O desafio para o futuro é enfrentar a crônica desigualdade social brasileira, cujas marcas profundas não foram apagadas pelo progresso recente. Ainda vivemos graves níveis de concentração de renda e de riqueza, injustiça fiscal, problemas estruturais no mercado de trabalho e acesso precário aos bens e serviços sociais.
Eduardo Fagnani
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 06/01/2015
Políticas sociais e econômicas são faces da mesma moeda. Para alcançar o bem-estar social não basta boa política econômica, que vise ao crescimento e à equidade. Também é necessária boa política social que transfira renda e amplie o acesso universal aos bens e serviços públicos.
O crescimento da riqueza é condição necessária para o desenvolvimento. Já no prefácio de Estado do futuro, Gunnar Myrdal (1962, p.56) observa que é “irrefutável e patente” que a ampliação dos investimentos, da produção e da renda se constitui na mais essencial das condições para a ampliação do bem-estar social. Por isso, dizia Myrdal naqueles tempos, “em todos os países estamos, hoje, lutando pelo desenvolvimento econômico”, principalmente os países mais pobres, conscientes da necessidade do progresso material para o bem-estar social.
Na década passada, a América Latina e o Caribe obtiveram avanços sociais importantes. Na visão da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL, 2012), o crescimento da economia, em decorrência do comércio internacional favorável, foi determinante. O aumento da arrecadação abriu espaços para a ampliação do gasto (subiu de 14,5% para 17,9% do PIB). A taxa de desemprego caiu de 11,2% para 6,6%. O aumento do emprego assalariado foi combinado com a elevação do salário médio real, sobretudo pela valorização real do salário mínimo (49,7% na América do Sul entre 2003 e 2010). Como consequência, “pela primeira vez em várias décadas, um subconjunto considerável de países da região obteve resultados positivos em termos distributivos”, constata a Cepal.
No caso brasileiro, o contexto internacional também contribuiu para o crescimento, e o governo optou por políticas menos restritivas. A renda per capita voltou a subir, após se manter estagnada por duas décadas. As receitas fiscais foram impulsionadas, melhorando as contas públicas e reduzindo as restrições para o gasto social. Com a crise financeira de 2008, medidas anticíclicas foram adotadas, e os bancos públicos ampliaram o crédito, o qual praticamente dobrou entre 2003 e 2010 (de 24% para 49% do PIB). Essa opção teve repercussões positivas na geração de empregos, redução da taxa de desocupação, elevação do salário mínimo e das transferências de renda da Seguridade Social. Esses fatores contribuíram para reduzir a desigualdade social e elevar a renda das famílias, o que impulsionou o mercado interno de consumo de massa, base do ciclo de crescimento.
Castro (2013) demonstra que a política social contribui para a ampliação da demanda agregada e diminuição da desigualdade. Segundo o autor, um incremento de 1% do PIB nos gastos com educação e saúde, por exemplo, amplia o PIB em 1,85% e 1,70%, respectivamente. O mesmo incremento nos gastos dos programas Benefício de Prestação Continuada e Bolsa Família provoca diminuição na desigualdade social de, respectivamente, 2,33% e 2,15%. Da mesma forma, o aumento de 1% do PIB nos gastos dos programas Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada e Previdência Social eleva a renda das famílias de 2,25%, 2,20% e 2,10%, respectivamente.
Além da economia
Estudo do Ipea (2011) constata que entre 1960 e 1981 o crescimento do PIB veio acompanhado de uma piora na concentração da renda. Entre 1981 e 2003, a renda per capita manteve-se estagnada, e a desigualdade na distribuição da renda permaneceu inalterada. Entre 2004 e 2010, pela primeira vez o crescimento do PIB veio acompanhado da redução das desigualdades no interior da distribuição pessoal da renda do trabalho. Nessa última quadra, o crescimento potencializou os efeitos redistributivos da proteção social instituída pela Constituição de 1988, inspirada em alguns dos valores do Welfare State.
Esses dados confirmam que não há relação “automática” entre crescimento e distribuição da renda. Além do crescimento, o desenvolvimento depende do estágio em que as diferentes sociedades encontram-se em termos de consolidação democrática, organização da luta popular, existência de direitos sindicais e trabalhistas (que resultam em mercados de trabalho mais desestruturados) e de sistemas de proteção que ampliem a cidadania social. Em alguma medida, esses fatores explicam as diferenças entre crescimento com concentração da renda (1960-1981) e crescimento com redução das desigualdades (2004-2010).
De forma muito esquemática, é possível dizer que, em sociedades democráticas, o crescimento pode criar uma dinâmica favorável ao trabalhador. A maior demanda por mão de obra reduz a taxa de desocupação e amplia o poder dos sindicatos, que passam a pressionar pela elevação dos salários e por novos direitos, impulsionando o mercado interno de consumo de massa, gerando novos investimentos e produção, que realimentam o ciclo de demanda por mão de obra. A expansão das receitas de impostos tem efeitos benéficos sobre as contas públicas. Parte desses recursos pode ser redirecionada para o gasto social em sua dupla vertente redistributiva: transferências monetárias para as famílias e ampliação da oferta de serviços sociais básicos.
Inclusão ou destituição
Políticas ditas “de austeridade” transformam esse círculo virtuoso de inclusão num círculo deletério de destituição. Uma economia estagnada não gera riqueza a ser distribuída. Muitas vezes, destrói ou concentra a riqueza acumulada. O caso da União Europeia é emblemático. Mesmo sendo o berço dos regimes de Welfare State, desde 2008 a chamada “austeridade” tem ampliado a pobreza, a desigualdade e a destituição social. Após apresentar recessão técnica em cinco trimestres seguidos, nos primeiros três meses de 2014 o crescimento médio do PIB para dezoito países da zona do euro não passou de 0,2%. Paradoxalmente, o “culto à austeridade” tem provocado aumento da dívida pública (desde 2008, cresceu 4,9 pontos percentuais do PIB). Outra consequência é o desemprego em massa, que atinge 10,5% da população ativa nos 28 países da União Europeia. Na Espanha, atinge 25,3%; na Grécia, 26,7% (FEBBRO, 2014). Como se vê, não basta uma boa política social. A inclusão também requer boa política econômica.
Universalizar a cidadania
O desafio para o futuro é enfrentar a crônica desigualdade social brasileira, cujas marcas profundas não foram apagadas pelo progresso recente. Ainda vivemos graves níveis de concentração de renda e de riqueza, injustiça fiscal, problemas estruturais no mercado de trabalho e acesso precário aos bens e serviços sociais.
A universalização da cidadania depende da realização de uma série de mudanças estruturais. O financiamento do gasto social depende de reforma tributária que promova a justiça fiscal, taxando-se o lucro e o patrimônio. Também requer que se revise o pacto federativo, que se enfrentem os processos de mercantilização e privatização da oferta de serviços e que se fortaleça a gestão estatal, enfraquecida pelo avanço de diversos mecanismos de gestão privada, que criam duplicidades e dificuldades para que se construa e se possa manter um padrão de eficiência.
Não existem perspectivas favoráveis para a superação desses problemas, sem que se resgatem a política e a democracia. O sistema representativo está envelhecido e burocratizado. A crise afeta todos os partidos, submetidos à mercantilização do voto, que impõe limites ao presidencialismo de coalizão. Nessa perspectiva, a reforma política é a mais importante das reformas.
Também não há perspectivas favoráveis sem o reforço do papel do Estado. Em sociedades de capitalismo tardio, o Estado cumpre tarefas essenciais não supridas pelo mercado. “Não há na história econômica do capitalismo nenhum caso de país que se tenha desenvolvido sem o concurso expressivo de seu Estado nacional”, ensina Cano (2010, p.7).
Da mesma forma, crescimento econômico baseado na indústria é condição necessária para o desenvolvimento social. No entanto, os pressupostos teóricos que dão substrato ao tripé macroeconômico (câmbio flutuante, superávit fiscal e metas de inflação) não convergem para esse objetivo. Apesar de breves impulsos de afastamento, o “reformismo fraco” (SINGER, 2012) dos governos do Partido dos Trabalhadores não foi capaz de alterar esse mecanismo introduzido pelo governo neoliberal de FHC em 1998. No início do governo Dilma Rousseff tentou-se uma via mais à esquerda, baixando juros básicos e desvalorizando o câmbio. Entretanto, o terrorismo do mercado forçou o governo a recuar.
A promoção dessas mudanças estruturais é de difícil encaminhamento, pois trafega no contrafluxo da ideologia dominante e da correlação de forças favorável ao poder econômico. Não obstante, em função da longa estagnação da economia mundial, o tripé passou a ser questionado inclusive por instituições que representam o establishment da ordem ideológica, econômica e política globais. A autocrítica dos erros da ortodoxia foi recentemente exposta pelo economista-chefe do FMI, Olivier Blanchard, no artigo “Where danger lurks” (Onde o perigo se esconde), no qual admite o fracasso daqueles que deveriam ser os guardiões da estabilidade do capitalismo. “A crise deixou claro que a visão crescentemente benigna das flutuações econômicas no produto e no emprego, dominante até a crise financeira global de 2008, estava errada, e que há necessidade de uma avaliação profunda.” Guiada por incompreensões e dogmatismos, “a política econômica, em especial a política monetária, assumiu um elemento de magia negra”, afirma Blanchard. O reposicionamento do economista-chefe do FMI não é fato isolado (DRUMMOND, 2014).
No Brasil, a gestão do “tripé” macroeconômico tornou-se ideia fixa. Qualquer visão crítica é considerada herética. Como diz Luiz Gonzaga Belluzzo, “antigamente, as notícias chegavam ao Brasil por navio, hoje parecem vir em carro de boi” [1].
Perspectivas sombrias
Na edição de outubro de 2014 do Le Monde Diplomatique Brasil destaquei que as eleições do ano passado colocavam “o Brasil numa encruzilhada”, na medida em que os dois projetos que lideravam as pesquisas eleitorais apresentavam propostas que sinalizavam “direções opostas” (FAGNANI, 2014). Havia indícios que levavam a crer que o projeto encabeçado por Dilma Rousseff procurava aprofundar a via da inclusão social, marca dos governos petistas. Por outro lado, os projetos da oposição eram claramente neoliberais e antidesenvolvimentistas. Esse ponto aparecia cristalino na defesa do aprofundamento da gestão ortodoxa do tripé macroeconômico.
A surpresa geral [2] é que após a vitória a presidenta deu sinais de que adotará a agenda dos perdedores. Os primeiros passos indicam a intenção de promover uma nova conciliação com as elites, o que limitará o cumprimento das promessas da campanha. “Eu votei na Dilma, porque ela defendia certo tipo de visão. E aí ela monta um ministério que dá um recado ao contrário. É uma entrega a uma concepção que não foi oferecida na campanha”, afirmou Belluzzo [3]. Para Wanderley Guilherme dos Santos, “o governo deve explicações a quem o elegeu”. Em suas palavras, “a indiferença do governo em relação ao espanto e reclamações de seus eleitores, ao lado de afagos a adversários de ontem, pode ser entendida como abuso de confiança”.
Provavelmente esse recuo está relacionado ao preocupante agravamento do cenário político-institucional, percebido pelo conservadorismo da composição do Congresso Nacional, pelas consequências imprevisíveis do escândalo da Petrobras e pela irresponsável campanha golpista orquestrada pela oposição (REGO, 2014). Pelo andar da carruagem, o terceiro turno seguirá até 2018 na tentativa de asfixiar permanentemente o governo. O objetivo é promover o contínuo sangramento político da presidenta, a desconstrução moral do partido e a paralisia do governo num cenário de crise político-institucional e aprofundamento da situação financeira internacional.
No campo econômico, a opção pela ortodoxia embute os riscos recessivos do ajuste que, certamente, suprimirá os estímulos anticíclicos num cenário externo adverso que se reflete no baixo crescimento interno. A continuidade do ciclo de aumento da taxa de juros tende a agravar o endividamento, exigindo mais superávit primário para pagar encargos financeiros. Esse inútil processo de enxugamento de gelo restringirá o gasto governamental e o papel dos bancos públicos no financiamento da infraestrutura. A austeridade poderá desorganizar o mercado de trabalho, impor limites à manutenção da política de valorização do salário mínimo e exigir novas rodadas de reformas conservadoras para suprimir direitos sociais. Essa opção terá reflexos no aumento da obscena desigualdade social brasileira e no retrocesso da inclusão obtida nos últimos anos, o que seria dramático para o Brasil. As tensões sociais se aprofundarão, caso as camadas sociais despolitizadas recém-incorporadas ao consumo percam esse status.
Esse cenário provável está no radar da oposição. Enquanto isso, o governo repete o comportamento dos últimos quatro anos: em silêncio perturbador, permanece isolado das forças políticas que o elegeram.
Notas
[1] Luiz Gonzaga Belluzzo, “A política econômica do período de construção da crise será abandonada”, Carta Maior, 11 nov. 2014. [2] Consultar “Manifesto dos economistas pelo desenvolvimento e pela inclusão social”, Carta Maior, 6 nov. 2014. [3] “‘Aécio perdeu, mas sua política vai governar’, diz Belluzzo”, Exame, 26 nov. 2014.Referências bibliográficas
CANO, W. “Uma agenda nacional para o desenvolvimento”. Texto submetido à publicação na Revista Tempo do Mundo, do Ipea, em 15 jul. 2010.
CASTRO, J. A. de. “Política social, distribuição de renda e crescimento econômico”. In: FONSECA, A.; FAGNANI. E. (orgs.). Políticas sociais, desenvolvimento e cidadania: economia, distribuição da renda e mercado de trabalho. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2013.
CEPAL. Cambio estructural para la igualdad: una visión integrada del desarrollo. Santiago de Chile: Publicación de las Naciones Unidas, 2012.
DRUMMOND, C. “A obsessão da economia ortodoxa atrasa o Brasil”. Carta Capital, 6 dez. 2014.
FAGNANI, E. “Escolhas cruciais, futuro incerto”. Le Monde Diplomatique Brasil, out. 2014.
FEBBRO, E. “Os resultados catastróficos do choque de gestão na Europa”. Carta Maior, 21 ago. 2014.
IPEA. “Natureza e dinâmica das mudanças recentes na renda e na estrutura ocupacional brasileira”. Brasília: Ipea, 2011. (Comunicado n.104.)
MYRDAL, G. O Estado do futuro. Rio de Janeiro: Zahar, 1962.
REGO, W. L. “A conspiração dos injustos”. Carta Maior, 7 dez. 2014.
SINGER, A. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Cia. das Letras, 2012.
Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho).