Rodrigo Trindade
Fonte: Revisão Trabalhista
Data original da publicação: 16/03/2019
Assédio moral não é situação fática inovatória, afinal despotismo e sofrimento em relações laborais são muito mais antigos que qualquer regulamentação trabalhista. O reconhecimento legal na inadequação de condutas, isso sim, é relativamente novo. E muito mais recente é a iniciativa de punição. O recém aprovado projeto de lei 4.742 da Câmara dos Deputados, que criminaliza o assédio moral trabalhista, é mais um passo no caminho de humanização e repressão das diversas violências presentes no meio ambiente de trabalho.
A relação de emprego é um dos mais propícios espaços para exercício de assédio moral, pois ali submissão hierárquica e desnível econômico encontram-se com poder disciplinar e prerrogativa de fiscalização do trabalho. De acordo com estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT), na União Europeia 9% dos trabalhadores convivem com tratamentos tirânicos de seus patrões. Estima-se que entre 10% (dez por cento) e 15% (quinze por cento) dos suicídios na Suécia sejam decorrentes desse comportamento abusivo.
A reconstituição da lesão a partir de pretensões indenizatórias vem se mostrando insuficiente para a correta repressão. A criminalização da conduta, com consequente persecução penal, é uma das possíveis soluções.
O ainda projeto não cogita de violência corporal ostensiva, a qual recebe tratamento próprio em outros tipos penais. A orientação do novo crime diz respeito ao comportamento abusivo que atinge o âmbito psicológico e emocional do trabalhador. Há anos, jurisprudência e doutrina justrabalhista busca fixar um conceito para o assédio moral trabalhista. Em resumo, costuma referir a ocorrência de comportamento perverso de assediador, buscando impor sofrimento ao funcionário, minando auto-estima, ao ponto de inviabilizar a própria continuidade da relação de trabalho.
Origens legislativas
O projeto teve um longo caminho, que é importante ser lembrado para compreender as alterações que foram promovidas no próprio conceito de assédio moral. Surgiu em 2001, assim prevendo:
“Art. 146-A. Desqualificar reiteradamente, por meio de palavras, gestos ou atitudes, a auto-estima, a segurança ou a imagem do servidor público ou empregado em razão de vínculo hierárquico funcional ou laboral.”
Vê-se que conceituava assédio moral a partir de conduta projetada e repetida no tempo, com o conteúdo de desqualificação do funcionário a partir de atos (palavras, gestou ou atitudes) e que produzissem efeito de prejudicar a auto-estima, segurança e imagem, sempre que exercida a partir de vínculo hierárquico.
O substitutivo da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, apresentado no ano seguinte, promoveu redefinição geográfica e de conteúdo. Estabeleceu:
“Art. 136-A. Depreciar, de qualquer forma e reiteradamente a imagem ou o desempenho de servidor público ou empregado, em razão de subordinação hierárquica funcional ou laboral, sem justa causa, ou tratá-lo com rigor excessivo, colocando em risco ou afetando sua saúde física ou psíquica.”
Manteve-se o elemento da reiteração de conduta exercida por quem tem superioridade hierárquica, mas ampliou conteúdo em duas formas: primeiro, apontando como meios a expressão “de qualquer forma”; segundo, com a soma da hipótese de tratamento com rigor excessivo que coloca em risco ou afeta a saúde física ou psíquica. Mas também estabeleceu exceção para a depreciação da imagem e desempenho do funcionário – a ocorrência de “justa causa”.
O crime de assédio moral
O PL manteve-se praticamente parado até 2012, nos anos seguintes foi apensado a outros três projetos de lei (3.365/2015, 5.503/2016 e 7.461/2017) e estabeleceu conteúdo diferenciado. Até que em março de 2019, assim restou aprovado pela Câmara dos Deputados:
“Art. 146-A. Ofender reiteradamente a dignidade de alguém causando-lhe dano ou sofrimento físico ou mental, no exercício de emprego, cargo ou função.”
Vê-se que a redação é muitíssimo mais singela que as duas outras propostas. Mantiveram-se originais dois aspectos a) reiteração; b) efeito de sofrimento físico ou mental.
Há diferenças substanciais.
Primeiro em relação ao agente que pratica o assédio. Abandonou-se a concepção original de exercício de poder hierárquico, para colocar elemento muito mais amplo de exercício de emprego, cargo ou função. O objetivo foi de somar ao originalmente previsto assédio vertical (executado pela chefia) o assédio horizontal, que é produzido por colegas de trabalho que não necessariamente têm relação de superioridade hierárquica com o assediado. Assim, admite-se como agente criminoso o colega de trabalho que, não tendo poderes de chefia, utiliza-se de situação funcional para promover ofensas reiteradas ao companheiro, prejudicando a execução de serviços e pondo em risco a permanência da relação de emprego.
Mas o que mais chama atenção é amplitude da conduta passível de ser considerada criminosa. Unicamente oferece a pista de ofensa (reiterada) à dignidade, causando dano ou sofrimento físico ou mental. Por evidente, as ofensas podem ser produzidas de diversas formas, seja com xingamentos ou todo tipo de perseguição e colocação do trabalhador em situações de sofrimento.
A afetação da saúde física ou mental do funcionário está explicitada no crime. Ou seja, há necessidade de um resultado: para que se consume deve haver prejuízos concretos e bem identificáveis. A mera conduta do agente, que ofende reiteradamente a dignidade do empregado, mas não provoca efetivo dano ou prejuízo físico ou mental não alcança o tipo penal.
Limitações ao tipo penal
Há outro detalhe que deve ser observado. Houve exclusão da expressão “sem justa causa”, que era utilizada como exceção à hipótese de depreciação da imagem e desempenho do funcionário. A análise, todavia, deve ser cuidadosa e sem abandonar a razoabilidade.
No cotidiano das relações de trabalho, é aceitável que chefia reconheça faltas do trabalhador, promova avaliação funcional negativa e passe a cobrar os devidos consertos. Faz parte do âmago das relações de trabalho subordinadas a efetivação de cobranças laborais do funcionários, a fim de que corretamente execute atribuições contratadas.
É até possível que trabalhador que recebeu más avaliações, e esteja sendo demandado a consertar postura, sinta-se ferido em sua auto-estima. Mas não se pode aceitar que esse simples fato caracterize crime. O tipo penal trata de situação patológica, de exorbitância no exercício da atribuição patronal de fiscalização, controle e orientação do trabalho. Não pode invalidar o poder empregatício de organizar o empreendimento e sua força de serviço.
Não há, portanto, assédio moral em suas conformações trabalhistas e criminais na explicitação de efetivo mau comportamento, com consequente demanda para adequação. Desde que, evidentemente, as cobranças sejam feitas de forma razoável, discreta e propositiva.
Futuro do projeto
Devidamente aprovado na Câmara, o PL já foi enviado para o Senado, onde as tramitações costumam ser mais rápidas. A casa alta também poderá modificar a proposição, fazendo retornar para novas deliberações. A ver.