicos ao desenvolvimento capitalista proliferaram as ocupações salariais em bancos, indústrias, lojas de departamentos, escritórios, empresas de engenharia, assessorias e consultorias variadas, universidades, hospitais, imprensa, partidos, sindicatos, entre outros.
Também se agigantou o contingente de proprietários nos pequenos negócios urbanos e rurais, profissionais liberais, produtores independentes, contapropristas, autônomos e outros. Todos, em síntese, detentores do status social intermediário na hierarquia da sociedade em função dos postos de trabalho e renda auferida e avalizada pelo avanço da materialização do padrão de consumo superior (bens de consumo duráveis de maior valor unitário).
Distante tanto do cume como da base na distribuição da renda, riqueza e poder, o segmento intermediário da estrutura da sociedade industrial assumiu centralidade da melhor referência de ascensão social possível no interior do processo de modernização no capitalismo brasileiro. Pela situação presente dos filhos a se apresentar melhor do que a do passado dos pais, os segmentos intermediários expressavam o modo pelo qual a massa dos inorgânicos do sistema aceitava enquanto desafio, a persistência da luta pela sobrevivência, mesmo que em condições quase subumanas.
Com a desindustrialização, a crise da modernização capitalista passou a deslocar segmentos intermediários no interior do mundo do trabalho. Com isso, a constatação crescente de que os filhos, mesmo com maior nível educacional, dificilmente conseguiam, em geral, superar a situação dos pais.
A revelação do reverso nas condições laborais dos segmentos orgânicos à modernização capitalista ficou materializada pelo inchamento no setor de serviços, abrigando crescente massa de inorgânicos defenestrados pela ruína da sociedade industrial. A recessão econômica de 1981-1983 antecipou o que passou a ocorrer a partir de 1990, com a abertura comercial realizada em condições desfavoráveis à produção interna a impor significativa destruição do que se poderia identificar como a classe média assalariada da época.
Pela terceirização ocupacional nas atividades-meio do processo produtivo, criou-se a ilusão de que o empresariamento de si próprio pudesse tanto compensar o enxugamento dos postos intermediários da estrutura ocupacional assalariada como manter as condições do status social auferidas pela ocupação e renda equivalentes às existentes até então. Ledo engano, uma vez que o acirramento da competição no interior da crescente qualificação da mão de obra frente ao decréscimo das ocupações intermediárias apontou o descenso da mobilidade social, com perda do poder aquisitivo e restrições no padrão de consumo, cada vez mais privatizado, de menor qualidade e maior custo.
A partir da segunda metade da década de 2010, com a retomada das políticas neoliberais, a classe média proprietária também terminou sendo profundamente atingida. O elevado aniquilamento dos pequenos negócios, dos produtores independentes, contapropristas e autônomos pejotizados, sobretudo com o novo regime do decrescimento econômico, indicava a via sem saída para o que restava de classe média proprietária.
O cancelamento do futuro, com o distanciamento da expectativa de futuro melhor, confirmou a asfixia da mobilidade social e a desmoralização dos segmentos assalariados e proprietários no interior da estrutura ocupacional intermediária no Brasil. Frente a isso, as diversas mobilizações e manifestações de contrariedade aos indícios da ruína da sociedade industrial, especialmente aquelas com engajamento dos segmentos de classe média, foram interpretados de maneira distinta.
Nas recessões do final do século 20 (1981-83 e 1990-92), os dois grandes movimentos populares nacionais que contaram com o importante impulso dos segmentos médios da sociedade (campanha pelas eleições diretas em 1994 e os caras-pintadas do fora Collor) foram saudados como democratas e de fundamental luta contra a corrupção. Perspectiva inversa de interpretação foi introjetada nas mobilizações e protestos com forte influência dos segmentos médios da sociedade durante a década de 2010.
Diante da ruína da sociedade industrial, os levantes populares de repercussão nacional conduzidos desde as jornadas de junho de 2013 tiveram continuado e polarizado enfrentamento ao longo da década passada. Embora vítimas da crise brasileira de modernidade, os segmentos intermediários da sociedade brasileira passaram a ser identificados, mais recentemente, como expressão do atraso: trogloditas, homofóbicos, racistas, entre outros adjetivos de expressão antidemocrática.
Marcio Pochmann é economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004. Concorreu duas vezes a prefeitura de Campinas-SP (2012 e 2016). Publicou dezenas de livros sobre Economia, sendo agraciado três vezes com o Prêmio Jabuti.